Fugas - Viagens

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    Marialva Paulo Ricca

De Belmonte a Castelo Novo, pelos caminhos de Portugal

Por Mara Gonçalves

Para celebrar o Dia de Portugal, passeamos por dez das doze aldeias históricas da região beirã. Núcleos ancestrais de castelo no alto, com ar de presépio e vistas panorâmicas sobre a rusticidade da natureza. Mais do que passado, são histórias com gente dentro. De braços abertos para nos receber.

Belmonte
Nos passos de Álvares Cabral

O que faz um museu dedicado aos Descobrimentos portugueses numa aldeia a 125 quilómetros do mar, medida a distância em linha recta? Belmonte foi berço de Pedro Álvares Cabral, o navegador que descobriu o caminho marítimo para o Brasil em 1500. E o “filho da terra” foi “mote” suficiente para a criação do centro interpretativo À Descoberta de um Mundo Novo, em 2009, conta Manuel Franco, guia consultor nas Aldeias Históricas de Portugal. Com um grande foco no Brasil, o museu traz a Belmonte cada vez mais turistas de terras de Vera Cruz. São brasileiros os únicos turistas com quem nos cruzamos numa das salas interactivas do museu. É com uma família brasileira que nos cruzaremos pouco depois no castelo.

“Portugal está na moda mas Belmonte também recebeu um boom turístico nos últimos quatro anos, por causa do património judaico e dos Descobrimentos. Temos muitos [turistas] israelitas e brasileiros”, conta Valter Santos, 31 anos, um dos proprietários da Cabralina, loja de produtos regionais e marca da cerveja artesanal produzida com receita da casa. Valter também é “filho da terra”. E a ela, diz, “temos de voltar sempre”. Depois de seis anos a viver em Castelo Branco, regressou no final de 2014 para organizar um festival de cerveja artesanal em Belmonte. Entretanto, o Festival do Caneco tornou-se itinerante, viajou até Évora e Nazaré. Mas Valter fez finca-pé em Belmonte. “Até porque a região está a mexer”, reitera. Lançaram a marca de cerveja artesanal Cabralina  e no ano passado criaram a “primeira cerveja kosher do país”, feita à base de mel e de zimbro.

Uma das mais importantes comunidades judaicas do país continua a viver em Belmonte e a herança histórica dos judeus sefarditas tem sido bandeira turística do concelho nos últimos anos. A presidência da Rede de Judiarias de Portugal está sediada em Belmonte. As lojas com produtos kosher multiplicam-se pelo centro histórico. Tem uma sinagoga, o primeiro Museu Judaico do país, um centro de estudos. Mas hoje seguimos sobretudo no encalço do património histórico ligado a Pedro Álvares Cabral.

“O castro de Belmonte foi conquistado logo com Afonso Henriques, mas a fronteira portuguesa flutuou muito nesta zona, entre as linhas de defesa do Mondego e do Côa, por isso as fortificações nesta região foram importantes até muito tarde”, descreve Manuel. “Foi nesse contexto que veio para cá a família dos Cabrais, que se tornaram alcaides de Belmonte no século XIII.” Pedro Álvares Cabral terá nascido no edifício branco colado à muralha, hoje espaço de exposições. Não muito longe fica a Igreja de Santiago erigida pela família e, ao lado, o Panteão dos Cabrais. A ligação ao outro lado do Atlântico é inolvidável. No topo da torre de menagem, três bandeiras dançam entre os andorinhões: Belmonte, Portugal e Brasil.

 

Sortelha
Manuel e Arminda querem falar com turistas

É com as mãos enlaçadas no bracejo que Arminda mata o tempo. “Quando estou stressada venho para aqui descarregar no bracejo”, conta, enquanto vai unindo o caracol de rama verde com uma agulha. Arminda Esteves, 68 anos, é a única habitante de Sortelha que ainda faz o artesanato típico da região com o bracejo, uma fibra vegetal autóctone. Ainda esta manhã esteve lá em baixo, nos campos, a apanhar sacas de fios verdes delicados.

Apesar de terem outra casa nos arrabaldes de Sortelha, onde governam a vida, Arminda e o marido, Manuel Fernandes, entram na contagem de habitantes intramuros. No século XVI, chegaram a morar 78 famílias na localidade de traçado medieval. Hoje, a população reduz-se a quatro pessoas. O casal sexagenário e “os senhores do Bar do Forno”. “Vão morrendo os velhotes e os novos não se governam por cá”, vaticina Arminda. Ao longo das ruas, a grande maioria dos edifícios tem as fachadas e os telhados impecavelmente recuperados, mas falta em vida o que sobra em reabilitação. Há uns anos, recorda, “foi tudo comprado por uma sociedade”. Muitas habitações continuam fechadas à espera de um bom negócio, outras são herança de família e residências de férias. “Tenho um vizinho que mora na Guarda, mas quando está stressado vem cá dormir”, ri-se Arminda.

