Fugas - Viagens

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Laos, a floresta canta mais alto do que a modernidade

Por Marta Rangel

À noite, Huay Xay não tem vivalma nas ruas. Com o raiar do dia, vê-se que a cultura local foi invadida pela modernidade de um turismo recente. Exemplo de uma modernidade que procura conciliar-se com a flora e fauna locais é a Gibbons Experience, que desafia os mais aventureiros a fazer trekking na floresta, percorrer longas distâncias de zipline e dormir numa cabana a mais de 40 metros de altura.

Jay tem 23 anos e descende de uma tribo no Laos. Os pais morreram quando era muito jovem. Talvez acidente, doença ou guerra. Não especificou. Foi criado pelos avós, que hoje têm quase 90 anos. Começou por ser monge - um caminho comum, no Laos, sobretudo para as famílias mais pobres, que têm a possibilidade de fazer o pagamento em cereais, vegetais ou frutas cultivadas nas próprias hortas.

Jay tinha dois trabalhos, em part-time, em Luang Prabang, a segunda maior cidade do Laos. Confessa que ganhava bem, para os padrões locais, mas decidiu mudar-se para Huay Xay, no Sul, para estar próximo da família que lhe resta.

Huay Xay é uma pequena cidade nas margens do rio Mekong – que separa, naturalmente, o Laos da vizinha Tailândia. Para quem chega de noite, parece saída de um filme de cowboys, mergulhada na escuridão, sem vivalma nas ruas. Com o raiar do dia, emergem cores pardacentas, próprias de algumas construções inacabadas que enchem a rua principal, onde famílias inteiras moram em casas amontoadas num prédio sem fachada. Não é preciso ser o big brother para espreitar a rotina daquelas pessoas: está ali, aos olhos de quem passa.

A cultura local foi invadida pela modernidade de um turismo recente – o que resulta numa mescla algo confusa de pequenos restaurantes tradicionais com modernos cafés, que oferecem brunch aos turistas pelo preço de um almoço na Europa.

Exemplo de uma modernidade que procura conciliar-se com a flora e fauna locais é a Gibbons Experience - uma empresa que, desde 1996, desafia os mais aventureiros a fazer trekking na floresta, percorrer longas distâncias de zipline e dormir numa cabana a mais de 40 metros de altura. Jay é guia em full-time. Bem-disposto, com sorriso franco e aberto, tem aspecto de menino franzino. Mas o trabalho duro e, talvez, a vida deram-lhe uma resistência física incrível. Tem apenas uma folga a cada seis dias e é um dos 120 trabalhadores da Gibbons Experience que, através do turismo de aventura, contribui para a conservação e sustentabilidade da floresta Bokeo – considerada Parque Natural desde 2008 - e dá trabalho às populações locais, que asseguram o transporte dos viajantes, a limpeza das cabanas e a alimentação.

O dia começa bem cedo no escritório. Dezenas de pessoas vão chegando e amontoam-se numa pequena sala enquanto aguardam por indicações dos guias. A primeira recomendação é: “Deixem as vossas malas aqui. Levem o mínimo essencial. Lembrem-se que, depois, terão de passar três dias com o peso às costas.” Alguns backpackers mais corajosos não quiseram deixar as bagagens, mas a maioria ouviu o conselho e preparou-se para seguir viagem apenas com uma pequena mochila com uma ou duas mudas de roupa, artigos de higiene (de preferência, em versão miniatura), um boné, repelente e uma garrafa para poder encher de água ao longo do caminho.

A primeira parte do percurso é feita em carrinhas pick up, onde os mais sortudos conseguem um lugar do lado de dentro, mas a maioria senta-se na parte de trás e tem de segurar o estômago ao longo de uma estrada muito sinuosa. A dada altura, a carrinha sai da estrada e entra pelo meio do mato. Literalmente. Sem o mínimo sinal de estradas secundárias ou caminhos entendidos como tal.

