Fugas - Viagens

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O respigador e a respigadora

Por Francisca Gorjão Henriques

Apanham o que calha de onde calha e com isso levam o campo para casa. A KCKliKO só vende por encomenda, porque desperdiçar uma flor está fora de causa.

Ouve-se um cão às vezes, ouvem-se os passarinhos a maior parte do tempo. O gato brinca com a borboleta amarela que sobrevoa as plantas do jardim. São tantas e tão variadas que nem dá para listar. Mas atentemos na glicínia que se entrelaçou ao pilar e foi por ali fora, e agora está a começar a dar cachos de flores roxas, ou na ameixeira que tem a idade da casa: nasceu na década de 1940.

Albane e Luís (estão confortáveis só com os nomes próprios e dispensam os apelidos) vivem no bairo da Madre de Deus, na zona oriental de Lisboa, num quarteirão de casas de dois pisos. “Nós não comprámos a casa, comprámos o jardim que vinha com a casa. Gostámos particularmente de uns iris cor de vinho que nunca tínhamos visto em lado nenhum e ficámos apaixonados.” Está (quase) tudo dito sobre a importância das flores nas suas vidas. Dedicam-se a elas a tempo inteiro. Apanham-nas onde calha, juntam-nas em ramos exuberantes e delicados ao mesmo tempo, e vendem-nas por encomenda. Nenhuma flor é colhida sem uma intenção e um propósito.

No bairro, quase todos têm um pequeno jardim à porta, e sobretudo nesta altura do ano, em todos os jardins há flores. Os vizinhos tornaram-se uma fonte permanente de matéria-prima, com produtos “muito mais interessantes” do que aqueles que se encontram à venda nas floristas. “É um complemento enorme às flores que conseguimos encontrar.” No vizinho da frente há jasmim, a vizinha do lado dá-lhes ramos de eucalipto anão (anão porque as folhas não crescem muito, mantendo-se redondinhas), rosas de Santa Teresinha mais adiante, camélias acolá. Até o jardim do ex-Presidente Ramalho Eanes, que vive ao fundo da rua, já teve serventia. “São bens preciosos, porque há em pouca quantidade.”

No seu próprio jardim muito pouco foi plantado. Mas com tantas flores trazidas de fora, e por causa das sementes que vão caindo, a variedade de plantas e flores é agora enorme. “Perdemos a mão ao que nasce e cresce aqui.” Nos vários baldes de zinco espalhados encontramos flores e ramos de olaias, acácia selvagem, romanzeira, que está agora a dar folhas, ameixeira (as amendoeiras já acabaram de florir), cardos, ervilhas de cheiro selvagens (a flor que Albane traz tatuada no braço) e muitas outras variedades de que não sabem o nome porque são mais invulgares e, lá está, vêm sem etiqueta. Algumas (cada vez menos) compram a um fornecedor do Montijo — “tudo o que é comprado é nacional”.

Não contam uma a uma as espécies que compõem os seus arranjos, mas facilmente se encontram entre 15 e 20 diferentes. “Não fazemos grandes deslocações para as recolher. Tentamos ser o mais local possível. Quando não temos encomendas, andamos de carro para ver o que há, que flores já abriram.” Podem ir parar a sítios tão improváveis como os terrenos junto à 2.ª Circular.

O projecto coquelicot

Houve um processo até chegar onde os encontramos agora, no jardim de sua casa, cada um com a sua tesoura de podar na mão (“japonesas, que são as melhores; como é o nosso único utensílio podemos ter esse luxo”). Ficam de pé, um em frente ao outro, com o futuro centro de mesa ao meio, ora colocando uma rosa, ora ajeitando um dos ramos da ameixiera. Depois trocam posições. Há sempre um ponto de partida, e se houver ramos de árvores é por aí que se começa. De seguida, vêm as flores que “preenchem mais o espaço e têm maior protagonismo”. “Estes botões são postos só depois das flores grandes. Chegamos a uma certa fase e começamos a encher só com detalhes, cada vez mais pequeninos. Isto dá uma complexidade que não existe se utilizarmos só flores grandes. Se perdermos tempo a olhar começamos a descobrir, ‘aqui esta flor, aqui esta, aqui este pormenorzinho’. Tem uma profundidade de leitura maior.”

