Fugas - Viagens

  • Amanda Ribeiro
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    Sossusvlei Amanda Ribeiro
  • Yvette Naris, em Solitaire
    Yvette Naris, em Solitaire Amanda Ribeiro

Estamos na Namíbia ou noutro mundo?

Por Amanda Ribeiro

Animais selvagens em vida selvagem. Dunas de pele vermelha. Paisagens de ficção científica. Estradas introspectivas a perder de vista. Fizemos mais de três mil quilómetros sobre rodas por um país que tem tudo — e ainda tanto ficou por palmilhar.

Debaixo de uma acácia, um verdadeiro postal africano: um grupo de leões, pachorrentos mas não menos temerosos, dormita. Contamos as cabeças, a partir do jipe que nos enclausura do que está lá fora: uma, duas, três leoas, quatro patas no ar, a singular pose de um felino adormecido. Ao volante, olhos de lince, o guia Daniel Anton avista o que tantas vezes vê: um solitário gnu, afastado da manada. Foge das cabeçadas de um outro, que o segue a uma distância respeitável — será o mesmo par que ainda há pouco cortava a serena paisagem do Etosha, o mais popular parque nacional da Namíbia? “Vamos esperar”, decide Daniel, enquanto roda a chave e desliga o motor. “A ver se acontece alguma coisa.” O “alguma coisa”, percebemos depois, é a vida selvagem a acontecer, o mundo a dar-nos uma lição.

Estacamos em silêncio. Totalmente alheio aos predadores, o primeiro gnu passa a escassos metros do letárgico grupo, que tão-pouco presta atenção ao possante animal. A sua presença, no entanto, terá despertado alguma coisa, um desejo, uma fome: o segundo gnu já não passa despercebido. Ergue-se uma leoa e lá engolimos em seco. Começa a perseguição. Lenta, demorada, determinada. Avança, rasteira, apenas quando o gnu pára para se alimentar — e nós, dentro do todo-o-terreno, acompanhamos a cena à distância, pelas longas estradas de gravilha que possibilitam a circulação pelo parque. Entretanto, chamados pelos walkie talkies dos guias, já se juntaram mais jipes, mais carrinhas, mais turistas de tez branca carregados de grandes objectivas, num cenário algo desconfortável. Acompanhamos até onde podemos: meia hora, 45 minutos depois, a leoa ainda está no encalço da presa, perseverante e sem pressas, afastando-se para além do nosso campo de visão. O ataque, a ter acontecido, já foi para além das estradas transitáveis.

“A natureza é paciente. Os predadores são muito oportunistas e também pacientes, sempre à espera do momento certo. É também o truque nos safaris: temos de ser pacientes.” Enquanto fala, Daniel não deixa de passar a pente fino as bermas das estradas com o olhar. Tem 29 anos, quase 30, e um terço passou-os aqui, enquanto guia da Etosha Game Viewers, uma das várias empresas que faz safaris nesta gigantesca área protegida a norte da Namíbia (22 mil quilómetros quadrados de território, 114 espécies de mamíferos, incluindo quatro dos Big Five, excepção feita ao búfalo). Para ele, que faz isto todos os dias, que já presenciou milhares de momentos BBC Vida Selvagem, cada viagem é um “jogo”, uma espécie de “caçada de imagens e experiências”. A pergunta é: “O que será que a natureza me vai mostrar hoje para eu mostrar aos visitantes?” Foi simpática, ela: em poucas horas, a partir do acampamento de Namutoni, vimos uns quantos leões, uma sensualíssima chita, um rinoceronte, e logo dos brancos, uma respeitável manada de elefantes, para além de muitos órix, springboks, girafas, impalas, abetardas, rolieiros-de-peito-lilás. E, no coração do parque, ali mesmo no Etosha Pan, um lago formado há milhões de anos que é agora uma depressão desértica salina de cinco mil metros quadrados, uma família de raposas-orelha-de-morcego deu o ar da sua graça. Para gáudio de Daniel: “Uau, já não as via há algum tempo.”

Fazer um safari no Etosha é um dos pontos obrigatórios em qualquer guia de viagens da Namíbia. O parque tem a fama, merecida, de ser um dos locais em todo o continente africano em que é mais fácil ver animais selvagens, mesmo sem guia. A própria geografia ajuda: terrenos áridos, vegetação rasteira, vários charcos de água, naturais e artificiais, que atraem os animais, sobretudo na estação seca — mas não nos demos mal em Abril, fim do período das chuvas. A última palavra, porém, é sempre da natureza e há que respeitá-la, como diz Daniel; a segunda expedição voyeurista, realizada no dia seguinte a tamanha procissão, já nos parece revelar um outro país, um outro Etosha. Contaram-se umas aparições simpáticas de zebras e girafas, uns tímidos leões e um fotogénico rinoceronte ao pôr do sol, magnífico animal de outras eras. E, claro, estradas a perder de vista que atravessam a savana, planícies intermináveis pontuadas por acácias, ninhos de térmitas, pequenos arbustos.

É essa, aliás, uma das grandes características da Namíbia: para onde quer que se olhe tem-se sempre a sensação de que há muito espaço por acontecer. E muito para acontecer. Estamos no 34.º maior país do mundo, com 825 quilómetros quadrados de área total e escasso acesso a água, e não se vê vivalma. Aqui vivem pouco menos de 2,5 milhões de habitantes, distribuídos de forma muito pouco homogénea pelo território — a maior cidade, a capital Windhoek, tem cerca de 350 mil moradores. É possível, e provável, andar horas e horas por estradas franzidas de uma beleza insofismável e contabilizar duas mãos cheias de pessoas. E é certo que grande parte serão viajantes ao volante de jipes alugados com tendas presas no tejadilho. É que a um dos países com menor densidade populacional do mundo chega todos os anos uma batelada de turistas: em 2015, foram 1,3 milhões, segundo os últimos dados oficiais. Numa economia bastante dependente da extracção mineira (há, por exemplo, diamantes, chumbo, zinco, estanho, prata, tungsténio, urânio e cobre), e em que a grande maioria da população é pobre e vive da agricultura de subsistência, o turismo, em particular o ecoturismo, ganha espaço, tendo contribuído em 2016 para a criação de 116 mil postos de trabalho (directos e indirectos), de acordo com o último relatório do Conselho Mundial de Viagens e Turismo. Não é pouco significativo para um país que se debate com um grave problema de desemprego.

E o que querem os viajantes? Procuram a natureza, a vida selvagem em todo o seu esplendor — não é à toa que, hoje, quase metade do território está sujeito a algum tipo de regime de conservação; e não é à toa que se têm multiplicado os lodges de luxo com os seus próprios charcos de água para atrair animais, em que se adormece a escutar rugidos, ululares e zumbidos. Procuram a segurança, assinatura de um país que se mantém politicamente estável há mais de 25 anos, um caso raro em todo o continente. Mais precisamente desde a independência da África do Sul, em 1990, altura em que o Sudoeste Africano se tornou oficialmente República da Namíbia, libertando-se assim dos grilhões do apartheid. Há quem lhe cole o epíteto “África para principiantes”, tal é a organização de cidades como Windhoek ou Swakopmund, com grandes avenidas pavimentadas e edifícios de matriz colonial, herança do domínio alemão que imperou do século XIX ao fim da Primeira Guerra Mundial. Ao caminhar por ruas em que mal se vê um papel no chão, ao entrar nas casas de banho impecáveis das estações de serviço, sente-se um certo “orgulho”, uma “espécie de presunção cívica”, como descreveu Paul Theroux em O Último Comboio para a Zona Verde, “impressionado com o asseio, a organização e o bem-estar” da capital. Consegue ser uma nação de extremos, dos índices às paisagens. O PIB per capita é um dos mais altos do continente, bem como a taxa de literacia. No entanto, este é um país marcado por grandes desigualdades (até hoje, grande parte da riqueza e das terras mantém-se nas mãos da minoria branca). Da mesma forma, tanto é possível caminhar num tórrido deserto sem fim, como ir a uma praia e encontrar lobos-marinhos que julgávamos pertencer a outros climas ou visitar a OrumbondeBooks, uma pequena livraria em que à janela, bem visível, está uma orgulhosa bandeira arco-íris (numa cidade, Windhoek, num país, cristão, num continente, em que ainda há muito por fazer em termos de direitos LGBTI). Pela estrada fora há um território que tem tudo — e esta diversidade não só atrai, como preenche. Fizemos mais de três mil quilómetros sobre rodas; e tanto que ainda ficou por palmilhar.

Muitos viajantes fazem-no à boleia de operadores turísticos, outros optam por alugar um carro, com ou sem guia. Percebe-se. Salvo alguns cuidados (ver caixa), é um método seguro e relativamente económico. E dá sempre oportunidade para sacar a câmara fotográfica numa ou noutra paragem inesperada. Sejam girafas a atravessar a estrada. Macacos em cima de um sinal de trânsito. Visões que, de tão perfeitas, quase parecem réplicas de postais. É o que encontramos no Noroeste do país, entre Kunene e Erongo, área que por muitos continua a ser conhecida por Damaraland. Uma inóspita paisagem rochosa que não se cansa de nos pregar partidas. Daquelas que, mais uma vez, nos fazem questionar a permanência nesta realidade. Primeiro, de levezinho: pela janela surgem grandes montanhas esverdeadas, que orgulhosamente se erguem da terra, mas cujo cume parece ter sido alvo de uma machadada horizontal — totalmente liso. Eis o bloco de Grootberg, sabemos mais tarde. O assombro não pára, porém. É em Damaraland, entre Outjo e Khorixas, que se situa Vingerklip, uma formação rochosa com milhões de anos, um acto de equilibrismo por si só. Quase parece que o monólito de 35 metros pode balançar a qualquer momento, mas não; é um dedo gigante de pedra, não cai, só mete respeito. Tal como Spitzkoppe, conhecido como o Matterhorn da Namíbia, um conjunto de majestosos picos de granito que faz as delícias de alpinistas. E não só: ao redor podem ser vistos muitos exemplos milenares de arte dos san (bosquímanos), uma das muitas etnias que existem na Namíbia e que provam a sua diversidade (mas já lá vamos). Há que ter tempo para espreitar o maciço de Brandberg, a montanha mais alta da Namíbia, cujo pico ultrapassa os 2500 metros de altitude, e que é também uma gigantesca galeria de arte rupestre a céu aberto: aqui refugia-se a famosa pintura The White Lady. Para uma imersão completa na história arqueológica é obrigatório visitar Twyfelfontein, Património Mundial da UNESCO desde 2007, que tem uma das maiores concentrações de petróglifos de todo o continente. As gravações, que remontam à Idade da Pedra e são de autoria san, estão bem preservadas e retratam animais, como rinocerontes, elefantes, avestruzes, girafas, mas também humanos a caçar. Bem perto está também a Floresta Petrificada, uma surreal visão de troncos de árvore com 280 milhões de anos que fossilizaram e ali estão, de aspecto quase intacto, quase perfeitas pedras, entre muitas Welwitschia mirabilis, planta que só existe no deserto do Namibe e que é ela própria um fóssil vivo milenar. E a poucos metros da desoladora Burnt Mountain há uma outra visão extraterrestre: elegantes e alinhados pilares de dolerito expostos pela erosão. Como se estivéssemos perante um órgão de tubos em pleno deserto; Organ Pipes, assim se chama o local. Já fomos para outra dimensão, não é?

Damaraland é também a casa dos damaras, falantes de nama, língua de uma sonoridade surpreendente, recheada de cliques. Apesar da baixa densidade populacional, a Namíbia é dona e senhora de uma diversidade étnica riquíssima. Os namibianos não são apenas namibianos. São, entre outros, ovambo (o maior grupo), são kavango, são himba, são damara, são san, são baster. São herero e são nama, grupos que foram vítimas do colonizador alemão naquele que se diz ter sido o primeiro genocídio do século XX — o caso chegou ao tribunal norte-americano há uns meses. São brancos, são negros, são mestiços, mais claros, mais escuros. A língua oficial é o inglês, mas existem 13 reconhecidas a nível nacional, entre afrikaans, alemão, oshiwambo, nama, sendo que grande parte da população fala, ou pelo menos arranha, várias. Nesta zona, como noutras, é também possível ter um vislumbre destas culturas, visitando por exemplo uma aldeia himba. Apesar de alguma modernização (as mulheres, de grandes colares no pescoço, estão nas cidades a vender artesanato, compram produtos no supermercado), a icónica tribo seminómada, que vive da pastorícia, conserva tradições como usar uma pasta avermelhada feita de gordura e ocre para cobrir o corpo seminu e os cabelos, investindo em penteados altamente característicos e magníficos. A experiência pode ser agridoce: percebe-se que a chegada de turistas não é estranha. Será que deveria ser?

Do silêncio à cacofonia

Às vezes, parece que estamos num filme. Ou antes, a fazer um filme. A velocidade com que tudo muda lá fora, para lá da nossa caixa de aço com rodas, quase dá a impressão que estamos dentro de um carro de brincar, num qualquer estúdio de outros tempos, em que telas de vídeo exibem vistas em movimento. E assim avançam os protagonistas. Ainda agora víamos as montanhas vermelhas de Damaraland, tão rochosas e inóspitas, pontuadas por saltitantes springboks, e de repente já estamos junto ao mar, com um oceano de areia branca aos pés. E está frio.

No Parque Nacional da Costa dos Esqueletos há realmente esqueletos — de navios. Percebe-se como, ao escutar o ranger do Atlântico, animado pela corrente de Benguela. O nome vem das ossadas de baleias que aqui morriam, e também dos navios, claro. Com carinho, os navegadores portugueses chamavam a esta zona “As Portas do Inferno”. É que um naufrágio aqui equivalia a dar de caras com o cruel deserto do Namibe, a não encontrar água ou comida, a caminhar sem solução à vista. Ao longo dos cerca de 500 quilómetros de costa há muitos cadáveres de navios para encontrar, alguns mais visíveis que outros, todos morbidamente fotogénicos (também há quem os espie partir das nuvens em tours de avioneta).

Percorrer esta margem é também conhecer uma outra forma de silêncio, apenas interrompido pelo som do oceano e pela passagem de outra caixa a motor com rodas. Até que, à chegada ao cabo da Cruz, onde um padrão assinala a passagem de Diogo Cão, o primeiro europeu a pisar a costa da Namíbia em 1485, abre-se a porta e... tudo é diferente. Adeus, sossego, quietude, paz. Já nada disto existe, antes uma cacofonia estridente de… balidos? Serão berros? E este cheiro, um cheiro absolutamente… nauseabundo. Um odor que invade, sem piedade, o ar outrora límpido, diferente de qualquer um alguma vez farejado por estas inocentes narinas. Daqueles que ficam, percebemos depois, que se entranham em cada poro, pêlo, fiozinho de cabelo.

Desfecha-se então todo um aparato: milhares de lobos-marinhos estendidos no areal, que mal se distingue entre os corpos prostrados. Uns a imitar estátuas ao sol, outros enfurecidos com o vizinho do lado, crias a reivindicar atenção, surfistas na crista da onda. Existem três espécies destes mamíferos no sul de África e os lobos-marinhos-do-cabo (Arctocephalus pusillus pusillus) são uma delas. Nesta colónia, vivem durante todo o ano entre 80 mil a 100 mil animais. Lá voltamos nós, mas temos mesmo de repetir: estamos mesmo na Namíbia? Estamos. Mesmo que a 130 quilómetros daqui nos julguemos na Europa ao calcorrear Swakopmund, que os guias de viagem descrevem como “mais alemã que a Alemanha”. Faz sentido, muito.

Fundada em 1892, foi durante o período colonial alemão o principal porto do país; hoje, é um lugar charmoso no meio do deserto à beira-mar, uma verdadeira estância balnear algo burguesa. As praias são simpáticas, há avenidas abertas com palmeiras nos passeios, edifícios coloridos que exalam o passado colonial. Com 45 mil habitantes, muitos de raízes germânicas, é a quarta maior cidade do país, depois da vizinha Walvis Bay, ambas excelentes cidades para comer marisco (The Tug, fica a dica).

Claro que toda esta travessia provavelmente começa, e acaba, em Windhoek, o “canto do vento” em afrikaans. A discreta capital é extremamente bem organizada, equilibrando a sua história actual com os registos do passado. Inclusive no mesmo quarteirão, como se vê ao observar quase em simultâneo a arquitectura do novo Museu da Independência em contraponto com o Antigo Forte e a Igreja de Cristo, ambos concluídos no início do século XX. Por cá, todas as noites parecem começar, ou terminar, no Joe’s Beerhouse, uma verdadeira instituição na cidade, um restaurante e bar que tem o dom de juntar locais e turistas. Mas também aqui, tal como em todo o vasto território, há particularidades, mais ou menos surpreendentes, todas intrigantes: perpendicular à Rua Fidel Castro, está a Avenida Robert Mugabe, de onde se pode caminhar em menos de meia hora até às ruas Chopin, Brahms ou Puccini. Temos a certeza que estamos mesmo neste mundo?

 

Sossusvlei

O mais perfeito souvenir: areia das dunas de pele vermelha

Escreveu o britânico Lawrence Durrell que a “viagem pode ser uma das mais recompensadoras formas de introspecção”. Um estado de espírito que ganha um sabor particular ao atravessar a Namíbia de carro, durante horas e horas de caminho, cruzando a vastidão subsariana. Com a paisagem a alterar-se lenta e progressivamente, das pedregosas montanhas avermelhadas à cidade, do mar ao deserto. Tanto espaço lá fora e tanto para absorver cá dentro.

Talvez o clímax desta disposição contemplativa se dê em pleno deserto do Namibe, um dos mais antigos do mundo, que cobre a costa do país de Angola à África do Sul. Estamos na estrada C14 em direcção a sul e, para além do Trópico de Capricórnio, já para lá de Solitaire (ver Notas da Viagem), intrometemo-nos naquele que julgámos ser um berço de arco-íris. Um, dois, três, quatro nascem por trás das montanhas. Algo de mágico tem de estar para vir.

Era, como só podia ser, o Mar de Areia do Namibe, Património Mundial da UNESCO desde 2013, em pleno Parque Nacional de Namib-Naukluft. Eis-nos então em Sossusvlei, que hoje em dia já não designa apenas a bacia de argila alimentada, quando tal, pelo efémero rio Tsauchab, o mesmo que rasga o brutal desfiladeiro de Sesriem; hoje, falar em Sossusvlei é apontar para o magnífico oceano de dunas de pele vermelha, cor que advém da alta de concentração de ferro na areia e do respectivo processo de oxidação.

O contraste com o céu azul impressiona, sobretudo ao nascer do sol ou ao final do dia, quando a sombra escorre pela inclinação serpenteante de um dos lados. A altura também: Big Daddy, a maior, chega aos 325 metros; a mais conhecida, a Duna 45, tem 80. Há quem as palmilhe a partir do ar, em tours de avioneta e deslumbrantes viagens de balão, há quem as aviste em trajectos de moto quatro, mas nenhuma das hipóteses deve substituir o acto de pisar a duna, andar na duna, escalar a duna; e descer a correr, deslizar, caminhar. Rebolar, quiçá.

Nem sempre é fácil: há que seguir as pegadas, subir pela borda, que tantas vezes parece demasiado estreita, deixar enterrar os pés, vencer o calor que se faz sentir. Enfrentar o vento que acaba por conceder ao peregrino uma inesperada recompensa: areia, nos bolsos, no cabelo, na mala. Um generoso souvenir.

Mas bem mais valiosa é a vista do topo, um perfeito horizonte ondulante de dunas coradas, moldadas e mantidas pelo vento, que por aqui sopra em várias direcções. São elas que escondem o algo arrepiante Deadvlei, bem mais famoso do que o recatado Hiddenvlei, e também mais cénico. O jogo de contrastes ajuda. Colossos de areia rubra ao fundo (a Big Daddy ainda parece maior), árvores negras sem vida, chão perfeitamente alvo e liso. E a coroar tudo isto uma gritante moldura azul.

Trata-se de um “charco morto”, como o nome indica, uma outra bacia de argila branca, mas com uma história diferente. Noutros tempos, a água do Tsauchab chegava até cá depois das chuvas, criando pequenas piscinas rasas. Foi o suficiente para nascerem Vachellia erioloba, ou seja, típicas acácias. O clima mudou, no entanto. As dunas ganharam vida, começaram a cercar a zona e bloquearam a passagem do rio. E as árvores, essas, acabaram por morrer e secar. Hoje, os seus esqueletos cor de ébano, com centenas, quase mil anos de idade, são o testemunho doutro mundo. Não é por acaso que Deadvlei já foi cenário de filmes de ficção científica — é doutro mundo.

 

Notas de viagem

Um pneu furado com sabor a tarte de maçã em Solitaire

“Welcome to Solitaire”, deseja o letreiro, ao lado de uns quantos destroços de carros antigos, enterrados na areia. Charmosos, claro, como qualquer poética ruína. Um pneu furado, pão nosso de cada dia para qualquer viajante de carro na Namíbia, determinou uma paragem mais prolongada aqui, a única civilização com posto de gasolina na estrada que liga Walvis Bay às famosas dunas de Sossusvlei, a quase 400 quilómetros de distância. E ao fim de três horas de viagem, com mais duas pela frente, por caminhos de gravilha com muitos altos e muitos baixos, a mensagem de boas-vindas soa algo irónica, sobretudo a olhar para o cenário apocalíptico que a circunda. E o nome, Solitaire. Que, viemos a saber depois, tem toda uma novela por trás, tendo inspirado inclusive o primeiro livro do escritor e realizador holandês Ton van der Lee, o terceiro habitante (de sempre) desta pequena terra.

Por se encontrar à entrada do Parque Nacional de Namib-Naukluft, onde se encontra parte do antiquíssimo deserto do Namibe, Solitaire é um ponto de paragem obrigatório para muitos turistas. O que quer dizer muito para uma terra no meio do deserto que não aloja mais do que cem habitantes e que se resume ao tal posto de gasolina, um mecânico, uma loja, uma capela e um lodge. E, claro, à padaria-pastelaria Moose Macgregor Desert Bakery, conhecida pela tarte de maçã, “a melhor da Namíbia”. Confirma-o Yvette Naris, a jovem supervisora da pastelaria, que todos os dias prepara tabuleiros e tabuleiros desta iguaria. “Vem gente de todo o país para a comer”, afiança, enquanto serve mais um cliente. “Acabou de sair, está quentinha.”