O sossego de Sortelha pesa como o sol que arde contra o solo de pedra. Encontramos um ou outro casal de turistas entre o silêncio dos gatos vadios, mas só na penumbra do Bar Boas Vindas voltamos a encontrar gente da terra. Ana Maria Clara, 53 anos, nasceu em Sortelha e sempre viveu aqui por perto, já fora das muralhas. Trabalhou na agricultura, na restauração, nos arraiolos. No que fosse preciso “para sobreviver”. Em 1998, abriu com o marido este pequeno café com esplanada junto à Rua da Mesquita. Vêm cá todos os dias. “Tem mesmo de ser, é preciso gostar muito disto.”

Tal como Arminda, Ana Maria andou na escola primária da aldeia até à quarta classe. Mas a realidade já era muito diferente. É que quando Arminda entrou para a escola, não havia carteiras disponíveis. “Eram tantas as crianças que tínhamos de sentar-nos no chão”, recorda. As casas estavam “todas habitadas” e os miúdos corriam “descalços pelas ruas”. Quando chegava o Verão, “as pessoas sentavam-se cá fora à noite”, na soleira das portas. “E a primeira a fazer o jantar é que gastava o fósforo – as outras vizinhas levavam uma brasinha para acender o delas”, conta. Havia gente “muito pobre”, resume, mas “era lindo, isto aqui”.

Sentados à sombra da antiga casa da câmara e da cadeia — depois escola primária e hoje Junta de Freguesia —, Arminda e Manuel trabalham em equipa. Ela dá forma a cestos, caixas, candeeiros. Ele prepara “os molhinhos” com a matéria-prima para lhe dar. “Está a fazer fisioterapia”, graceja Arminda. Nunca desarma o sorriso do rosto, onde se contam mais rugas do que idade. A verdade é que “nem gramava nada disto”, confessa. Quando era mais nova, aprendeu as técnicas ao ver “as velhotas a trabalhar” ali na rua, mas ela, miúda despachada, “queria lá saber das palhas”. Até que dois AVC toldaram os movimentos de Manuel, 69 anos, e Arminda “agarrou-se a isto” do bracejo.

De manhã, trabalha na agricultura, arranja a casa. “No tempo que me sobra venho para aqui.” É uma distracção bem-vinda. Uma terapia de mãos e de espírito. Um dia, Manuel resmungou-lhe: ao fim de tantos anos de casamento, tinham dito tudo um ao outro. Agora, entretêm-se a falar com os turistas que passam pela loja de artesanato, no Largo do Pelourinho, onde vendem peças tradicionais em bracejo, bordados, bijuterias e as compotas confeccionadas pela presidente da Junta de Freguesia, Fernanda Esteves. “Ainda é prima da minha mulher”, reage Manuel quando lemos o nome escrito na etiqueta. No caminho para o castelo ou em direcção à Porta Nova, todos os turistas passam por aqui. “Durante a semana vêm menos. Esta semana só brasileiros e espanhóis.”

 

Almeida
“Saio da porta e estou a viver”

Passamos ao largo do balcão da Caixa Geral de Depósitos, que tanta polémica gerou nas últimas semanas, sem darmos por ele. Mas não é preciso nem meio dedo de conversa para esbarrarmos no assunto. “Faz muita falta, é uma vergonha”, revolta-se Paula Silva na esplanada da Casa da Amélinha. Fundada em 1883, já teve vários nomes mas mantém-se a tasca mais afamada de Almeida, tão célebre que teve de expandir-se ao café da frente. E sempre pelo mesmo motivo: a ginginha. “A dona Amélia está no lar. Agora é a Olívia que a faz, com a receita da mãe”, conta Paula. Mas ainda não provámos o licor e já a conversa derrama na política. É que “faz mesmo falta”, o balcão da discórdia.

“Muitas pessoas deslocam-se a Almeida no dia 8 [de cada mês] porque é a feira municipal e o único dia em que há transporte público para cá”, diz Paula. “Aproveitam para tratar de coisas nos serviços da Câmara Municipal, no tribunal, nas finanças, na Caixa.” Agora têm de tirar outro dia para ir até Vilar Formoso, a vila mais populosa do concelho, onde permanecerá o segundo balcão da CDG, apesar de não ser sede de concelho. Dentro da estrela de muralhas de Almeida estima-se que hoje não vivam para lá de uma centena de pessoas. Mas estão aqui sediados quase todos os serviços municipais. Há um minimercado, uma farmácia, um restaurante, um hotel. “Só o posto da GNR e o hospital é que estão fora das muralhas.”

