Fugas - Viagens

  • Delfina Brochado
  • Delfina Brochado
  • Delfina Brochado
  • Delfina Brochado
  • Delfina Brochado

Portugal de Lés-a-Lés: Porque há um país a que só se chega de moto

Por Álvaro Vieira

Foi uma edição de recordes, em termos de número de participantes, dias de duração e calor. O 19.º Portugal de Lés-a-Lés pôs 1631 motos a rolar por estradas e caminhos entre Vila Pouca de Aguiar e Faro. Uma maratona de 1164 km, para quem nunca se enganou...

Vai para vinte anos que é assim. O feriado do Corpo de Deus é dia santo para quem gosta de passear por caminhos diferentes, descobrir novas paisagens, fazer amigos e, acima de tudo, andar de moto. O Portugal de Lés-a-Lés começou por ser uma brincadeira de amigos, de meia-dúzia de motoclubes do país, mas evoluiu para uma iniciativa que, à 19.ª edição, que decorreu de 14 a 17 de Junho, já envolveu 16 municípios, quatro museus e quase duas mil pessoas – entre participantes, organizadores, mecânicos, médicos e enfermeiros e equipas de apoio das instituições visitadas.

E a Fugas juntou-se à maior caravana de mototurismo da Europa, com gente da Nova Zelândia e Austrália ao México e Chile, de Angola, Macau, Polónia, Suíça, Alemanha Suécia, França, Luxemburgo e um enorme contingente de Espanha, numa edição de recordes: pelo número de inscritos, 1631; pelos dias de duração, que passaram de três para quatro; pelas temperaturas que os motociclistas enfrentaram, que ultrapassaram em muito os 40 graus; e pelas 12980 toneladas do bloco de granito utilizado no “arrastão”, uma tradição milenar recuperada há cinco anos por Vila Pouca de Aguiar.

Longe vão, portanto, os tempos de 1999, quando apenas cem motards partiram de Rio de Onor, em Trás-os-Montes, com destino a Sagres, num percurso para cumprir em 24 horas consecutivas. O Lés-a-Lés continua a ser um exercício de superação e persistência, mas está muito mais acessível, e acentuou a vertente cultural.

Passou a realizar-se sob a chancela da Federação de Motociclismo de Portugal, que conta com uma Comissão de Mototurismo, e até já tem dois spin-offs: o Portugal de Lés-a-Lés Off Road (a 3.ª edição realiza-se de 14 e 17 de Setembro); e o Portugal de Lés-a-Lés Quad & UTV, que se estreia de 16 a 19 de Novembro. Seria caso para dizer que a brincadeira se tornou uma coisa séria, não fosse a descontração continuar a ser uma das imagens de marca de um evento cuja organização no terreno continua a ostentar, de forma bem visível, os símbolos dos motoclubes.

14 de Junho, 10h15

Depois de um engano no caminho que me custou 30 kms a mais, encontro um trio de motards numa portagem da A7 e pergunto-lhes se vão para Vila Pouca de Aguiar, ponto de chegada do 18.º Portugal de Lés-a-Lés, em 2016, ponto de partida do 19.º Portugal de Lés-a-Lés em 2017. Contam que dois deles vêm de Faro, a meta da derradeira etapa, outro do Porto, como eu. Nem tirámos os capacetes. Seguimos juntos até Vila Pouca de Aguiar.

O 19.º Portugal de Lés-a-Lés começa com uma torreira ao sol. As verificações técnicas –confirmação de que as motos estão em condições – e entrega do road-book decorrem com rapidez, mas depois há um enorme enxame de motos a comprimir-se até formar a fila que há-de subir ao palanque, para se apresentar, numa entrevista sumária feita pelo speaker, tirar a foto da praxe sob o portal do Lés-a-Lés, e finalmente arrancar, já com os coletes verdes vestidos, e número de ordem atribuído. Desse número vai depender a hora da partida, da chegada, até o turno para jantar. Só esta refeição é feita à mesa, em grandes pavilhões. O almoço é sempre volante. Ao longo do trajecto, em locais designados “oásis”, vão sendo fornecidos alimentos aos participantes, sandes, fruta, alguns petiscos e doces, para que ninguém perca muito tempo a almoçar ou à espera de o poder fazer. A maior parte dos inscritos faz equipa com outra moto, para que se possam ajudar em caso de necessidade.

A meio da manhã, Alexandrina Rodrigues, de 46 anos, já não tem mãos a medir no seu pequeno  café, dominado pela grande cabeça de javali empalhada, na pequena aldeia de Pontido. Já não tem nada de comer para servir, mas os motociclistas continuam a entrar para comprar água, que o calor aperta. “Às vezes passam por aqui as gentes das caminhadas e das bicicletas, que vão ali ao castelo que merece a pena. Refere-se ao castelo de Aguiar da Pena.

Um morador da aldeia conta que fulana está a protestar que, por causa das motos, teve que vir a pé da vila, que a carreira não apareceu. “Disse-lhe ‘está calada, que as motos é que nos deixam dinheirinho’”, acrescenta o mesmo vizinho. Alexandrina concorda, o javali não se manifesta: “Foi abatido ali acima pelo meu pai há 26 anos”, diz orgulhosa.

Um dos motards apercebe-se que sou do PÚBLICO. Conta que conhece uma colega minha, que fez reportagem de uma expedição de todo-o-terreno a Marrocos em que ele também participou. E além da amiga em comum, descobrimos, agora sem capacetes, que somos os mesmos que se tinham encontrado horas antes na auto-estrada e feito parte da viagem juntos. À segunda paragem já somos amigos. E já lhe posso dizer que a nossa amiga, a quem telefonei, lhe manda cumprimentos.

A Câmara de Vila Pouca de Aguiar permitiu à caravana o luxo de poder estacionar na margem da lagoa do Alvão e atravessar de moto o passadiço de madeira. Perto dali nova paragem para um petisco, no Alvão Village & Camping, que parece uma mistura de aldeia de Astérix com campo entrincheirado romano, com as suas torres de vigia de madeira e casas castrejas cobertas a colmo.

O resto do passeio fez-se por bosques de bétulas e carvalhos, aldeias e vistas deslumbrantes sobre o Barroso e o Vale do Tâmega.

Além do Parque das Pedras Salgadas, agora com as Eco Houses e Tree Houses como novos equipamentos-atracções turísticos, visitaram-se também o centro hípico e uma pedreira.

Vila Pouca de Aguiar é a capital do granito, indústria que dá emprego a 3000 pessoas. É daqui que saem os granitos Amarelo, Cinza Telões e Pedras Salgadas, utilizado no revestimento da sede de Bruxelas do Parlamento Europeu, alertava o road-book. O road-book também contava que, por altura do reconhecimento do terreno, na preparação do trajecto, foi avistado um corço no alto da serra da Padrela. Não há notícia de algum participante ter repetido o avistamento. O que toda a gente viu, porque dificilmente se mexerá, foi o castanheiro de Vales, com os seus 14,4 metros de diâmetro.

Aqui, uma espécie de druida explicava que esta árvore enorme era mais velha do que outras cuja madeira foi utilizada nas caravelas dos Descobrimentos. Outro homem, no interior de uma parte oca do tronco, vendia um cocktail que garantia a “eternidade” a quem o tomasse. Estes homens eram actores da companhia Filandorra, mas ao longo de todo o resto do passeio quem assegurou quase sempre este tipo de recriações históricas, ora mais lúdicas ora mais culturais, foram voluntários dos próprios motoclubes ligados à organização. E eram eles que picavam os cartões de cada participante, a atestar que ele tinha estado no local previsto dentro do horário estabelecido.

Foi o que sucedeu com o “arrastão”. Quem quis ganhar um furo à frente do quadrado n.º 1 do cartão teve de aparecer a horas de tomar o seu lugar numa das grossas cordas e ajudar a puxar o bloco de granito.  O percurso deste primeiro dia, o “prólogo”, circunscreveu-se ao concelho de Vila Pouca de Aguiar e teve 94 quilómetros. Mas os últimos cem metros é que foram mesmo puxados, com o muito propalado “arrastão”. Se foi um recorde ou não pouco interessa. Alguns habitantes comentavam que em todos os arrastões se anuncia “a pedra mais pesada de sempre”… E que o número de gente a puxar nunca pode variar muito: “As cordas usadas são sempre as mesmas, não cabem lá mais mãos”, dizia um idoso, a piscar o olho. E logo outro relativizava também: “Com tanta gente, é claro que é fácil arrastar a pedra. Só o início é que custa!”

Depois do jantar, servido em mesas corridas, no mercado municipal, não faltou gente a recolher-se e a poupar-se para o que vinha aí. Humberto e Ana Paula Costa, de 44 e 43 anos, ele gerente de padaria e ela empregada de balcão, diziam-se deslumbrados com as paisagens. Só agora participaram pela primeira vez no Lés-a-Lés, com uma 1200cc alemã. “Antes não tinha moto para isto”, diz Humberto.

Não faltaria por perto quem discordasse. Há muitos anos que as “cinquentinhas” clássicas ou scooters de 50cc abrem a caravana. E tal como as vespas, partem mais cedo, mas chegam ao fim.

15 de Junho

O pequeno-almoço é entregue aos participantes num saco de plástico, para que estes o possam tomar onde quiserem. Pode muito bem ser nas margens do Douro, que boa parte do percurso do dia é ao longo das margens do rio. O início e o fim desta 1.ª etapa fazem-se pela EN2, que atravessa 11 distritos, 38 concelhos, 11 rios e quatro serras, desde Chaves a Faro, e que agora está muito na moda, qual “Route 66 de Portugal”.

Para mim esta 1.ª etapa começa em Chaves, onde fica o meu hotel, a mais de 40 km de Vila Pouca de Aguiar. Também há quem viaje com colchão e saco-cama e durma nos pavilhões cedidos pelas autarquias. Mas é normal o Lés-a-Lés esgotar a capacidade hoteleira num raio de meia centena de quilómetros, até porque foge dos grandes centros urbanos, auto-estradas e itinerários principais. À saída do hotel, um casal carrega também a bagagem na sua moto e ele pergunta-me se sei tirar-nos dali e pôr-nos em direcção a Vila Pouca de Aguiar. Respondo que não prometo não me enganar no caminho.

Depois de Santa Marta de Penaguião, onde são servidos um café de borras à moda antiga e mais umas sandes, para confortar o estômago, segue-se para a Régua, cruza-se o Douro pela barragem de Bagaúste e rola-se pela EN222, cujo troço entre o Peso da Régua e o Pinhão foi considerado a World Best Driving Road. O 19.º Portugal de Lés-a-Lés não foi a S. Leonardo de Galafura mas subiu ao miradouro de São Salvador do Mundo. A organização do passeio também se faz de decisões dramáticas como esta.

Depois da oportunidade de ver do alto o Cachão da Valeira, onde o Douro, comprimido pelas rochas, ganhava outrora correntes mortíferas, que custaram a vida ao Barão de Forrester – o road-book diz que, ao contrário do barão, que foi ao fundo porque tinha os bolsos cheios de moedas, Dona Antónia, a Ferreirinha, salvou-se de morrer afogada no mesmo local, graças às suas saias em balão, que a ajudaram a flutuar –, a caravana, há muito sob um sol tórrido, subiu à aldeia de São Xisto, visitou Freixo de Numão e foi até Foz Côa, com paragem junto aos paços do concelho e no museu das gravuras rupestres. E ninguém se lembrou de ir gravar uma moto nas rochas das gravuras...

Avistou-se depois Castelo Melhor e atravessou-se Almendra, cuja monumentalidade contrasta com o despovoamento. Hoje tem apenas 380 habitantes - e estão todos escondidos, que o calor já é sufocante. Cinco séculos é quanto tem a enorme Igreja Matriz, maneirista e manuelina. