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Majhoul, ou a tâmara mais saborosa do Sul de Marrocos

Por Luísa Pinto

A vida num ksar, a arquitectura dos kasbahs, noites estreladas no deserto, dunas incríveis a perder de vista, oásis, khettaras e desfiladeiros. O imenso reino de Marrocos quer apostar no ecoturismo e valorizar o seu património natural e cultural. E está a fazer por isso.

Não é fácil descrever, com exactidão, o caminho para lá chegar. É um autêntico labirinto feito de escadas, degraus de todos os tamanhos, salas e corredores, pátios e portas. E tapeçaria colorida, velas em lucernas, brique-a-braque em pequenos apontamentos decorativos. Não levávamos bússola, mas tínhamos à frente o homem de vestes brancas, que nos dizia “venham por aqui”. E a pequena multidão seguia-o.

Também havia algumas placas a indicar ora casas de banho, ora quartos identificados por números, ora salas de leitura. Tive vontade de sair da fila, para me perder por aqueles corredores. Ainda espreitei por uma porta entreaberta (shame on me) e deparei-me com uma cama cheia de almofadas e uma linda decoração em tons de azul turquesa. Lembrei-me da criança que deixara em casa, e que quer fazer pula-pula em tudo o que é colchão, mas o apelo do homem da djellaba branca (traje típico, que serve tanto homens quanto mulheres) era sempre  mais forte. Onde é que ele nos queria levar, afinal?

No programa estava uma visita ao Museu do Oásis, o único em Marrocos. Nós continuávamos a segui-lo pelo labirinto. Até que chegámos lá. E o lá era só o enésimo terraço, onde uma piscina que pode parecer lilliputiana (isto para quem tiver como referência as dimensões olímpicas) fazia o deleite de uma turista alemã, madura e enxuta. “Tenha cuidado com o sol”,  dizia-lhe Hmad Ben Amar, ia a manhã já bem alta, perante o sorriso da turista. Antes do museu, Hmad quis levar-nos para aquela última sala onde uma mão cheia de cadeiras e um sistema de som que não funcionava (mas também não era preciso) estavam preparados para nos contar uma história de dedicação e de perseverança. A história dele, que se confunde com a história de toda a aldeia.

Hmad Ben Amar nasceu ali, naquele ksar da cidade de Tinejdad, a 50 quilómetros de Tinghir, em pleno vale do rio Todra. Saiu de casa aos vinte anos, para tentar a sorte como emigrante na Europa. Acabou em Barcelona, a trabalhar numa bomba de gasolina, onde esteve dez anos, que foram suficientes para fazer amigos — e depois sócios. Trouxe-os, aos dois, para lhes apresentar a terra natal, um emaranhado de casas construído em 1860 no meio do deserto marroquino. Quis mostrar-lhes o sítio de onde todos querem sair — porque não há água, não há saneamento, não há electricidade, não há estradas. O sítio para onde ele sempre quis voltar, e trazer muita gente com ele.

Mas voltemos a Hmad Ben Amar, e ao discurso que quis fazer a jornalistas, operadores turísticos e autoridades regionais, depois do lembrete à turista alemã. Hmad contou a sua própria história, e por que é que há mais de vinte anos quis emigrar. “Não é fácil viver num ksar. [Parênteses para explicar que ksar é o nome dado às cidades e aldeias muralhadas, correspondem aos núcleos medievais que conhecemos. A diferença é que ele não se organiza em torno de um castelo]. Viver num ksar é sinónimo de ser pobre, de não ter oportunidade. É, sobretudo, sinónimo de não ter futuro”, começou. “Se dizemos que vivemos num ksar, viram-nos a cara. É dizer que vivemos num bairro pobre, sem condições. Os homens não arranjam emprego. Os homens continuam a discriminar as mulheres. É um ciclo vicioso”, relata.