Paula Silva, de 48 anos, nasceu em França mas a família regressou quando tinha 12 anos. Viveu no centro histórico grande parte da adolescência e é aqui que ainda trabalha, na autarquia. Mas quando chegou a hora de comprar casa, preferiu instalar a família além-muralhas. Aqui há que obedecer a regras de protecção do edificado histórico. “Lá fora, cada um constrói como tem vontade, não é?”

É da “arquitectura militar” da Praça-Forte de Almeida e da “rudeza” das condições na região que José Pereira, com 69 anos, mais gosta em Almeida. Natural do Porto, veio pela primeira vez à vila raiana em 1987, quando um amigo o desafiou a visitar a terra natal. Foi um passo até juntar-se à Associação dos Amigos de Almeida. “Fizemos um levantamento no concelho de tudo o que eram fontes, esculturas e arquitectura antiga”, recorda. Para quê? “Tirar Almeida do marasmo”, repete de quando em vez. Organizavam encontros, homenagens, pequenas iniciativas.

A reabilitação do antigo Trem de Artilharia e Arsenal, erguido no século XVII, foi uma das lutas. “Queria que o recuperassem e usassem, nem que fosse como multiusos”, recorda. Em 1998, renasceu como Picadeiro d’El Rey, um complexo hípico com centro de BTT integrado. Em 2006 convidaram José Pereira para o cargo de director. “Nunca tinha montado a cavalo”, ri-se. “Vim para a gestão, depois tive de aprender.” É por cima das cavalariças, num apartamento de apoio, que José Pereira passa agora a maioria das noites. Vai muitas vezes ao Porto, onde ainda vive a família. Gosta de viajar. Mas não troca Almeida por nada. “Aqui saio da porta e estou a viver.”

 

Marialva
De olhos postos no céu

O castelo e a cidadela em ruínas hão-de brindar-nos a chegada. Para já, despedimo-nos da pequena aldeia que se desenvolveu fora das muralhas e enveredamos pelo Caminho Histórico de Marialva, um dos 51 percursos pedestres de pequena rota que serpenteiam as doze localidades que pertencem às Aldeias Históricas de Portugal (AHP), associação de desenvolvimento turístico criada em 1995.

A unir a dúzia de aldeias num traçado circular com 565 quilómetros de comprimento está a Grande Rota 22, a primeira a ser criada em Portugal, no ano 2000, expandida e remarcada em 2014. Mas desta vez ignoramos a placa que indica o longo percurso e descemos a encosta pelo antigo caminho medieval. O vale do Côa aninha-se em prados aos nossos pés, terminando na serra da Marofa. Manuel contava-nos a história de Marialva — foi povoada pelos aravos, tribo celta, posteriormente conquistada pelo romanos e depois pelos muçulmanos até integrar a coroa portuguesa no século XII — quando uma ave de rapina sobrevoa o discurso. Binóculos no céu, guia de aves aberto. À terceira tentativa chega o veredicto: é um britango, conhecido como grifo do Egipto. Uma ave protegida no Vale do Côa mas que raramente se avista em Marialva. São dezenas as espécies de pássaros que se observam nesta região beirã, entre as quais se destacam quatro famílias de aves de rapina. “A melhor forma de as distinguir é ver o formato da cauda.” Para os principiantes, Manuel desenha na terra: os grifos têm-na em forma de losango, as águias em leque, os milhafres uma cauda de peixe e os falcões um rectângulo.

É de olhos no céu que chegamos à Devesa de Marialva, no sopé do castelo, para onde a população cresceu em casas nobres junto aos campos. Continuamos por vinhas, oliveiras e amendoeiras até subirmos de volta ao castelo por trilhos entre o mato rasteiro. A fortificação foi sendo sucessivamente alterada desde o século XII, quando D. Afonso Henriques passa a primeira Carta Foral e completamente abandonada no século XVIII. “Na vila [também] já só viviam oito vizinhos [famílias]”, cita Manuel. A maioria da população mudou-se para a Devesa e o traçado medieval da cidadela chega-nos quase inalterado, embora grande parte dos edifícios se resumam a escombros de pedra. Do alto da torre da menagem, vê-se o Pelourinho, a casa da câmara, o tribunal, a cisterna, vestígios de habitações e duas capelas mais recentes.

Foi aqui que, um dia, Maria Alva Pé de Cabra decidiu terminar a própria vida, atirando-se do castelo. A lenda serve de mote ao evento que, a 22 e 23 de Julho, leva a Marialva o programa cultural “12 em rede, aldeias em festa”, que até Dezembro corre todas as localidades integradas na associação. O objectivo, conta Arménio Coelho, gestor de projecto nas AHP, é “explorar a identidade imaterial de cada aldeia” e destacar uma lenda, episódio ou personagem histórico. Contrariar a banalização das feiras medievais e o foco habitual no património monumental com um conceito diferente, de “residente temporário”. “Não queremos levar as pessoas ao passado mas trazer o passado às pessoas de hoje”, que “querem experienciar” e “conviver” com os locais.

 

Castelo Mendo
O guardião do Côa

A Porta da Vila, entrada principal de Castelo Mendo, é guardada por quatro cabras. Maria Teresa gosta de deixá-las à solta — e sobre isso ouviremos, mais tarde, queixas entredentes de vizinhos. Hoje, os animais descansam em frente à muralha e é esse o primeiro quadro que teremos de Castelo Mendo. O rebanho guardador de uma aldeia histórica. Três adultos, cada um de sua cor, mais o cabrito, que se afastam para deixar entrar a carrinha do pão. Ao longo da semana, Maomé traz à montanha pão e produtos de mercearia — hortaliças, frutas, massas, arroz. O supermercado mais próximo fica a quilómetros de distância.

Houve tempos em que o cenário não podia ter sido mais oposto. Quando se olha a vista panorâmica da antiga cidadela, percebe-se que a fortificação “só podia estar aqui”. “Castelo Mendo é o guardião do Côa”, define Manuel Franco. O rio formava uma fronteira natural de norte a sul e a encosta era não só ponto privilegiado de defesa como de travessia comercial dentro do território português. Tanto que terá recebido a primeira Feira Franca do país, por foral de D. Sancho II, em 1229 (embora Trancoso — e Viseu — disputem semelhante epíteto).

Hoje viverão menos de 50 pessoas na aldeia amuralhada. “O mais novo tem cinco anos. Cerca de 85% são idosos”, contabiliza Rosa Ramos, de 40 anos, antiga presidente da Junta de Freguesia e proprietária do alojamento turístico Casa do Corro. Foi com D. Dinis que foi nomeado o primeiro alcaide do castelo, D. Mendo, daí o nome da aldeia, conta-nos Rosa quando Maria Teresa surge à porta de casa e nos convida a entrar. Sobre a mesa, há compotas, queijos e ginginha, tudo feito por ela. E pão de centeio, receita da mãe, que feito no forno moderno de casa já não sabe a infância. “Eram tão boas aquelas torradinhas”, recorda. O pão durava 15 dias “sem abolorecer ou ficar duro”.

Hoje o forno comunitário da aldeia é só para turista ver. A reconstrução foi mal feita e a chaminé estalou à primeira utilização. Mas Maria Teresa, de 63 anos, ainda se lembra de o ver funcionar. “Punham um ramo de giestas na parede para marcar lugar.” De duas em duas semanas, a mãe estendia a massa, enquanto o pai “ia buscar o feixe à cabeça” e tratava do forno. Dois carros de giesta verde davam para coser uma fornada de mais de 20 pães.

Velhas querelas políticas com a sede de concelho, Almeida, estrangulam, no entanto, o magro orçamento da freguesia, queixa-se a população. Amílcar Almeida, presidente da Junta, faz o que pode. Mas a estudar Medicina Veterinária no Porto, com regressos a Castelo Mendo todos os fins-de-semana, o jovem político de 27 anos não pode muito. O Museu do Tempo e dos Sentidos, criado no edifício onde funcionava a câmara, o tribunal e a cadeia, abre à tarde no fim-de-semana e quando Sandra Morgado, 38 anos, vê turistas a deambular pela aldeia. “Quando há, venho e pergunto se querem conhecer o museu.” O pai é o dono do único café, ela é assistente do presidente da Junta de Freguesia. “Quando me levanto, venho deixar a minha filha no autocarro, depois vou pôr as ovelhas no lameiro.” Também cuida do cemitério, do jardim da escola. O que for preciso para “representar o povo”.

 

Castelo Rodrigo
Amêndoas e uma história de amor

Foi o amor que fez André Carnet, de 78 anos, trocar França por Castelo Rodrigo. “Encontrei uma rapariga portuguesa em Paris e casei-me com ela”, ri-se. Em 1982, compraram “uma casita” na terra natal de Maria Helena, 56 anos, e todos os anos vinham de férias. Mas André sentia que a aldeia estava demasiado abandonada para o potencial que tinha. Queria dar-lhe “um bocadinho de vida”. Em 2000, abriu a loja e salão de chá Sabores do Castelo. Dois anos depois, o “doutor em Economia e Direito pela Sorbonne”, com carreira feita na banca e em empresas de engenharia agrónoma, reformou-se e mudou-se para Castelo Rodrigo. “Há 15 anos que estou preso aqui. Trabalho 12 horas por dia, sete dias por semana”, queixa-se em gargalhadas, os óculos descaídos sobre a ponta do nariz. Ironia do destino, foi Maria Helena quem se cansou da vida de aldeia e mudou-se para Caxias, onde tem um atelier de pintura em azulejo.

À loja não param de chegar turistas alemães. Não serão muitos os que têm menos de 60 anos. À tarde, André prevê a chegada de “sete autocarros de americanos e ingleses”. “Vêm todos dos passeios de barco no Douro. Param em Barca de Alva e vêm directamente para aqui.” E, a avaliar pela fila junto à caixa, serão poucos os que não levam um dos pacotes de amêndoas criadas por André. A ideia surgiu com uma memória. Em 1946, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, havia um vendedor ambulante na Praça da Ópera, em Paris, que fazia e vendia praliné de “fraque, chapéu e luvas brancas”. André dispensou a indumentária mas ficou com as amêndoas forradas a capa de açúcar. Diz nunca ter encontrado “amêndoa tão boa” como a do Douro, produzida aqui na região. “Larga, fina, com muito sabor”. Era o produto regional ideal para apostar num negócio. Começou com a receita tradicional e diversificou a oferta ao gosto dos clientes. Os portugueses gostam de canela? Amêndoas de canela. Os espanhóis pediam com flor de sal, picantes, um californiano perguntou se não tinha fumadas. “Não se preocupe que daqui a umas semanas já tenho”, ri-se. Hoje há 11 variedades à venda. Com as amêndoas e os chás, oferece folhetos informativos sobre Castelo Rodrigo, que ele próprio escreveu e imprimiu. “As pessoas queriam descobrir, compreender e não havia material em diferentes línguas. Então fiz eu. É a minha maneira de ver o turismo”.

Num dos panfletos, André faz um resumo da história de Castelo Rodrigo, aponta num mapa os principais lugares de interesse. A localidade pertenceu aos Rodrigos de Castela até ao Tratado de Alcanizes, que em 1297 delimitou a fronteira entre Portugal e Espanha. Da fortificação nada resta além de ruínas. O antigo palácio terá sido incendiado pelos portugueses durante a Guerra da Restauração e, mais tarde, dinamitado pelos espanhóis após a derrota na Guerra dos Sete Anos. Para lá da Porta da Traição, uma gruta conta uma lenda: “Reza a história que ligaria o castelo à hospedaria do convento, permitindo ir buscar ajuda e mantimentos durante os cercos”, conta Manuel Franco. Escavações e estudos científicos provaram não passar de uma boa história. Nas ruas da aldeia, encontram-se igrejas, cafés, lojas de artesanato, casas senhoriais de fachada cuidada. Janelas manuelinas e vestígios árabes. Miúdos a saltar muros. Há vida.

 

Trancoso
“Fugiu tudo para o estrangeiro”

A importância de uma fortificação também se pode avaliar pela quantidade de marcas de canteiro que se encontram inscritas na porta principal da muralha, já nos haviam dito. Revelam quantos mestres trabalharam na obra ao longo dos séculos: quanto mais marcas diferentes tiver, mais importante seria, numa escala permeável a imprecisões empíricas. Nas Portas d’El Rey, embora algumas se repitam, as marcas de canteiro sobem o arco de pedra até as perdermos de vista. Palco de várias batalhas e importante centro mercantil, cenário escolhido para o casamento de D. Dinis e D. Isabel, Trancoso é a aldeia histórica que tem o foral mais antigo, atribuído por D. Afonso Henriques no século XII. Foi elevada a cidade em 2004, um ano depois de entrar para a rede das Aldeias Históricas de Portugal. Inicialmente englobava dez localidades, mas para manter o acesso a financiamento comunitário tinha de chegar a mais população. Os centros históricos amuralhados de Trancoso e Belmonte fecharam o leque.

