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Lembras-te de Sarajevo?

Por André Cunha

Vinte e cinco anos depois do início do cerco, descascar as várias camadas da cidade continua a ser uma viagem e uma missão quase obrigatória para qualquer cidadão da Europa. Foram já tantos e tantos regressos, mas não há uma única vez em que não tenhamos vontade de abraçar este coração dos Balcãs.

Ande eu por onde andar
vou sonhando contigo
e todas as estradas me levam para ti,
aqui vou caminhando com saudades
daquelas tuas luzes
Sarajevo, meu amor

Lembras-te daquela primeira vez? Seria 2000, talvez 2001, era de noite, vínhamos de uma Mostar ainda sem a histórica ponte velha reconstruída, e a cada episódio mais balcânico da viagem logo o Faruk Boric ironizava
Isto é puro orientalismo!
E primeiro ria ele sozinho, e depois ríamos todos, já era o inexplicável humor bósnio a contagiar-nos, já era esta ex-avenida dos snippers e já era, mesmo se eu ainda nem sequer lhe vira a lombada até então, uma das mais belas páginas vivas do que é ler por dentro o Orientalismo de Edward Said, esse livro quase sagrado do Outro, que se entranha vivendo ou viajando por lugares assim, Sarajevo, Belgrado, Istambul, e deve ser ainda mais assim em Jerusalém, não tivesse sido esta cidade chamada, um dia, a Jerusalém da Europa. Hei-de ir comprová-lo, à Sarajevo do Médio Oriente, aqui mais do que Próximo.

Quando se entra pelo lado ocidental, por terra ou pelo ar, entra-se sempre por aqui, rasgando a avenida com o eléctrico 3. No espelho retrovisor vai tremendo, bem lá para trás, não longe do aeroporto, aquela casa que é um dos postais mais duplicados da antepenúltima guerra na Europa, que era para ser a última, que era para nunca sequer ter sido, caíra o muro em Berlim, “Cemitérios na Europa, Nunca Mais!”, repetiam lá longe, “Nunca Mais!”, Kohl, Miterrand, Delors, mesmo Gorbachov, e Bush e Clinton, claro — todos eles soam como papagaios hipócritas a esta distância. Como é que eles se lembram de Sarajevo?

A tal casa, ainda baleada e que retenho meio desfocada, é conhecida como a Casa do Túnel da Esperança. Por ali se saía do cerco e por ali se voltava. Por ali entravam alimentos mas também algumas das armas que alimentavam o lado de dentro do “cerco mais longo da história moderna”. A visita ao pequeno museu é apresentada, pelas agências locais, como “a tour mais popular de Sarajevo”, num roteiro que inclui depois passagem pelo parque das Olimpíadas de Inverno de 1984 e os cemitérios nas cercanias. Pode bem ter sido pelo túnel escondido naquela casa que entraram as cebolas com as quais, à luz das velas, foram improvisados uns certos bolos amargos daquele infeliz ano novo que chegava. Lembras-te de Sarajevo, Adelino Gomes, quando um litro de gasóleo valia cinco contos? Lembras-te de certeza de contar no PÚBLICO, a 2 de Janeiro de 1994, a história de Zumreta Beslagic que

... mesmo sem chocolate, açucar e manteiga decidiu fazer bolos para celebrar a data. Uma forma de resistência que partilha com outras mulheres ao sair maquilhada, e com a sua melhor ‘toilette’, dia após dia, para o centro histórico da cidade. (...) “É de propósito que me visto assim, vou mais vezes ao cabeleireiro do que no tempo de paz”.

Acho que também te lembrarás para sempre, Adelino, se um dia aqui voltares, daquele vestido azul que vou ver daqui a pouco no recém-aberto Museu ‘Infância na guerra’. As crianças de Sarajevo e da Bósnia e Herzegovina, as que aqui chegaram e se querem lembrar, fizeram um museu onde cada objecto é narrador de uma história. Este vestido conta-nos um pouco de um corpo adolescente a crescer, Emina, nascida em 1976, que podia ser filha de Zumreta ou de uma sérvia, de uma croata, de uma judia, de uma rom, ou de uma jugoslava já que havia tantas uniões, de facto, mistas, como aliás qualquer união — ela é uma filha de Sarajevo cujo vestido azul é agora peça de museu.

Encontrei este vestido num apartamento abandonado em 1993. A sua cor viva jogava com o proibido, porque nós, como cidadãos da Sarajevo cercada, éramos alvos constantes para os snippers (...). E enquanto as pessoas, temendo pelas suas próprias vidas, se vestiam de cores pardas, desbotadas, eu usava este vestido azul claro, vivo. Era um símbolo de desafio e da minha vontade de viver.

Havemos de chegar ao museu, mas o eléctrico 3 ainda agora começou o seu percurso de todos os dias. O primeiro checkpoint da memória, em qualquer regresso à cidade por este lado, é sempre o novo edifício do jornal Oslobodjenje (Sloboda é liberdade, nome de jornal, deu também um nome próprio muito desapropriado a Milosevic), um moderno prédio de negócios, no lugar onde antes se equilibrava de pé, durante bem mais do que uma década depois do cerco, aquele que era o ex-líbris de entrada na cidade — a ruína do jornal que nunca se deixou arruinar durante a guerra, continuou sempre a sair, porque continuar era sobreviver. Um jovem mochileiro recém-chegado que viaja ao meu lado nem sequer dá por isso, nem poderia, o que tem afinal de turisticamente belo um gigante espelhado, com o Hotel Randon Plaza e o cheiro do McDonald’s quase a entrar pelas janelas do Oslobodjenje, naquele lugar onde estava antes uma ruína que quase, quase todos quiseram apagar? É sempre muito minoritária a ideia de defesa de um património simbólico destruído e, em boa parte, tem sentido. Faz mal lembrar tudo a toda a hora, e continuar continuando.


O turista segue atento ao GPS do telefone que o há-de guiar até ao seu hostel — será ao Franz Ferdinand? — assim que o 3 acostar na Ponte Latina. Ainda falta muito, digo-lhe, e penso comigo: deves ter um quarto de século de vida. Não, tu não te lembras, e ainda bem.


Welcome to Sarajevo!
O eléctrico chia ao travar no Hotel Bristol, a seguir vem o antigo Holiday Inn, agora apenas Holiday, sempre amarelo forte. Mantém-se ali o logótipo das Olímpiadas do Inverno de 1984, para os mais velhos, a última chama de uma felicidade perdida. Nas costas desta fila de prédios, já se prescuta o Miljacka, pequeno rio de grande alma, que não passaria quase da categoria de riacho, não escorresse ele por esta cidade e pela sua literatura, agigantando-se como os outros dois grandes clássicos de água da região, o Drina de Ivo Andric e o Danúbio de Magris e de tantos outros. Quando chove, as águas lamacentas jorram acastanhadas do anfiteatro de montanhas que abraça a cidade, geografia tão bela quanto estranguladora há 25 anos. Mas quando não chove, a água transparente do Miljacka — e como é saborosa a água nesta cidade — dá-nos uma paz contemplativa, a paz possível, como aquela que Ahmet Sabo, personagem principal de A Fortaleza de Mesa Selimovic, encontra depois de regressar a Sarajevo, no século XVIII, raro sobrevivente de uma guerra longínqua.

... Podia contemplar a água tranquilamente, sem pensar. Tudo fluía com suavidade, num murmúrio. Tudo estava em paz: o pensamento, a memória, a própria vida. Sentia-me descontraído, quase feliz. Fiquei horas a olhar para a água límpida, deixando que as suas densas ôndulas me banhassem a mão, como carícias.

O eléctrico com o jovem mochileiro segue, eu fico sentado, num daqueles bancos de beira-Miljacka: e como é que até hoje eu ainda não tinha lido A Fortaleza que começo a ler agora neste banco? Serve-me de consolo que é tão bom começar um livro no sítio certo. E é impossível amar Sarajevo e compreender os Balcãs, avisara-me um dia a minha amiga Marija, sem beber do rio de Selimovic.

Não vale a pena relatar massacres terríveis, o terror humano, as atrocidades cometidas por ambos os lados. Não vale a pena recordar, seja para lamentar ou glorificar. O melhor é esquecer. Que morra a memória das pessoas sobre tudo o que é feio, para que as crianças não entoem canções de vingança.

Também foi a Marija Danic, refugiada fugida de Sarajevo naquele Abril de 1992, daquele modesto prédio socialista ali do outro lado do rio — é mesmo aquele, confirmo nesta fotografia recente que ela me mandou há dias por email, abraçada a um dos amigos da infância abandonada —, também foi ela quem me falou, pela primeira vez, do Museu ‘Infância na guerra’. Daqui a algum tempo, também lá estarão no museu as páginas do diário que ela escrevia no início daquela Primavera, quando o inferno invadiu o seu bairro de Grbavica. Ela lembra-se de ouvir os sinos das igrejas em comunhão sonora com a voz do muezzin. E tu, Nick Cave, lembras-te?