Mas Hmad não discorreu mais sobre como era a vida antes. Preferiu alongar-se a dizer como está a conseguir que seja a vida depois, isto é, agora. Já há luz e saneamento, mas ainda há muitos problemas de sobrevivência. De subsistência. “Don’t feed beggars”, lia-se numa das paredes à entrada da aldeia.

O Museu do Oásis é apenas um dos pilares do projecto do Ksar El Khorbat, que arrancou em 2002. Agora que ali param visitantes para conhecer o Museu do Oásis (foram 8460 visitas, desde 2002), e agora que são oferecidas soluções de alojamento “a todos os turistas que não procuram só um sítio para comer e para dormir, mas sim ter experiências com a comunidade, contribuir para um desenvolvimento sustentável”, já é possível ver crescer a população e melhorar-lhes as condições de vida.

 

Muito por fazer

Viviam 52 famílias no ksar El Khorbat em 2002, eram já 88 famílias em 2016. Eram 152 casas em 2002 e mais de metade estavam destruídas, à força do abandono e das intempéries. Foram, entretanto, sendo reconstruídas, ao ritmo do novo museu (que ocupa 23 salas e permite uma viagem bem documentada ao que é a vida dos nómadas e como é que ela se cruza com o sedentarismo dos ksars e dos oásis), ao ritmo da construção de uma creche (onde são já acompanhadas diariamente 90 crianças), ao ritmo da construção de quartos para receber turistas e voluntários — são bem-vindos todos os que queiram oferecer a sua força de trabalho e o seu saber em troca da participação no desenvolvimento de um projecto comunitário.

“Precisamos de todos os saberes e vontades. Precisamos de engenheiros, arquitectos, sociólogos, psicólogos, cozinheiros... aprendizes. Ainda falta fazer muito por aqui”, alerta Hmad. E não está a falar de infraestruturas. Está, outra vez, a falar de oportunidades. “Queremos que os que cá estão não precisem de sair. E que os que saírem para estudar, queiram voltar. Temos de ter argumentos para fixar aqui um jovem que acabou de tirar um curso”, argumenta, demonstrando que o “curso” que frequentou numa década de bomba de gasolina em Barcelona o fez “doutor” em ambições juvenis. “Aqui as mulheres têm um lugar de relevo. Posso dizer-vos, e admitir-vos, que sem elas, nada disto funciona!”

Não lhe faltam ideias para desenvolver El Khorbat. Vão ser precisos licenciados em turismo, em história, em antropologia, para melhorar os circuitos musealizados. Dava jeito desafiar biólogos e químicos a acrescentar saber à milenar técnica de fazer água ou essência de rosas — e são famosas as da região, sobretudo as de Mezgouna; são precisas cinco toneladas de pétalas para fazer um litro de essência de rosa e apenas um quilo para fazer um litro de água de rosas — para, por exemplo, rentabilizar o pequeno jardim aromático que ainda sonha construir.

Mas não existem apenas sonhos naquela lista, também há projectos realizados. Por exemplo, o “mercado justo”, realizado durante uma semana no mês de Abril, e que já é, ele próprio, uma atracção turística, onde artesãos e agricultores podem vender o fruto do seu trabalho e criatividade. Ou uma cooperativa de mulheres, um local onde, o ano todo, as mulheres se encontram para partilhar o tempo dedicado às artes e aos lavores, e que deu oportunidade a muitas artesãs como Aicha. Com 33 anos, nunca casou, vivia com a mãe e com a irmã, sobrevivia da boa vontade dos familiares masculinos. Há dois anos que, para ela, a vida no ksar ficou menos dura — pelo menos tenta trocar palavras com os visitantes que lhe compram os lenços que borda durante os dias. O vocabulário de Aicha é curto — está agora aprender francês com os turistas. O meu berbere é inexistente, o diálogo tem de terminar por aqui: “Sim, agora a vida é muito melhor”. O sorriso no rosto serviu-me como garantia.

 

Rota da excelência

Não sei se a turista alemã, que escolheu o ksar El Khorbat para se alojar, o fez porque conhecia toda esta história. Mas foi esta história que deu sentido a tudo o que tinha ouvido no dia anterior ao secretário regional do Ministério do Turismo do Reino de Marrocos. Laabab Majid convocou jornalistas de toda a Europa para falar a nova estratégia turística para a região Draa-Tafilalet e apresentar um novo roteiro no Sul do país: a Rota do Majhoul

Catorze anos depois do seu lançamento, o projecto do ksar El Khorbat pode ser dado como o melhor dos exemplos do que as entidades oficiais de Marrocos querem fazer em todo o território de Draa-Tafilalet. Draa é o nome de um dos maiores rios que atravessa Marrocos, Tafilalet quer dizer riqueza. E por vezes a toponímia pode ser um bom augúrio, mesmo quando estamos a falar de uma área que tem o tamanho de uma Suíça ou uma Bélgica e onde só vivem 18 pessoas por quilómetro quadrado.

Majhoul é sinal de excelência. É o nome dado à mais nobre das tâmaras. E as tâmaras são um dos produtos mais conhecidos de Marrocos — rivalizam com o chá de menta, o sumo de laranja, as tajines aromatizadas com as incríveis especiarias. Tâmaras são também sinónimo de palmeiras, e elas simbolizam, afinal, aquilo que é mais conhecido e reconhecível desta zona no planeta, em que ainda há nómadas entre os berberes: os oásis no meio do deserto.

A Rota do Majhoul une, afinal, os mais representativos oásis do país — do vale do Ziz, o maior de Marrocos, com 120 quilómetros de extensão — e as atracções turísticas dos vales do Draa, do Dádès e de Ouarzazate, para oferecer aos visitantes tudo o que possam precisar para uma escapada no deserto.

Majid falou de desafios e de oportunidades, de clusters e de metas de crescimento. O seu discurso poderia ser colocado na boca de um qualquer ministro europeu: a necessidade de valorizar tradições e recursos endógenos, a vontade de aumentar dormidas e multiplicar receitas, a oportunidade de garantir financiamentos internacionais para avançar com projectos para dinamizar aquela que já é uma importante fonte de riqueza do país, mas foi quando falou de ecoturismo e de pôr em marcha corredores temáticos que ligam territórios e permitem valorizar o património natural e cultural que tudo fez mais sentido. Até 2020 vai ser investido quase meio milhão de dirhams (cerca de 45 milhões de euros) para avançar com esta rota

No ksar El Khorbat ainda não se falava desta estratégia e ela já era aplicada no terreno. “As palavras que hoje em dia se defendem e se falam no mundo inteiro, como a tolerância, a sustentabilidade, já são praticadas há muito tempo nos oásis”, remata Hmad, fundador, com Joan Castelana e Roger Mimó, da Associação El Khorbat para o Património e Desenvolvimento Sustentável, em 2002, e que recebeu um prémio do Turismo Nacional em 2010. As tâmaras mais famosas de Marrocos, dizia, são as de Erfoud, cidade a 90 quilómetros de Tinedjad, que todos os anos realiza o Festival Anual das Tâmaras. Mas o sabor da Majhoul, o sabor da excelência, eu encontrei-o aqui, no ksar El Khorbat.

 

No reino das dunas e palmeiras, dos desfiladeiros e dos kasbahs

 

O Museu do Oásis de El Khorbat documenta com pormenor tudo o que é importante conhecer para perceber com rigor como é a vida num oásis — e como é que se organiza em torno dele uma sociedade que ainda tem muito de tribal, mas que já teve, e tem, contactos com outras culturas e religiões, como o judaísmo (no passado) e o islamismo (mais recentemente). Permite, também, perceber toda a região e como é que as populações se foram adaptando aos regimes impostos pela natureza, que tem tanto de generosa como de caprichosa.