O motorista avisa, num inglês mais ou menos perceptível: “Hold on! It’s going to be a bumpy ride!” (Segurem-se! Vai ser uma viagem atribulada!). Uns concentram-se em não enjoar, outros divertem-se com os saltos e encontrões. Chegados à margem de um rio, por sinal relativamente cheio, o pensamento mais natural seria questionar onde estaria atracado o barco. Não. A pick up serve. De janelas fechadas para evitar alguma onda provocada pela deslocação das carrinhas, a travessia foi feita, de forma tranquila e algo divertida, pelos motoristas já rotinados nestes percursos. Finalmente, uma paragem. E o primeiro choque de realidade. Uma aldeia, que parecia deserta, começa a encher-se de habitantes locais, entretidos nos seus afazeres, que interromperam para vir espreitar os forasteiros que chegavam. As crianças, de pés descalços e semidespidas, brincavam com uma ninhada de cachorros recém-nascidos, relativamente indiferentes aos turistas. As casas eram palhotas e as casas-de-banho – como as conhecemos no mundo dito ocidental - eram uma utilidade desconhecida. As ruas, sem qualquer empedrado, enchiam-se de lama, que se colava aos sapatos dos turistas e aos pés descalços das crianças. Após uma curta pausa, o grupo segue viagem: a pé. Era o verdadeiro início da aventura.

Mais uma volta, mais um rio. Por onde atravessar? Pela água. Calçados ou descalços, como quisessem – opções igualmente desconfortáveis para os amantes da civilização. O ritmo é acelerado, não há tempo a perder. Cada guia segue com um grupo de oito pessoas e apenas procura certificar-se de que ninguém fica pelo caminho. O espírito parece ser “cada um por si”…

“Fazer como os macacos”

O primeiro trilho desenrola-se entre mata densa e áreas de cultivo, entre terra seca e terreno fértil. Na paisagem, surgem, de vez em quando, alguns animais mais ou menos domesticados, que vinham, curiosos, espreitar quem passava. Segunda paragem, segunda aldeia. Desta vez, apenas um ponto de passagem utilizado pelos guias para dar as próximas indicações. Distribuem um equipamento que, à primeira vista, se assemelha a um cinto com cordas. Explicam, rapidamente, que é necessário usá-lo sempre, por razões de segurança, excepto dentro das cabanas. “Wear it like a diaper!” (Vistam-no como se fosse uma fralda!), aconselham. Entre cordas, cintos e arneses, começa a sentir-se o espírito de grupo e de entreajuda. As nacionalidades confundem-se, as diferenças culturais esbatem-se, a curiosidade pelo outro aguça-se…

O grupo põe-se em marcha, já com os novos apetrechos. Há um misto de sentimentos no ar: expectativa, curiosidade, receio… O site da Gibbons Experience assegura que o percurso classic de três dias/duas noites “é o mais fácil”. Será?

Este trilho é íngreme e irregular – difícil de cumprir sem alguns tropeções. Os ramos atravessam-se no caminho, dificultam a visão e deixam marcas nos braços e pernas destapados devido às temperaturas altas e sufocantes. É sempre a subir. O cheiro fresco da vegetação dissipa-se no ar, que se torna, progressivamente, mais denso e pesado. Custa respirar. A altitude provoca ligeiras tonturas: como se o corpo seguisse à frente e a cabeça ficasse para trás. Os mais atléticos e destemidos conseguem acompanhar o ritmo; outros, mais ofegantes, vão assumindo o fim da fila. Algumas árvores servem de encosto para recuperar o fôlego. Por escassos segundos.

De vez em quando, os guias contam cabeças. Ouvem-se risinhos nervosos, alguns palavrões mais ou menos contidos, há quem reclame “porque é que eu me meti nisto?!”… Finalmente, uma paragem para descansar e “almoçar”. Os guias procuram manter o moral do grupo: olham em volta para se certificarem de que todos estão bem, ensaiam piadas e brincadeiras. Nem todos falam inglês, mas todos se esforçam por comunicar. Distribuem sandes embrulhadas em folhas de bananeira. Não há papel para não fazer lixo. Chamam a atenção dos fumadores: nada fica para trás! A consciência ambiental é transmitida, desde o primeiro momento, e relembrada – com insistência, se necessário – aos mais distraídos.

A pausa não durou mais do que 20 minutos. O grupo aproxima-se das primeiras ziplines – uma forma de transporte, também conhecida como slide, que consiste em deslizar, num cabo de aço, esticado a muitos metros de altura, com o auxílio de roldanas e preso por um suporte fixado com arneses. Na Gibbons Experience, o comprimento dos cabos varia entre os 50 e os 600 metros. Nos mais longos, é como se nos lançássemos no vazio, sem ver o destino final.

Ao chegar à primeira zipline, o grupo entreolha-se como quem tenta empurrar para o próximo a iniciativa de ir em primeiro lugar. Antes, os guias verificam se todos têm o equipamento bem apertado e recordam instruções de segurança. Jay assume a liderança: “Tenham cuidado com a velocidade. Se não conseguirem parar do outro lado, correm o risco de voltar para trás, com o impulso, e ficar no meio do cabo, suspensos sobre o vazio. Se isso acontecer, façam como os macacos!” E exemplifica, com gestos, como quem desliza, numa corda, com o auxílio das mãos. A pouco e pouco, chega a vez de todos. Alguém pergunta se é possível desistir, regressar à aldeia. “Não”, responde Jay, entre risos, “a menos que queiram fazer todo o caminho a pé – e vai escurecer – e depois pedir boleia para regressar a Huay Xay”. E a ideia fica, automaticamente, posta de parte.

A altura da montanha intimida, mas ainda não é uma das mais altas. Há quem arrisque espreitar o vazio, desafiar as vertigens. “Já vi muitos homens de barba rija ter medo de alturas”, refere Jay entre o sério e o divertido. O clique do arnês a fechar soa a um misto de segurança e inquietação. Não há volta a dar, é hora de saltar. Ouvem-se gritos e exclamações – uns de êxtase, outros quase de terror. A adrenalina está ao rubro. A meio da zipline, já se vê o fim: o ponto de chegada é uma espécie de casa na árvore de dimensões reduzidas. Tem um suporte – estreito – para pousar os pés. Outro guia ajuda cada um dos aventureiros a chegar, sem tropeções de maior. Com os pés em “terra firme”, parece que, afinal, é mais fácil do que parecia. Mas nem há tempo para respirar fundo. O espaço é tão apertado que é preciso permanecer encostado à árvore para dar a volta e chegar a… outra zipline.

O patamar para colocar os pés é tão curto que parece que falta chão. Na verdade, é uma falsa sensação de insegurança porque os arneses continuam presos à árvore – à prova de qualquer deslize. Quem arrisca olhar para baixo, descobre uma imensidão de vazio. Não se vê o chão - talvez pela altura elevada, talvez pela ilusão criada pela vegetação. Agora, sim, as pernas tremem. A adrenalina inebria mais do que os cheiros exóticos, que entram pelas narinas adentro. Dois rapazes dão sinal de hesitação. Um deles recusa-se a saltar: tem vertigens. Jay encoraja-os: “Têm de ir! Não há forma de voltar para trás!”. E vão – todos, sem excepção.

Com um ligeiro empurrão de Jay, de repente, os pés saem do chão e voam para a frente. O grupo aplaude, grita, assobia. O corpo reclina para trás – a velocidade aumenta. Ainda não se vê o fim da linha. A paisagem é verdejante e estende-se até ao horizonte. Naquele momento, durante alguns segundos, talvez escassos minutos, o viajante funde-se com a natureza – como se estivesse no meio do nada e o nada se confundisse com ele. De repente… já está! Desafio superado! O grupo troca cumprimentos, felicitações, comentários, sente-se a euforia no ar.

Pouco passa das cinco da tarde, mas o dia já começa a despedir-se de mansinho. A temperatura baixa e os arrepios, agora, são de frio, depois de a adrenalina ter deixado, por momentos, os corpos dos aventureiros. Jay explica que é preciso repartir o grupo pelas várias cabanas: existe uma menor para apenas duas pessoas e outras duas maiores. O acesso é feito, quase sempre, por zipline.

A cabana de Tom Sawyer

As cabanas apelam ao imaginário da infância: com raízes de Tom Sawyer polvilhadas de alguma modernidade. A maior tem três pisos. No inferior, está uma casa de banho com os utensílios essenciais: tem uma cortina a fazer de porta e, do outro lado, é aberta para a paisagem da floresta. Sob os pés, estão tábuas de madeira, com aparência sólida e com frinchas que permitem olhar até perder de vista - afinal, são 40 metros de altitude, o equivalente a um prédio com 12 andares. O chuveiro é de água fria, mas abundante. Quando cai, nas tábuas de madeira, escorre entre as frinchas e vai desaguar sobre o vazio. O ruído, exacerbado pelo silêncio da floresta, assemelha-se a uma daquelas chuvadas que antecedem a tempestade.

O piso intermédio é o mais amplo da casa. De um lado, tem um balcão, a servir de kitchenette, com água potável, e um armário com pratos, copos e talheres. Do outro, um espaço aberto que serve para dormir, em sacos-cama abrigados por pequenas tendas, e fazer as refeições, numa pequena mesa, quase ao nível do chão, ao estilo asiático.

O último piso não é – como reza a fama – o melhor. De dimensões muito reduzidas, cabem, apenas, um ou dois sacos-cama no chão. Mas é o ideal para quem gosta de ter uma boa vista.

Jay providencia fruta, água e uns doces tradicionais, em forma de quadrado cuja textura se assemelha a gelatina. Explica que vai sair para ir buscar o jantar – de zipline. Na cabana, ficam 11 pessoas, entre as quais um árabe, dois portugueses e vários holandeses. Há tempo para explorar o espaço, arrumar a pouca bagagem, tomar um duche ou dar dois dedos de conversa. Muito tempo. São seis da tarde e, na floresta Bokeo, já é hora de jantar. O que fazer até à hora de dormir?

Jay regressa menos de uma hora depois. Pendurado na zipline, segura-se só com uma mão e, na outra, traz pequenos potes de metal, como se fossem tachos ou panelas, em miniatura. O menu do jantar é arroz e vegetais misturados com carne. Não é um manjar, mas ninguém reclama. É preciso repor energias.

Durante a refeição, o grupo começa a conhecer-se melhor. O árabe fala dos costumes da terra natal, a Arábia Saudita. Conta que gastou muito dinheiro no casamento da filha, que durou vários dias. Uma cerimónia onde – obviamente – homens e mulheres comemoraram sempre em separado. Mas, refere quase em jeito de desculpa perante a audiência de europeus, teve a preocupação de encher a sala das mulheres com flores. Apesar do aspecto mal cuidado, parece ter algumas posses financeiras. Viaja sozinho – ritual que repete quase todos os anos.  Perguntam-lhe se a esposa não se aborrece: “Está habituada”, responde com um sorriso. Foi um dia longo, com temperatura muito quente e esforço físico - argumentos insuficientes para convencê-lo a tomar um banho de água fria.

O grupo de holandeses – um casal, um rapaz e uma rapariga, que viajam em separado – entretém-se a explicar aos restantes que “Netherlands” (Países Baixos) e “Holland” (Holanda) não são a mesma coisa.

Ainda não são dez da noite e o grupo começa a dar sinais de cansaço. É preciso montar as tendas, prendendo-as nos suportes possíveis – sejam as tábuas da cabana ou ramos da árvore. Lá dentro, colocam-se os sacos-cama e os edredons. O escuro da floresta é breu - sem comparação possível com qualquer campo, mata ou região do interior na Europa. As estrelas são tantas, e tão visíveis, que fazem lembrar um padrão com pintas intermináveis. Tal como nos filmes de fantasia, ouve-se todo o tipo de ruídos de animais: a maioria difícil de adivinhar. De vez em quando, surge um grito abafado – quase sempre no feminino – por causa dos insectos tamanho XXL que insistem em visitar a cabana, atraídos pelas luzes das lanternas ou pelo cheiro da comida. Alguém recorda um dos avisos de Jay: “Não deixem restos de comida por aí. O lixo tem de ficar bem fechado! Senão corremos o risco de atrair animais.”

Aos poucos, o corpo repousa e a mente consegue abstrair-se do ruído da floresta. Um grupo de estranhos está ali, no meio da selva, longe de tudo o que se entende por civilização – sem rede nos telemóveis nem a mínima noção do caminho de regresso. E a sensação de paz é enorme.

O “canto” dos gibões

O dia está a raiar e ainda não há movimento na cabana. Um ruído, que se ouvia, ao fundo, parece ficar mais alto, mais próximo. É ritmado, quase melodioso. Talvez a embriaguez do sono confunda as ideias, talvez a falta de noção de tempo e de espaço, ali na floresta, permita que a realidade se confunda com o imaginário. Mas os viajantes poderiam jurar que ouvem… cantar. Não é uma voz humana. Não há voz, sequer. Não são trinados nem assobios como os das aves… É algo indescritivelmente bonito. Os primeiros olhos a abrir, na cabana, procuram descortinar a origem daquele som, no meio de um nevoeiro denso. De súbito, alguém sussurra: “São os gibões! Estão perto da nossa árvore! Estão a cantar.” Todas as cabeças espreitam por detrás das tendas, alguns ainda embrulhados nos sacos-cama para se protegerem da geada matinal. O grupo troca olhares cúmplices e, até, emocionados. É uma experiência única na vida. E nem todos os que participam na Gibbons Experience têm a sorte de vivê-la.

O dia amanhece, pouco depois, e após um pequeno-almoço composto por fruta, bagas, arroz e legumes, é altura de voltar a encarar as ziplines. O que antes era novidade passa a ser levado com naturalidade. Mais confiantes, os viajantes vão saltitando de linha em linha e visitando as restantes cabanas. Na floresta, o tempo não passa. Ou passa de maneira diferente. Vive-se o dia ao ritmo do sol e da lua, em comunhão com a natureza.

Chega o momento do regresso. Agora é sempre a descer – uma nova dificuldade. Alguns tropeçam, outros caem. A entreajuda é constante. Um grupo que, dois dias antes, era de desconhecidos, tinha criado uma união própria de quem desafia os próprios limites e se supera, em conjunto.

Jay conversa alegremente, apesar da timidez, agora mal disfarçada. Vai explicando um pouco sobre a flora e dá, até, a provar algumas ervas e plantas que os habitantes locais costumam comer quando passam mais tempo na floresta. Observador dos usos e costumes diferentes do seu país de origem, pergunta aos portugueses – um rapaz e uma rapariga, que viajam juntos:

- Então, já têm filhos?

- Não, não somos um casal!

- Mas dormem juntos!

- Dormimos no mesmo espaço. É só dormir. Somos amigos!

- Nãaoooo! Isso não era possível aqui no Laos!

- A sério? Então e tu tens namorada?

- Bem… eu gostava. Estou a poupar dinheiro para ter uma namorada.

- A poupar dinheiro? Porquê?

- No Laos, os homens têm de pagar tudo às mulheres, mesmo antes do casamento: seja um jantar, uma festa, roupa nova… Tudo o que ela quiser!

- Mas as mulheres não pagam nada?! Elas trabalham, certo?

- Sim, trabalham e ganham dinheiro, mas, no Laos, não é aceitável que seja a mulher a pagar. A menos que seja a irmã mais velha a comprar um gelado ao irmão mais novo ou algo do género. Mas é raro.

- E existem outros tipos de casais no Laos? Casais com dois homens ou duas mulheres?

- Nãoooo…! (risos) Isso não existe!

- Claro que existe! Nunca viste?

- Não, aqui não existe! Mas queres dizer que, na Europa, existem todo o tipo de casais?!

- Sim, claro, na Europa e no mundo inteiro.

- E, na Europa, podes amar quem tu quiseres e ficar com essa pessoa?

- Claro! É assim que funciona.

E, com um sorriso doce e o olhar perdido nos pensamentos, Jay ficou a sonhar com uma Europa onde é permitido amar sem regras nem imposições.

Velocidade furiosa

A aventura na floresta tinha terminado. O grupo separou-se e seguiu rumos diferentes. O árabe, os dois portugueses, três australianos e uma francesa resolveram ir juntos para Luang Prabang, no Norte do país.

No Laos, não existe linha férrea e alguns aeroportos têm um funcionamento irregular. Para fazer a viagem entre Huay Xay e Luang Prabang, uma das hipóteses é ir de barco: speed boat ou slow boat. O speed boat é uma espécie de lancha, ruidosa, que atinge velocidades elevadas e pouco aconselhada aos turistas por causa das escassas condições de segurança. O slow boat é, como diz o nome, um barco lento que demora dois dias a fazer o trajecto – adequado a quem tem esse tempo disponível e vontade para desfrutar do passeio.

A terceira opção é ir de autocarro: uma viagem nocturna de cerca de oito horas. À partida, parece a alternativa mais viável e confortável, mas as recomendações sobre as estradas, no Laos, não são as melhores: sinuosas, com maus acabamentos e pouca iluminação. À primeira vista, o autocarro tem ótimo aspecto: novo, aparentemente seguro, confortável, com bancos que reclinam até à posição de uma cama. Durante a viagem, é difícil dormir. As oscilações são demasiado grandes, embora não se perceba porquê. A noite já vai longa quando se sente um movimento brusco, travagem a fundo… e um embate a grande velocidade! Dentro do autocarro, todos parecem estar bem, apesar do susto. Lá fora, um cenário dantesco. O autocarro tinha colidido com uma mota, onde viajavam três pessoas. Os corpos estavam espalhados pelo chão, inanimados, distantes uns dos outros, projectados pela velocidade. A população local sai à rua. Entreolham-se e encolhem os ombros com uma certa banalidade. Vienciana – a capital do Laos – tem a pior taxa de mortes na estrada per capita da Ásia e uma das piores do mundo. Não se ouvem sirenes nem há sinal de ambulâncias ou polícia. Os corpos são tapados com lençóis e, mais tarde, transportados para uma carrinha de caixa aberta. E o resto da vida segue com normalidade, como se nada tivesse acontecido.

O grupo que seguia no autocarro está meio perdido, sem saber o que fazer. Uma das australianas comenta que, na viagem entre Luang Prabang e Huay Xay, feita uma semana antes, tinha assistido a outro acidente. Várias pessoas apanham tuk tuks para seguir viagem; o grupo resolve fazer o mesmo.

Ainda é de madrugada quando chegam a Luang Prabang – mesmo com o acidente, o autocarro estava quatro horas adiantado. A cidade desperta em tons de laranja, a adivinhar mais um dia quente. Já há vida nas ruas: os comerciantes montam a feira e os monges, nas suas vestes açafrão, alinham-se, com pequenas taças na mão, para receber as oferendas dos turistas. Diz a tradição que apenas poderão comer, durante todo o dia, aquilo que lhes for oferecido – tarefa praticamente impossível tendo em conta que as taças se enchem de uma amálgama de arroz com moedas…

Luang Prabang fica no centro de uma região montanhosa, ladeada por dois rios: o Mekong e o Nam Khan. No século XIX, quando o país esteve dividido em três reinos, chegou a ser a capital até perder o estatuto para Vienciana, em 1946. A arquitectura colonial convive com a riqueza dos templos: são grandes, imponentes, dourados, mas fundem-se de tal forma com o resto da cidade que parecem surgir quando menos se espera. Só em Luang Prabang, existem 34 wats – a palavra budista para “templo” – considerados Património Mundial da Humanidade pela UESCO.

Onde o turismo não chega

O silêncio e o ruído coexistem. No alto de um monte, um templo adormecido convida ao retiro e à meditação. Na subida, uma local vende passarinhos em gaiolas para os turistas poderem soltar. Lá de cima, é possível avistar, de um lado, as margens de um dos rios, que corre lânguido; do outro, o frenesim da feira, das crianças que correm para a escola, do trânsito motorizado, que se mistura com carroças carregadas de fruta e verduras.

Luang Prabang é uma cidade grande, que arrisca perder espontaneidade por causa da invasão do turismo. Por todo o lado, existem hotéis, pensões e guest houses – um negócio ao qual muitos habitantes locais aderiram para fazer face ao aumento do custo de vida. Há restaurantes para todos os gostos e cafés ao melhor estilo europeu. As lojas que vendem excursões e souvenirs multiplicam-se. É difícil fugir das propostas para ir tirar fotografias com tigres e elefantes que os guias juram, a pés juntos, serem bem tratados, mas as imagens dos prospectos fazem desconfiar de métodos pouco ortodoxos. Também é possível visitar as cascatas Kuang Si – a cerca de meia hora de distância de tuk tuk, com água cristalina e paisagem verdejante – ou descer um dos rios de caiaque até à gruta Pak Ou – uma espécie de santuário onde estão guardadas cerca de 4000 esculturas de Buda. Pelo caminho – rio abaixo – as margens convidam a atracar o caiaque para fazer uma pausa, dar um mergulho ou apanhar sol. No regresso de uma excursão, o guia – mais à vontade, após acompanhar o grupo durante todo o dia – resolve meter conversa com os dois portugueses. Após a típica pergunta “Where are you from?” (De onde são?), as palavras começam a soltar-se com facilidade e, de ambas as partes, a curiosidade desemboca nas diferenças culturais:

- No Laos, há cada vez mais ofertas de turismo, mas é só para os habitantes locais…

- Como assim?

- Estão a ver ali aqueles terrenos à venda? Se forem estrangeiros, não podem comprar. Só quem vive no Laos.

- Mas porquê?

- Foi o nosso Governo que decidiu…

- Pensava que viviam em ditadura…

- Nós votamos!

- E quantos partidos existem?

- Só um.

Um sorriso tímido e o desviar do olhar antecedem alguns segundos de um silêncio incómodo. É hora de mudar o tom da conversa:

- E no que diz respeito à saúde, têm boas condições?

- Eu não acredito em médicos! Trato tudo com as ervas e as plantas da floresta.

- Oh… mas, se caíres de uma árvore e partires uma perna, tens de ir ao médico!

- Já aconteceu! Caí da árvore, magoei-me na perna, pus umas tábuas de madeira a segurar, fiz um remédio com plantas e fiquei bom em duas semanas!

- Não acredito! Com uma perna partida?!

- Estas curas são muito antigas. Aprendemos a utilizar o que a floresta nos dá. Vocês têm hospitais e médicos… Nós utilizamos o que podemos… e funciona! Por exemplo… Se acordares com problemas nos olhos, o que é que fazes?

- Não sei… Acho que ia à farmácia…

- Não. Acordas, não comes, não bebes… Fazes chichi e pões o chichi  nos olhos!

- O quê?! Não acredito! Fazes isso?!

- E se acordares com dores de estômago, o que fazes? Não fazes nada: não comes, não bebes… Fazes chichi e bebes o chichi!

- Não acredito! Estás a gozar comigo!

E a conversa termina, entre risos, mas com o guia a jurar que está a dizer a verdade e que aquela “medicina tradicional” funciona.

 

Guia prático

Quando ir

Entre Novembro e Fevereiro, as temperaturas são mais amenas e o tempo mais seco. A época das chuvas, no Laos, decorre entre Maio e Outubro. Abril é o mês mais quente.

Como ir

Pode voar para Luang Prabang ou Vienciana. A partir de Portugal, não existem voos directos; apenas com uma ou duas escalas.

A não perder

Os templos considerados Património Mundial pela UNESCO; o peditório dos monges; descer o rio de caiaque; ver o pôr do sol no Mekong; visitar as grutas e as cascatas nos arredores de Luang Prabang.

Gibbons Experience

Como ir

A partir de Vienciana, existem voos diários para Huay Xai (também referida como Houay Xay ou Oudomxay). A partir de Luang Prabang, não há voos. Pode ir de barco (slow boat ou speed boat) ou de autocarro (viagem de cerca de 12 horas de duração).

Preço: 100 dólares por dia, com variações sazonais. O preço inclui transporte, a partir da sede da Gibbons Experience para a floresta Bokeo; alojamento nas cabanas, alimentação, equipamento de segurança e guias.

www.gibbonexperience.org

 

 

 

 

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