Escrevi ‘Into my arms’ quando estava numa pequena capela em Sarajevo, escondida lá em cima atrás das colinas..

Seria a própria Sarajevo a tua musa, Nick Cave?

And I don’t believe in the existence of angels / But looking at you I wonder if that’s true / But if I did I would summon them together / And ask them to watch over you

Não, Nick, os anjos não olharam pela nossa musa.

Grbavica foi um dos lugares mais duros do cerco. No filme que recebeu o nome do bairro, com o qual Jasmila Zbanic ganhou o urso de ouro em Berlim em 2006, a actriz sérvia Mirjana Karanovic faz o papel de Esma, uma mulher bósnia muçulmana violada por um homem de origem sérvia durante a guerra. Sara, a filha, pensava que o pai era um herói de guerra morto a lutar pela cidade. Na cena final, aqui em frente ao Holiday, Sara e as amigas partem de autocarro, numa excursão da escola secundária. E enquanto nós vamos tentando matar as memórias mais feias do filme, para que as crianças não entoem canções de vingança, a filha de Esma e as amigas vão trauteando o popular tema de Kemal Monteno, escrito em 1976, Sarajevo, meu amor.

Esta paragem do 3 permite descascar muitas camadas da cidade até sentirmos Sarajevo Now, como está inscrito numa pequena faixa pendurada no muro do Museu da História da Bósnia e Herzegovina, cujo nome gravado na pedra branca suja, em círilico e em latino, é uma das poucas marcas arqueológicas da convivência dos dois alfabetos deste lado da cidade. Para muito círilico, só mesmo indo a Sarajevo Leste.

Nas traseiras contíguas ao paralelipípedo suspenso do edíficio do museu, fica o Café Tito — não é “jugonostalgia” para turista ver, é mesmo “jugonostalgia”. Acaso desta passagem: mesmo em frente ao solene e autoritário busto de Josip Broz, uma jovem estudante universitária endorsa uma t-shirt do The Wall dos Pink Floyd. Tito olhos nos olhos com um muro.

Também vizinho do Miljacka, o Museu Nacional começa na própria rua com as seculares pedras tumulares no relvado em frente ao edifício de arquitectura austro-húngara, porque aqueles mortos chegaram ali antes do museu, não fosse a relação dos túmulos com o corpo vivo da cidade umas das características mais fascinantes e únicas de Sarajevo. Poucas centenas de metros à frente, páro quase sempre no pequeno "parque das pedras" onde me interpela a estátua rectlínea de Djuro Djakovic (comunista morto em 1929), não só porque parece que ele se abraça a si próprio - o que é algo intrigante - mas porque a estátua tem algumas marcas de balas que, provavelmente, vão perdurar mais tempo na pele da escultura do que aqueles buracos na fachada de um prédio ali não muito longe.

Foi numa das pontes desta zona onde, a 5 de Abril de 1992, morreram Suada Dilberovic e Olga Sucic atingidas por um snipper, no meio de uma grande manifestação pela paz. É considerado o primeiro dia do cerco. No chão, numa ponte vizinha, alguém desenhou dois quadrados e escreveu "LUGAR PARA BEIJOS", enquanto a tinta vermelha das rosas de Sarajevo - intervenção artística que marcava lugares manchados de sangue - se vai apagando. Mas quem conhece, identifica logo a calçada de asfalto arranhada pela vida que provavelmente caíu ali, aos nossos pés. E lá muito de vez em quando, ainda desponta um borrão em que a tinta vermelha permanece, para nos lembrarmos como são bons os lugares para os beijos. Into my arms, oh Sarajevo!

Ser criança agora!

Vai engrossando o rio humano que é o nosso 3, meia cidade deambulando dentro do eléctrico, entre Ilidza e Bascarsija. Próxima estação: Teatro Nacional. Foi na actual praça Susan Sontag que a intelectual norte-americana, com Haris Pasovic, encenou À espera de Godot, no Festival de Teatro e Cinema de Sarajevo, em 1993.