Há registo de vida humana na região de Tafilalet (que, no mapa administrativo actual de Marrocos, corresponde à província de Errachidia) desde tempos pré-históricos. Foram estes humanos que tiveram de se adaptar a uma geografia variada que começa nas montanhas agrestes a quatro mil metros de altitude e desce por gargantas e íngremes desfiladeiros, atravessando planaltos subdesérticos, desenhando pelo caminho oásis pintados do azul dos cursos de água e pelo verde das palmeiras, até desaparecer nas dunas de areia do deserto.

Os berberes, povo nómada (ou “homem livre”, no significado atribuído ao símbolo que os representa, e que está erguido em Timbouctou, no Mali), aprenderam a lidar com toda esta orografia, e habitam esta região que tem menos de 2% do seu território apto a cultivo. Em Marrocos ainda há 250 mil nómadas e a maior parte deles vive na região do Draa-Tafilalet. Em pleno século XXI, mudou muita coisa — na pastorícia, por exemplo, que é uma das actividades que mais concorrem para o sustento deste povo, já não há muita transumância, uma vez que o gado é transportado em camião. Mas a vida no oásis ainda é a mesma, a arquitectura das casas — dos kasbahs — ainda respeita as mesmas tradições, a experiência de dormir debaixo do céu estrelado no deserto é sempre imponente, sejam os bivouacs (acampamentos no deserto) mais ou menos luxuosos.

El Kharbat fica no coração desta região. A 50 quilómetros de Tinghir, e passagem obrigatória tanto na estrada que liga a Errachidia como a Erfoud. Ouarzazate e Zagora são outras das cidades “obrigatórias” neste roteiro pelo deserto, que pode ser feito numa viagem circular, a partir de Marraquexe. Seguem-se pequenos apontamentos do que não pode deixar de fazer se quiser vivenciar a experiência do reino das dunas e das palmeiras, dos desfiladeiros e dos kasbahs em todas as suas dimensões.

 

O vale do Ziz e as dunas de Erg Chebbi

O rio Ziz é um dos mais impressionantes do Sul de Marrocos, desce desde as montanhas do Atlas, em Midelt, até Errachidia, porta de entrada no deserto do Sara, paredes-meias com a Argélia. O dominante são as paisagens áridas e rochosas, em contraste com uma explosão de verde, dada pela maior concentração de palmeiras por metro quadrado que existe no Sul de Marrocos. A partir de Erfoud, passando por Merzouga, e tendo como pano de fundo as dunas de Erg Chebbi, é possível ir apreciando esta explosão de verde em contraste com a aridez do restante solo, ao mesmo tempo que, é inevitável, os olhos pousam nos kasbahs, as casas-fortaleza construídas pelas famílias que se queriam proteger das investidas de nómadas ou de populações de outros oásis – a produção era pouca, a defesa da colheita era feita à força, se fosse preciso.

E a experiência deve terminar com um passeio ao fim de tarde naquelas que são as dunas mais altas do deserto de Marrocos — as dunas de Erg Chebbi, que chegam a atingir 200 metros. Há passeios para todos os gostos. De jipe, de moto quatro, de bicicleta. A recomendável é a de camelo — não temos nada contra desportos motorizados, mas se o lema é perceber como viviam, e vivem, os povos nómadas devemos usar o mesmo meio de transporte. O camelo, ora pois.

Há muitos operadores a oferecer estes passeios, sempre mais recomendáveis ao pôr do sol, quando as temperaturas são mais suportáveis. Faça figas para que não haja rajadas de areia, mas uma coisa é certa: é sempre possível pedir a um berbere para lhe ensinar a colocar o turbante que o protegerá de quase tudo (quase, porque haverá sempre grãos de areia que se conseguem alojar nos lugares mais insondáveis).

É provável que tenha dificuldade em sentir a imensidão do deserto só para si, ou que consiga evitar ter sempre mais turistas, e mais camelos, no enquadramento da fotografia. Mas não se acanhe. Afinal, os berberes também andavam em cáfilas. E montar um camelo será sempre diferente de tudo o resto que virá a experimentar — e a adrenalina está reservada apenas para o momento em que sobe (ou desce) ao animal. Tudo o resto é um aprazível passeio pelo deserto. Mesmo.

 

Nascente de Ain Atti e khettaras de Khorbate

Na estrada para Erfoud, uns quinze quilómetros antes de chegar à cidade é possível que consiga reparar num jacto de água a disparar para o céu. Repare melhor para as placas e siga a indicação que diz: Aïn Atti. Atti quer dizer, em berbere, dádiva de Deus. E aquela nascente, no meio do nada, está agora a ser estudada para comprovar se tem, como gostariam, propriedades medicinais.

Não há guias no local, nem grande informação que explique quando foi descoberta, e se é utilizada para alguma coisa. São os vendedores locais que fazem as vezes de guias — que há sempre bancas a vender artesanato, e rosas do deserto, e comida, onde quer que possa parar um ser humano no meio do deserto. A única coisa que se sabe é que é uma nascente salgada, imprópria para uso humano. Talvez porque há milhões e milhões de anos o mar estava ali, como comprovam os muitos fósseis marinhos que abundam na região. O nosso guia improvisado diz que está a ser estudada a forma como se consegue “dessalinizar” aquela água, para poder ser usada na agricultura.

O engenho do povo em conseguir “domar” a água que se infiltra nas montanhas para a conduzir onde é mais precisa pode ser encontrado em alguns dos khettaras agora abertos ao público. Há um projecto público ambicioso de fazer o ecomuseu dos khettaras, que vai permitir uma melhor infraestrutura de visita a este incrível processo de recolha e condução de água que começou a ser usado no deserto do Irão há três mil anos. A técnica chegou a Marrocos há quatro séculos e é ela que explica por que é que no meio do deserto há grandes montes de areia, alinhados a esquadro, a seguir uma direcção — quase sempre desde uma montanha, ou um rio, até ao oásis.

Nem todos os locais são aptos a permitir escavações subterrâneas, que se fazem entre os cinco e os 15 metros de profundidade. Na região de Tafilalet ainda há cerca de 150 khettaras activos, sobretudo entre as cidades de Jorf, Fezna e Hannabou. Karim Karroumi conduziu-nos a visita a um khettara em Khorbate.

Fazendo as vezes do chefe do khettara — que é coisa para ser tão importante como chefe da tribo —, Karim explica-nos que a abertura no cimo de cada um daqueles montes, onde está um balde e uma roldana, não serve para tirar água do poço. Para além de ventilação a quem quer que circule naquele canal escavado a 14 metros de profundidade, aquela abertura e aquele balde servem para retirar lama e assim manter o canal limpo para a água passar. Depois, já no interior do túnel, mostra-nos a técnica rudimentar de medir o tempo que cada membro da comunidade tinha de prestar no khettara. Uma tigela de madeira demora uma hora a encher, cada tigela cheia significa um nó no lenço, cada quatro nós no lenço significam o render da guarda, é o seguinte quem vem limpar a lama do túnel. “Quem não cumpre as regras do khettara tem de pagar uma multa: oferecer uma refeição a todos os membros da aldeia”. O “chefe” sorriu e não quis dizer quantas vezes por semana é que isso acontece.

 

Vale dos mil kasbahs e gargantas do Todra

Os kasbahs são autênticas fortalezas, apesar de se destinarem a apenas uma família. Mas será uma família alargada, entenda-se, uma vez que debaixo do mesmo tecto vivem várias geração. Distinguem-se pelas quatro torres que delimitam os seus altos muros, têm normalmente apenas uma porta de entrada e saída, e têm, por vezes um pátio central. São construídos apenas com lama e palha, usando uma técnica ancestral com recurso a moldes de madeira: os muros começam com uma base que pode chegar aos 80 centímetros de largura, e que se vai estreitando até chegar a metade. O tamanho de um kasbah depende muito do engenho do construtor, mas obedece sempre à mesma lógica. São construídos em patamares, os mais altos para vigia, o rés-do-chão para guarda dos animais. No primeiro andar estão os mais idosos, e à medida que a idade diminui a altura dos aposentos sobe — porque há mais destreza a galgar os degraus, muitas vezes altíssimos. Por vezes é possível encontrar kasbahs dentro de ksars, mas a verdade é que estão quase sempre isolados. E, hoje em dia, estão cada vez mais abandonados, como é possível contemplá-los ao longo do vale do Dades. Na estrada desde Tinghir em direcção às famosas gargantas do Todra, é impossível não ficarmos maravilhados com o contraste que desenham na paisagem.

Aqui a montanha tem um tom avermelhado, dando destaque à silhueta dos kasbahs antes destes mergulharem no verde do palmeiral e das árvores de fruto. É uma paisagem magnífica que nos prepara para o assombro que é chegar ao desfiladeiro do Todra. A “universidade da escalada”, como chamam aos penhascos que chegam a atingir os 300 metros de altura, tem um rio tímido e prazeiroso aos seus pés — pelo menos nesta altura do ano, mas não brinquemos com os elementos da natureza, que os restaurantes que ficaram votados ao abandono quando uma derrocada os inutilizou estão ali a lembrar-nos que, de repente, tudo muda. Esta história só torna o lugar mais impressionante — sendo que as cores daquelas paredes, com o sol a desenhar-lhes vários tons de vermelho, já eram impressionantes que chegue.

 

Bivouac nas dunas de Tinfou

Para sentir a vida nómada e antecipar o que é a travessia no deserto talvez um acampamento nas dunas de Tinfou seja a forma mais aproximada de o conseguir. Ao contrário das dunas em Merzouga, que são de areia, e muito altas, as dunas de Tinfou são sobretudo áridas, mas permitem ver a planície e servem de belíssimo enquadramento ao nascer do sol. Tinfou fica a 18 quilómetros de Zagora, agora cidade capital província, e que foi desde sempre usada como ponto de passagem para as travessias do deserto: é em Zagora que está a famosa placa do 52, indicando o número de dias que, em travessia de camelo, se demorava a chegar a Timbouctou, capital do Mali e da tradição berbere.

São muitos os operadores que oferecem várias opções de alojamento em bivouac. É uma experiência obrigatória, e há para todos os gostos, e bolsas — desde os 20 euros aos 300. Estes acampamentos têm normalmente jantar incluído e música tradicional também. Mas, confesso, é quando tudo está em silêncio, e os geradores apagados, que melhor nos podemos deixar esmagar pela luz das estrelas.

 

Guia prático

Como ir

O distrito de Draa – Tafillalet é acessível a partir de Portugal por duas portas de entrada, operadas pela Royal Air Maroc (RAM) ou pela TAP. Há ofertas diárias de ligação entre os dois países. A partir de Lisboa, a RAM tem ligações diárias para Casablanca — e daqui para Errachidia (às quartas, sextas e domingos) ou para Ouarzazate (às quintas, sextas, sábados e domingos). A partir de 25 de Junho, a RAM fará também a ligação directa entre Porto e Casablanca, às segundas, quintas e domingos.

Já a TAP voa directo entre Lisboa e Marraquexe, e a distância desta cidade a Ouarzazate são 200 quilómetros facilmente superáveis num comboio. Também há, claro, ligações aéreas, que a RAM tem assegurado o transporte entre os 18 aeroportos que existem neste imenso país.

 

Onde ficar

Ksar El Khorbat

Tinejdad

Tem quartos duplos, triplos, quádruplos, e até quíntuplos. Quase todos têm terraço privado e vistas fantásticas para o interior do ksar e seu labirinto de patamares e de casas. No total são dez quartos, todos decorados de forma diferente, a evocar tradições marroquinas, mas com casas de banho adequadas aos padrões de conforto europeu. O quarto mais barato custo 43 euros e o mais caro custa 70, com pequeno- almoço incluído. As refeições no restaurante, os serviços do spa e o acesso ao museu são cobrados à parte.

 

BP 118 Asisd Oued Ferkla
52002 Tinejdad
Tel : (+212) 5358 80355;(+212)6765 27392
Email: elkhorbat@gmail.com
http://www.elkhorbat.com

 

Bivouac

Erg Chabbi (Merzouga) e Tinfou

Bivouac quer dizer acampamento. Em termos de experiência hoteleira, quer dizer dormir nas areias do deserto, num leque de comodidades que vai desde a cama, protegida com uma simples cortina da cama seguinte (mas há sempre colchões, lençóis e cobertores, e toalhas para lavar o rosto pela manhã) até ao verdadeiro palácio, daqueles com direito a amplos aposentos e cama de dossel, mas em versão amovível.

Os preços variam entre os 20 e os 300 euros.

 

Le palais du desert

Erfoud

No deserto há oásis e nas estradas desérticas que ligam os oásis entre si também. É isso que é o “Le palais du desert”, um oásis no meio de nenhures, um cinco estrelas aberto ao público desde 2014, na conveniente estrada entre Ouarzazate e Errachidia, tendo em Erfoud a cidade mais próxima. A um oásis que se preze não faltam palmeiras (há 1500 árvores plantadas) nem água (há duas piscinas). Oferece 44 suítes, repartidas por seis pavilhões cuja arquitectura remete para os kasbahs da região, com quartos amplos, arejados e bem equipados. O restaurante (com serviço buffet) é bom e variado. Foi lá que retemperei forças depois da longa viagem, e me estreei numa sopa marroquina às duas da manhã. Sim, mesmo depois de não comer há varias horas, a opção pode não parecer a mais indicada para uma noite com uma digestão tranquila, mas passem por lá e sintam-lhe o cheiro — e perceberão o que quero dizer.

Route de Jorf
BP 310 Erfoud
Tel.: (+212) 535 578 291;(+212) 535 578 292
Email: contact@palaisdudesert.com
www.palaisdudesert.comwww.palaisdudesert.com

Preço: A partir de 100 euros noite na suíte júnior.

 

Kasbah Hotel Xaluca

Erfoud

Erfoud é conhecida como a Porta do Deserto, mas a verdade é que seria este o nome mais apropriado para dar a este hotel de cinco estrelas do grupo Xaluca, um dos que disponibiliza maior oferta na região. O grupo Xaluca tem quatro hotéis e uma infindável oferta de excursões e organização de eventos. A particularidade deste Kasbah Hotel é a representatividade que tem em termos de arquitectura da região, já que foi construído em adobe e com fósseis incrustados. É um hotel grande (tem 137 quartos) e com alojamentos muito espaçosos e muito bem decorados. Tem ainda, a partilhar os mesmos espaços públicos de piscinas e aprazíveis jardins, mas com entrada independente do hotel, sete bungalows familiares para quem quiser um pouco mais de privacidade — e ainda mais espaço. São 120 metros quadrados, para receber cozinha equipada, sala de estar e duas suítes

B.P. 205
Route Arfoud à Errachidia km 5,
Errachidia
Tel.: (+212) 5355 78450
Email: xaluca@xaluca.com
www.xaluca.com

Quartos duplos a partir de 80 euros. Os luxuosos bungalows custam 700 por noite.

 

Le Berbere Palace

Ouarzazate

Se os muitos actores de cinema que se instalam nesta cidade para trabalhar naquela que é a chamada Hollywood do deserto (há dois estúdios de cinema, ambos visitáveis aqui) ficam instalados neste hotel, nós não devemos tentar fazer por menos...

Quartier Mansour Eddahbi
45000 Ouarzazate
Tel.: (+212) 5248 83105
Email: reservation@hotel-berberepalace.com
www.hotel-berberepalace.com

Quarto duplo a partir de 150 euros

 

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