Albane, francesa de Paris, já tinha sido florista de uma forma mais convencional. Primeiro em Bruxelas, ajudando um amigo (que fez os ramos que aparecem no filme Marie Antoinette, de Sofia Coppola), depois em Lisboa, trabalhando para um francês “que foi inovador aqui em Portugal”. Chegou a ter, com um sócio, uma loja no Arco do Cego. Fazia o que a maioria faz: comprava as flores a fornecedores, ia ao mercado escolher, tinha um stock e com isso compunha os seus ramos. Depois abandonou o negócio e ficou vários anos dedicada a outras coisas. “Mas tinha o Luís a dizer-me ‘Porque é que não voltas às flores? Porque é que não voltas às flores?’”

O regresso é contado por ele (já agora: a sua actividade nesta altura da história era fazer efeitos especiais para filmes, sobretudo de publicidade. “Passava a minha vida num escritório, à frente de um computador”): “Namoreia-a durante mais de um ano e quase todos os dias lhe oferecia flores. Ao princípio comprava-lhe ramos e quando começavam a envelhecer ela refazia-os. Às tantas, em vez de ramos comecei a oferecer-lhe molhos, que comprava nas floristas.” Agora Albane, com um leve sotaque francês, porque entretanto já passaram 22 anos desde a sua chegada a Portugal: “Entretanto, começámos a ter outro tipo de preocupações a nível ambiental, e apercebemo-nos de que não fazia grande sentido estar a comprar constantemente flores, produtos que eram transportados por avião, produzidos de maneira intensa, nem sempre com boas condições, nem para o trabalhador nem para a terra. Muitas das flores vêm da Holanda, mas a Holanda é [também] um distribuidor. Muitas delas são produzidas em África ou na América do Sul, onde as leis ambientais são muito permissivas e onde a mão-de-obra é barata. Isso começou a criar-nos confusão.” Novamente Luís: “De repente deixámos de ter flores em casa. Eu deixei de comprar. Mas começámos a ficar em falta — tristes. E comecei a insistir muito com a Albane para ela voltar a trabalhar com flores. Tentámos arranjar uma forma de as ter mas contornando estes problemas.”

Apareceu a casa e foi crescendo o projecto KCKliKO (escrita fonética da palavra ‘coquelicot’ (papoila); o ‘c’ deveria ser invertido). Passaram um ano em ensaios, a contactar vizinhos, a ver quanto tempo as flores duravam em jarra, qual era a adesão dos potenciais clientes. “Inicialmente propusemos comprar, mas ninguém nos queria vender. São pessoas apaixonadas por flores, não são profissionais. Vamos lá porque queremos só uma flor e passamos três quartos de hora na conversa. Saímos com a flor e mais dois ou três vasos, um rebento de não sei quê, uma estaca... Acabamos por nos tornar amigos. O que fazemos é oferecer ramos de flores. É uma troca.”

Este não é um trabalho como os outros. “Hoje em dia, é sempre possível encomendar qualquer flor a qualquer altura do ano. Mas quando começamos a trabalhar com as flores de jardim e vamos bater à porta dos vizinhos, começamos a ser muito selectivos. Não cortamos uma flor a não ser que haja uma coisa muito específica para fazer. Se não temos um pedido, é completamente gratuito ir cortá-la.” E por essa razão não têm stock.

Basta sair porta fora que há sempre qualquer coisa para apanhar. Os restos das podas deixados nos passeios à segunda-feira às vezes dão direito a troncos com frutos e tudo, como é o caso dos limoeiros, que há em abundância no bairro. E todos os percursos são úteis para as buscas: ir ao supermercado, levar a filha à escola (só poderia ter nome de flor: Violetta).

Os descampados mesmo ali ao lado, em Chelas, são outro manancial. Viadutos e prédios altos de habitação social, ao lado de campos onde de vez em quando os serviços camarários passam máquinas e químicos para deixar tudo “limpo” — e de um dia para o outro lá se vai a Primavera. Agora, a maior parte está com ervas altas. “Há uma espécie de cardos que só encontramos aqui neste monte”, aponta Albane. Por trás, numa das muitas hortas clandestinas, já há calêndulas.

 

KCKliKO
Tel.: 917 491 726; 917 609 836
Email: kckliko@gmail.com
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