Natural de Tsumeb, a jovem chef recém-formada concorreu a este trabalho e foi aceite. Deixou a cidade natal há oito meses para se mudar para o deserto, a quase 700 quilómetros de distância. É “difícil”, confessa, as saudades da família apertam. Só voltará a vê-la em Julho: ao fim de dois meses de trabalho (com folgas pelo meio) tem duas semanas livres, que usa para cruzar parte do país durante dois dias de viagem. “Tem de ser”, vai dizendo, de sorriso aberto e olhos carregadinhos de futuro. Um dia, quer ter o seu próprio negócio: “Uma pequena pastelaria e um pequeno restaurante”. “No deserto não”, talvez na sua cidade. A avaliar pela tarte (provada e aprovada), terá sucesso. Quem diria que um pneu furado saberia tão bem?

 

Dez dicas para viajar na Namíbia

- Cumprimente. Os namibianos são simpáticos e apreciam-no.

- A condução é feita pela esquerda e há quase sempre uma história com um pneu furado para contar. Ponha a mecânica em dia.

- Viajar pelo país de carro pode ser altamente introspectivo — e solitário. Prepare uma boa playlist ou descarregue uns quantos podcasts.

- É um país grande, com pouca gente, por isso não espere encontrar muitas civilizações ou bombas de gasolina. Abasteça com fartura, leve água e comida e aproveite as paragens para ir à casa de banho; caso contrário, há o mato (e animais).

- Leve um telemóvel desbloqueado e compre um cartão local com pacote de dados. Nem sempre vai estar contactável, uma vez que não há rede em todo o lado, mas a ligação à Internet pode dar jeito. Há wifi nos lodges e cidades, mas nem sempre funciona na perfeição.

- Ir à Namíbia não é sempre sinónimo de calor. Consulte a meteorologia e invista em roupa leve e variada, inclusive calças e camisolas com mangas (atenção aos mosquitos!), sapatos fechados e, pelo menos, um lenço.

- Em mercados e bancas de rua, negoceie. E boa sorte para conseguir enfrentar o poder comercial das himba.

- Provavelmente, num belo dia, alguém lhe há-de perguntar como se chama para, minutos depois, lhe tentar vender uma bonita noz de marfim-vegetal trabalhada. E já com o seu nome inscrito. É um esquema — mas até faz sorrir.

- Apesar da criminalidade crescente, sobretudo em cidades como Windhoek, a Namíbia é um país seguro. Tome as precauções habituais, sobretudo à noite.

- Os namibianos são, por norma, pontuais, e não esperam (muito). Se tiver um encontro, já sabe...

 

Guia prático

Como ir

Não há voos directos entre Portugal e a Namíbia, por isso terá sempre de fazer pelo menos uma escala. Uma boa alternativa poderá ser partir de Lisboa e fazer escala em Luanda com a TAAG. A Across tem vários programas para a Namíbia, entre eles um de 14 dias em viagem pelos locais mencionados com preços a partir dos 3485 euros. Para mais informações, contacte a Across através do telefone 217 817 470, pelo email travel@across.pt ou consulte o site www.across.pt.

Quando ir

Não é uma pergunta fácil: depende do que quer fazer e que parte do país quer visitar. A melhor altura para ir em geral é de Abril a Outubro, sendo que a época alta começa por volta de Junho/Julho, logo os preços estão mais elevados.

Onde ficar

Os lodges que proporcionam um contacto mais próximo com a Natureza, logo a vida selvagem, constituem grande parte da oferta turística, nomeadamente fora das grandes cidades. De todos os alojamentos que conhecemos nesta viagem, recomendamos, na zona de Etosha, o La Rochelle Luxury Lodge e as várias ofertas (para vários bolsos) da Ongava Game Reserve; em Damaraland, o Palmwag Lodge & Camping; e em Sossusvlei, o Le Mirage Resort & Spa. O pequeno-almoço no Strand, em Swakopmund, torna perfeita a manhã do mais acabrunhado.

A Fugas viajou a convite da Across e da TAAG

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