Ande eu por onde andar
vou sonhando contigo
e todas as estradas me levam para ti,
aqui vou caminhando com saudades
daquelas tuas luzes
Sarajevo, meu amor
Lembras-te daquela primeira vez? Seria 2000, talvez 2001, era de noite, vínhamos de uma Mostar ainda sem a histórica ponte velha reconstruída, e a cada episódio mais balcânico da viagem logo o Faruk Boric ironizava
Isto é puro orientalismo!
E primeiro ria ele sozinho, e depois ríamos todos, já era o inexplicável humor bósnio a contagiar-nos, já era esta ex-avenida dos snippers e já era, mesmo se eu ainda nem sequer lhe vira a lombada até então, uma das mais belas páginas vivas do que é ler por dentro o Orientalismo de Edward Said, esse livro quase sagrado do Outro, que se entranha vivendo ou viajando por lugares assim, Sarajevo, Belgrado, Istambul, e deve ser ainda mais assim em Jerusalém, não tivesse sido esta cidade chamada, um dia, a Jerusalém da Europa. Hei-de ir comprová-lo, à Sarajevo do Médio Oriente, aqui mais do que Próximo.
Quando se entra pelo lado ocidental, por terra ou pelo ar, entra-se sempre por aqui, rasgando a avenida com o eléctrico 3. No espelho retrovisor vai tremendo, bem lá para trás, não longe do aeroporto, aquela casa que é um dos postais mais duplicados da antepenúltima guerra na Europa, que era para ser a última, que era para nunca sequer ter sido, caíra o muro em Berlim, “Cemitérios na Europa, Nunca Mais!”, repetiam lá longe, “Nunca Mais!”, Kohl, Miterrand, Delors, mesmo Gorbachov, e Bush e Clinton, claro — todos eles soam como papagaios hipócritas a esta distância. Como é que eles se lembram de Sarajevo?
A tal casa, ainda baleada e que retenho meio desfocada, é conhecida como a Casa do Túnel da Esperança. Por ali se saía do cerco e por ali se voltava. Por ali entravam alimentos mas também algumas das armas que alimentavam o lado de dentro do “cerco mais longo da história moderna”. A visita ao pequeno museu é apresentada, pelas agências locais, como “a tour mais popular de Sarajevo”, num roteiro que inclui depois passagem pelo parque das Olimpíadas de Inverno de 1984 e os cemitérios nas cercanias. Pode bem ter sido pelo túnel escondido naquela casa que entraram as cebolas com as quais, à luz das velas, foram improvisados uns certos bolos amargos daquele infeliz ano novo que chegava. Lembras-te de Sarajevo, Adelino Gomes, quando um litro de gasóleo valia cinco contos? Lembras-te de certeza de contar no PÚBLICO, a 2 de Janeiro de 1994, a história de Zumreta Beslagic que
... mesmo sem chocolate, açucar e manteiga decidiu fazer bolos para celebrar a data. Uma forma de resistência que partilha com outras mulheres ao sair maquilhada, e com a sua melhor ‘toilette’, dia após dia, para o centro histórico da cidade. (...) “É de propósito que me visto assim, vou mais vezes ao cabeleireiro do que no tempo de paz”.
Acho que também te lembrarás para sempre, Adelino, se um dia aqui voltares, daquele vestido azul que vou ver daqui a pouco no recém-aberto Museu ‘Infância na guerra’. As crianças de Sarajevo e da Bósnia e Herzegovina, as que aqui chegaram e se querem lembrar, fizeram um museu onde cada objecto é narrador de uma história. Este vestido conta-nos um pouco de um corpo adolescente a crescer, Emina, nascida em 1976, que podia ser filha de Zumreta ou de uma sérvia, de uma croata, de uma judia, de uma rom, ou de uma jugoslava já que havia tantas uniões, de facto, mistas, como aliás qualquer união — ela é uma filha de Sarajevo cujo vestido azul é agora peça de museu.