Ouve-se um cão às vezes, ouvem-se os passarinhos a maior parte do tempo. O gato brinca com a borboleta amarela que sobrevoa as plantas do jardim. São tantas e tão variadas que nem dá para listar. Mas atentemos na glicínia que se entrelaçou ao pilar e foi por ali fora, e agora está a começar a dar cachos de flores roxas, ou na ameixeira que tem a idade da casa: nasceu na década de 1940.
Albane e Luís (estão confortáveis só com os nomes próprios e dispensam os apelidos) vivem no bairo da Madre de Deus, na zona oriental de Lisboa, num quarteirão de casas de dois pisos. “Nós não comprámos a casa, comprámos o jardim que vinha com a casa. Gostámos particularmente de uns iris cor de vinho que nunca tínhamos visto em lado nenhum e ficámos apaixonados.” Está (quase) tudo dito sobre a importância das flores nas suas vidas. Dedicam-se a elas a tempo inteiro. Apanham-nas onde calha, juntam-nas em ramos exuberantes e delicados ao mesmo tempo, e vendem-nas por encomenda. Nenhuma flor é colhida sem uma intenção e um propósito.
No bairro, quase todos têm um pequeno jardim à porta, e sobretudo nesta altura do ano, em todos os jardins há flores. Os vizinhos tornaram-se uma fonte permanente de matéria-prima, com produtos “muito mais interessantes” do que aqueles que se encontram à venda nas floristas. “É um complemento enorme às flores que conseguimos encontrar.” No vizinho da frente há jasmim, a vizinha do lado dá-lhes ramos de eucalipto anão (anão porque as folhas não crescem muito, mantendo-se redondinhas), rosas de Santa Teresinha mais adiante, camélias acolá. Até o jardim do ex-Presidente Ramalho Eanes, que vive ao fundo da rua, já teve serventia. “São bens preciosos, porque há em pouca quantidade.”
No seu próprio jardim muito pouco foi plantado. Mas com tantas flores trazidas de fora, e por causa das sementes que vão caindo, a variedade de plantas e flores é agora enorme. “Perdemos a mão ao que nasce e cresce aqui.” Nos vários baldes de zinco espalhados encontramos flores e ramos de olaias, acácia selvagem, romanzeira, que está agora a dar folhas, ameixeira (as amendoeiras já acabaram de florir), cardos, ervilhas de cheiro selvagens (a flor que Albane traz tatuada no braço) e muitas outras variedades de que não sabem o nome porque são mais invulgares e, lá está, vêm sem etiqueta. Algumas (cada vez menos) compram a um fornecedor do Montijo — “tudo o que é comprado é nacional”.
Não contam uma a uma as espécies que compõem os seus arranjos, mas facilmente se encontram entre 15 e 20 diferentes. “Não fazemos grandes deslocações para as recolher. Tentamos ser o mais local possível. Quando não temos encomendas, andamos de carro para ver o que há, que flores já abriram.” Podem ir parar a sítios tão improváveis como os terrenos junto à 2.ª Circular.
O projecto coquelicot
Houve um processo até chegar onde os encontramos agora, no jardim de sua casa, cada um com a sua tesoura de podar na mão (“japonesas, que são as melhores; como é o nosso único utensílio podemos ter esse luxo”). Ficam de pé, um em frente ao outro, com o futuro centro de mesa ao meio, ora colocando uma rosa, ora ajeitando um dos ramos da ameixiera. Depois trocam posições. Há sempre um ponto de partida, e se houver ramos de árvores é por aí que se começa. De seguida, vêm as flores que “preenchem mais o espaço e têm maior protagonismo”. “Estes botões são postos só depois das flores grandes. Chegamos a uma certa fase e começamos a encher só com detalhes, cada vez mais pequeninos. Isto dá uma complexidade que não existe se utilizarmos só flores grandes. Se perdermos tempo a olhar começamos a descobrir, ‘aqui esta flor, aqui esta, aqui este pormenorzinho’. Tem uma profundidade de leitura maior.”