Vivem “cerca de 3500 pessoas” na cidade de Trancoso, aproximadamente 1500 dentro das muralhas, estima o presidente da autarquia, Amílcar Salvador. Mas a grande maioria é “gente antiga”, dizia-nos, momentos antes, Maria Celeste Santos, de 75 anos. “Havia crianças que era uma coisa doida, agora não há cá nada. Fugiu tudo para o estrangeiro”, lamentava Maria Celeste junto à Rua da Alegria, a mais florida viela de Trancoso, repleta de hortênsias ainda por desabrochar. Os quatro filhos vivem todos no concelho, netos e bisnetos também, mas há muita gente emigrada, garante.

Hoje, Trancoso é “uma terra muito sossegada”, remata Maria Celeste, debruçada no parapeito da janela. Gosta de vir para aqui enganar as horas a ver os turistas e estrangeiros passar em direcção ao castelo. Por ano, contabiliza o autarca, “mais de 20 mil pessoas” visitam a fortificação, de entrada livre. E há ainda um importante número de visitantes judeus, “entre sete a dez mil por ano”, que acorrem a Trancoso para visitar os vestígios da antiga comunidade judaica, a mais importante da região no século XVI. Já dizia Maria Celeste que “nos tempos antigos” era ali “rua de judeus”, “porta sim, porta não”. Algumas casas do centro histórico ainda conservam cruciformes gravados na fachada granítica. Marcas que, durante a Inquisição, os judeus “colocavam em frente às portas para dizerem que eram cristãos”, aponta Manuel Franco. A Casa do Gato Preto, a réplica de uma antiga sinagoga, ou o Centro de Cultura Judaica Isaac Cardoso testemunham a importância da antiga comunidade em Trancoso.

 

Linhares da Beira
O toque do sino na aldeia do “Totoqueijo”

Implantado sobre um maciço granítico, a 820 metros de altitude, o castelo de Linhares da Beira é dos que mais impressiona, com duas torres robustas erguidas aos céus. Uma foi torre de menagem, a outra ainda hoje dá horas à aldeia. O relógio, com um sistema construído no século XVII, é acertado uma vez por semana. A rapariga do posto de turismo sobe à torre para erguer os pesos do relógio mecânico e o tempo recomeça, marcado a toque de sino de meia em meia hora. O castelo era composto por dois recintos amuralhados, com alcáçova e estrutura militar, mas dos antigos edifícios restam apenas ruínas.

Junto à entrada principal para a fortificação, a tarde de domingo vai já bem regada na Associação dos Amigos de Linhares. Um lar de idosos abriu hoje portas na aldeia e ao balcão do café oferecem-se as fatias de carne que sobraram do almoço de inauguração. Sempre dá para tentar enganar os copos de ginginha e aguardente caseira. Atrás do balcão está Paulo Cardoso, 33 anos, que este ano se estreia nestas andanças e junta mais um biscate à “série de part times” que o ocupam no resto da semana.

A tasca da associação “só abre ao domingo” e todo o lucro angariado serve para ajudar a “patrocinar a festa de Santa Eufémia”, que se celebra no final de Agosto, conta. Os conterrâneos emigrados nos Estados Unidos sempre enviam algum dinheiro e quem vive em França traz mais algum quando chega de férias. À sexta-feira, o “Totoqueijo” dá uma ajuda. As apostas marcam-se no quadro atrás do balcão e quem tiver escolhido “o quinto número do Euromilhões ou do Totoloto” leva um queijo da serra. À hora do jantar, Paulo fecha a porta e deixa-nos na esplanada improvisada. Vem recolhê-la depois, não nos preocupemos. Agora tem “de ir tratar das cabras”.

De manhã, o café O Mimoso é ponto de encontro na aldeia. A maioria das mesas é ocupada por idosos, que bebericam o café e rumam aos afazeres do dia. Gaspar, de 15 anos, gostava de ter amigos da idade dele com quem brincar na aldeia. Os outros miúdos têm a idade do irmão, Tomás, de oito anos, ou são mais novos. Estuda em Celorico da Beira e não se importava de morar perto do centro comercial para onde vão muitas vezes os colegas da escola depois das aulas. Mas a falta de movimento em Linhares também traz as suas vantagens, reconhece. “Podemos estar sempre na rua.” E fazer remates contra a muralha-baliza.

O pai, Paulo Mimoso, foi durante 12 anos presidente da Junta de Freguesia. Há sete que tem o restaurante Cova da Loba. O gosto pela cozinha, o contacto próximo com os produtores da terra e a vontade de “dinamizar Linhares” lançaram-no no mundo da restauração. “Ganho uma satisfação imensa, dinheiro nem tanto”, graceja Paulo, 46 anos. A sala está composta. Numa das mesas, janta uma família de holandeses. O bebé loiro foi o último a nascer na freguesia. “Nasceu cá, atrás das giestas, há umas seis semanas”, conta Paulo. Nos últimos anos, tem crescido o número de holandeses e ingleses a viver em comunidade junto ao leito das ribeiras das freguesias de Linhares e Figueiró. São dezenas, maioritariamente jovens, e mantêm um contacto regular com a população beirã. Para Paulo, mais tarde ou mais cedo, serão eles os futuros moradores do centro histórico.

 

Monsanto
O apogeu da construção na pedra

Monsanto é ilha de pedra num mar de campos. O “apogeu” do “engenho da construção na paisagem”, define Manuel Franco, enquanto subimos a natureza íngreme, entre ruínas e panorâmicas de cortar a respiração. Se pudermos dar uma dica, será esta: suba ao castelo pelo percurso pedestre que passa pelos Penedos Juntos e desça pela aldeia medieval. Natureza e história no seu esplendor.

É à sombra das ruas estreitas que Arnaldo Oliveira, 74 anos, passa parte dos dois meses de férias em Monsanto. Nasceu na aldeia, mas mudou-se cedo para Sintra. “Isto aqui é um atraso de vida” para dar corda a todos os dias do ano, lamenta, embora reconheça estar “muito melhor”, com “melhores condições de vida”. Para Margarida, 67 anos, as férias na terra do marido são sobretudo “um sossego”. “Dá para ir dar um passeio, ir ao café. Lá já dá medo de andar sozinha”, conta. Quando reabilitaram a pequena casa no centro histórico tiveram de partir o rochedo que entrava cozinha adentro e subir o quarto em mezanino. Mostra-nos os cantos à casa onde nada falta, mas que no Verão aquece além do suportável. E o casal regressa a Sintra.

Helena Agnelo, 39 anos, e João Roque,  45, fizeram o percurso contrário. Tinham “o sonho antigo de sair da cidade” de Sacavém e Monsanto foi o destino escolhido. “O nosso primeiro fim-de-semana como namorados foi aqui”, recordam. Quando foram rever as fotografias da viagem, perceberam que muitas foram tiradas a placas “vende-se” nos edifícios. “Já fazia parte de nós sem nos apercebermos”, contam à mesa da Taverna Lusitana, que abriram em 2009. Afonso, de cinco anos, já nasceu em Monsanto. “É uma das quatro crianças que vivem aqui em cima.” As querelas com a vizinhança, por se manifestarem contra a localização da antena de telecomunicações instalada em 2013 próxima do castelo, tem-lhes dado alguns dissabores, confessam. Mas não desistem. “A aldeia está cada vez melhor, o negócio corre bem e estamos bem aqui”. Depois da pizzaria Fornum do Viriato, aberta em 2012, preparam-se para novos investimentos na área do turismo, ainda em segredo.

É que “isto bate gente de todo o lado”, atiraria pouco depois Maria Helena Pinheiro, 75 anos, sentada na escadaria de uma das ruelas principais. Pousa a marafona que está a terminar de vestir para nos oferecer uma fatia de bolo. Cada boneca típica de Monsanto demora “mais de duas horas a fazer” e ela vende-as por 5€. “Para a América, para a China”. Há marafonas por tudo o que é canto do mundo, compradas pelos turistas que chegam em autocarros e autocarros. A vida dura da infância em Monsanto não lhe deixa saudades. “Não havia água, luz, casa de banho. Conheci muita fome, pobres a pedir à nossa porta”, recorda. Desde que regressou à aldeia, há uns 20 anos, é com as bonecas e no convívio com outras artesãs que se distrai. “De manhã, avio a vida em casa, de tarde venho para aqui.”

 

Castelo Novo
A memória de José Saramago

Para Francisco Afonso, há duas épocas do ano ideais para visitar Castelo Novo e esta não é uma delas. A vista do castelo não deixa de ter o seu encanto, mas é mais bonita quando os pomares de pêssegos no vale se cobrem de flores cor-de-rosa na Primavera ou de ocres pelo Outono. Francisco e a mulher, Ana Almeida, vivem na Covilhã mas há 13 anos decidiram comprar uma segunda casa na região. Castelo Novo foi a última aldeia onde procuraram mas foi amor à primeira vista. “A exposição dela em relação à serra, a luz, foi mágico”, recorda Ana, professora de química na Universidade da Beira Interior. “Havia vida, roupa a secar nos estendais.”

Reabilitaram um edifício tradicional junto aos vestígios da antiga lagariça romana, um tanque de azeite esculpido no granito, e abriram uma loja de artesanato no rés-do-chão, onde vendem peças de autor, feitas com produtos de inspiração regional mas design contemporâneo. Na porta, uma folha informa os clientes que têm de pedir no posto de turismo que lhes venham abrir a loja. “Com a crise e as portagens, houve um decréscimo dos turistas”, lamenta Ana Almeida. Deixou de se justificar ter sempre a porta aberta e um novo projecto na Covilhã rouba-lhes grande parte do tempo.

Mas o projecto Histórias Criativas, e o atelier inaugurado em 2015, ainda abrem o sorriso de Ana. O projecto cultural, promovido pelas Aldeias Históricas de Portugal, começou com um desafio aos alunos do primeiro ciclo: reinventar as lendas e histórias de cada aldeia. Os contos serviram de inspiração ao livro Lendas da Tua História, de Rosário Alçada Araújo, e à linha de bonecos criados por Ana Almeida. Cada boneco personifica uma das doze aldeias. É brinquedo, mas também património e território, objecto de colecção. Estão à venda no atelier, onde se organizam workshops e outras actividades.

De volta ao Largo da Lagariça, Francisco aponta para a casa em frente à loja. Era lá que morava José Pereira Duarte, o “senhor mais bondoso” da terra, que um dia albergou José Saramago sem saber a quem oferecia jantar e um sítio onde dormir. O escritor português não esqueceu a generosidade do homem “de olhos claros”, “sensível”, “que lê”, descreve no livro Viagem a Portugal (1981). “Castelo Novo é uma das mais comovedoras lembranças do viajante. Talvez um dia volte, talvez não volte nunca, talvez até evite voltar, apenas porque há experiências que não se repetem.”

 

GUIA PRÁTICO

Onde ficar

Casas do Côro
Largo do Côro – Marialva
Tel.: 917 552 020
E-mail: info@casasdocoro.pt ou reservas@casasdocoro.pt
www.casasdocoro.pt
Preços: quartos standard a partir de 150€ e casas desde 240€

Casa da Cisterna
Largo da Igreja – Castelo Rodrigo
Tel.: 917 618 122 / 271 313 515
E-mail: info@casadacisterna.com
www.casadacisterna.com
Preços: a partir de 65€ por noite (duas pessoas, com pequeno-almoço incluído)

Quinta de Pêro Martins
Travessa do Castelo 10 – Quintã de Pêro Martins
Figueira de Castelo Rodrigo
Tel.: 271 313 133 / 961 336 043 / 914 575 164
E-mail: geral@quintaperomartins.com
www.quintaperomartins.com
Preços: duplos a partir de 55€ por noite (época baixa)

StarCamp
Sítio da Milhoteira, Faia Brava – Vale de Afonsinho
Tel.: 961336043
E-mail: starcamp.portugal@gmail.com
www.starcamp-portugal.com
Preços: tenda para duas pessoas a partir de 94,34€

 

Onde comer

Cova da Loba
Abordagem contemporânea dos sabores tradicionais portugueses.
Largo da Igreja – Linhares da Beira
Tel.: 271 776 119
E-mail: geral@covadaloba.com
www.covadaloba.com
Horários: todos os dias, excepto quartas (todo o dia) e quinta (ao almoço)

Taverna Lvsitana e Fornvm dv Viriato
O primeiro é bar e casa de petiscos (nas bebidas, a especialidade é hidromel à pressão); o outro é pizzaria.
Rua do Castelo, 19 – Monsanto
Tel.: 927 892 768
E-mail: tavernalusitanamonsanto@gmail.com
http://tavernalusitana.com

Adega Típica “O Cruzeiro”
Comida tradicional portuguesa.
Avenida Fernando Ramos Rocha (no edifício multiusos) – Monsanto
Tel.: 936 407 676 / 967 366 449
Horários: todos os dias das 12h às 15h e das 19h às 21h, excepto terças (ao jantar) e quartas (todo o dia)

Cantinho dos Arcos
Cozinha regional.
Largo do Pelourinho, 2A – Trancoso
Tel.: 271 828 270 / 964 795 961
E-mail: cantinhodosarcos@gmail.com
Facebook: Restaurante Cantinho dos Arcos

Bar Boas Vindas
Bar com licores caseiros.
Rua da Mesquita – Sortelha
Tel.: 966 149 774

Casa do Castelo
Cozinha regional.
Largo de São Tiago (junto ao castelo) – Belmonte
Tel.: 275 181 675 / 964 713 108
www.casadocastelo.net

Cabralina Sabores Tradicionais
Bar e loja de artesanato e produtos locais, com cerveja artesanal de produção própria.
Rua do Castelo, 8 – Belmonte
Tel.: 275 913 135
E-mail: cabralina.geral@gmail.com

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