Serpenteando de novo o rio, ao lado da sinagoga, é impossível não reparar no Papagaio, edifício socialista-tropical (deve ter sido uma inspiração não-alinhada), logo seguido de uma pequena mesquita. De olhos por cima do mapa, é possível descobrir algumas cruzes cristãs em latitudes próximas, mais ou menos escondidas do horizonte visual. E eis-me no jardim do pavilhão musical, onde sempre me sento a tomar um café, desta vez a imaginar a escritora Alexandra Lucas Coelho a conversar aqui com uma das suas personagens de Ž, conto passado entre Belgrado e Sarajevo, que saiu no PÚBLICO a 17 de Maio de 2015.

Recordo uma personagem de Alexandra que se lembrava da infância passada numa cave-bunker-escola. Havia uma bicicleta parada e ele e a mãe — o pai estava na linha da frente — pedalavam para produzirem energia para um rádio dar notícias, cinco minutos que fosse. E talvez ouvissem, efabulo, a lendária rádio Zid do não menos lendário Zdravko Grebo. Podia estar a passar aquela cassete — ou seria uma bobine? — do primeiro concerto internacional do cerco, em 1993, quando depois de Imagine de John Lenon, Joan Baez cantou Sarajevo, ljubavi moja, a melodia de Monteno, original que corre agora em fundo nas colunas do café.

E de repente parece que alguém tinha escrito este guião: uma mulher de mais de 30 anos levanta-se da mesa onde estava com os amigos e vai sentar-se no dorso de um pequeno Estrumpfe, daquelas máquinas para crianças, e vai introduzir na ranhura uma moeda de um marco, para um minuto de alegria. Será que o Estrumpfe aguenta o peso de um adulto? Cai a ficha, o Estrumpfe balança para trás e para a frente, até que os amigos troçam dela carinhosamente, que já não tem idade para brincadeiras, dizem eles, e ela:

Quando eu era criança havia uma guerra, posso ser criança agora!

25 anos depois.

Passamos a Ponte Latina, com a narradora de Ž, no mesmo sentido em que o Arquiduque a atravessava em Junho de 1914, quando a Europa já morria nas pontes.

Na esquina em frente há um minimuseu onde podemos ver, por exemplo, como as armas do assassino — Gavrilo Princip — eram mínimas. Um revólver menor do que a palma da minha mão. Ele próprio parece um homem pequeno, de olhar melancólico. Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como anti-otomano, que acreditou febrilmente numa futura Jugoslávia.

Lembras-te de Sarajevo, Alexandra? O assassinato naquela esquina do mundo até dava um outro conto, com detalhes tão (in)verossímeis, dignos do melhor humor bósnio, como aquele frame a preto e branco em que um dos cúmplices de Gavrilo, ao falhar uma das tentativas anteriores para eliminar Ferdinand, e não tendo por onde fugir, esboça um suicídio, atirando-se de uma daquelas pontes de poucos metros de altura para o Miljacka, de facto, quase um riacho.

Saio do Museu e dou de caras com um Charlot a cores. Se eu fosse o Charlot — pedira-lhe eu uma vez aqui, no centenário da Primeira Guerra Mundial, com o microfone da rádio já ligado: estamos em 1914, se eu fosse, continua Faruk...

O que é que eu, Charlot, faço neste momento do atentado? Não sei bem se sou um homem com consciência de que a História está a passar à minha frente, da mesma maneira que este eléctrico passa pela rua. O que é que o Charlot faria aqui?

(muitos risos, longa pausa) 

Talvez começasse a chorar... Imagino que ele se ia embora, vagabundeando por algumas destas pequenas ruas. Ou então apanhava um táxi e dizia numa linguagem que ninguém ia perceber: “Foge, foge, foge! Para qualquer lado, para o Norte, para o Oeste, para qualquer lado!...” No fundo, neste lugar sente-se uma espécie de excesso da História que não se pode explicar. Esta nossa Sarajevo talvez tenha demasiada História para uma geografia tão pequena.

Faruk Boric tem mesmo o seu quê de Charlot. Não fisicamente, como até Gavrilo teria, mas naquele caminhar e no seu je ne sais quoi de criança. Vir a esta cidade é isto que não cabe em guias de viagem: ganhar amigos, brincar com eles, descobrir pessoas monumentais, ajudá-los a continuar Sarajevo. Porque alguns deles lembram-se do que é perder um amigo numa guerra, enquanto eu só perdi, e ainda não o sabia, os amigos daqueles que haveriam de ser os meus amigos de hoje. Só me posso lembrar daquilo que se lembram os meus amigos.

As árvores deste Abril salpicam de manchinhas brancas as encostas por onde a cidade sobe até se transformar em aldeia. Era numa colina como aquela ali, onde um pequeno cerejal tão florido evoca as últimas lágrimas de neve de um Inverno a sair de cena, que ficava o ninho do amor de Ahmet e Tijana, imaginado por Mesa Selimovic. Uma primeira edição de A Fortaleza, publicado em 1970, foi de certeza absoluta um dos milhares de livros que arderam no verão de 92, quando a líndissima Vijecnica foi bombardeada. Há quem se lembre das cinzas do livros, a voar pelos bairros vizinhos.

A caminho da Biblioteca “reaberta” em 2014, que recuperou o seu papel de câmara municipal de Sarajevo (o que também já tinha sido noutras épocas), paramos para comprar um maço de Drina, que há aqui muita gente que fuma como quem bebe água. De olhos nas letras gordas do quiosque, faço regressar o meu amigo à sua personagem sem bigode: e agora Faruk Boric, tu que já foste director do Oslobodjenje, da revista Dani e da Agência de Notícias da Bósnia antes de chegares aos 40, qual é a manchete dos amanhãs?

Isto é bonito e interessante para quem nos visita, como este grupo de turistas. Mas nós vivemos numa tribocracia, um sistema político que é uma espécie de neo-apartheid étnico.

A política voltou para a Vijecnica, os livros não.

Aqui no ventre do vale, o 3 faz uma curva quase impossível, iniciando o trajecto em sentido contrário. Do outro lado do Miljacka, fica o bar-restaurante Kuca Inat no sopé da colina de Alifikovac, que adoro subir até ao fim para ver o pôr do sol, desde o cimo do cemitério, mordiscando um mali somun comprado na padaria do bairro, mesmo sem os melhores cevapi da Bascarsija, a zona velha. Bem lá no topo, a vista é quase a mesma daquela fotografia dupla da histórica imagem que a revista Dani publicou no final do primeiro ano do cerco, com o título bilingue, Do you remember Sarajevo / Sjecas li se Sarajeva?, que haveria de ser o motto que também virou título do documentário dos irmãos Kresevljakovic, cuja história dava toda uma outra viagem ao longo deste vale.
Ao descer, sorvo lentamente um café turco na Kuca Inat. Inat é uma forma de resistência a uma força oposta, palavra visceral desta língua servo-croata-bósnia, toda uma ensaística para tentar traduzir aquela que é uma das realidades mais intraduzíveis dos Balcãs. Em português, talvez ninguém se tenha aproximado tão bem como o ex-jornalista Pedro Rosa Mendes, que se lembra de Sarajevo, sem nunca aqui ter posto os pés.

Quando vieres Pedro, não percas o Museu ‘Infância na guerra’, olímpico esforço de Jasminko Halilovic, Amina Krvavac, Selma Tanovic e restante equipa. Tudo começou com o projecto de um livro que Jasminko editou em 2012, juntando mais de mil frases de crianças que viveram a infância no cerco e a quem ele pediu, até um limite máximo de 160 caracteres, um tweet da memória de quando não havia tweets, uma frase, para um mural em forma de livro. O livro cresceu tanto, com histórias do resto da Bósnia e Herzegovina, que agora é um museu, porque muitos dos testemunhos, constatou Jasminko, contavam uma pequena história associada a um objecto. Como aquela do vestido azul de Emina desafiando os snippers. Um vestido, um brinquedo, um diário, um urso de peluche, uma guitarra, são já mais de 3000 objectos, outras tantas histórias no espólio do museu sobre o qual ainda mal consigo escrever alguma coisa. Está aqui representada, com uma dignidade inenarrável, a infância que foi roubada a estas crianças, que não puderam atravessar Primaveras como eu ou tu. Acho que nunca chorei tanto, mesmo se também sorri tanto com algumas destas histórias. E cerrei os punhos, com a criatividade, a resiliência e a energia destes heróis da paz. Como Nadja, nascida em 1978, de cujo diário do cerco copio para o meu caderno a letra de Sarajevo, ljubavi moja. Por entre as memória de Nadja, reencontro um recorte da tal capa da Dani de 17 de Maio de 1993, com as duas fotos, tiradas antes e durante a guerra do cimo daquela colina, com o eterno título: Lembras-te de Sarajevo?

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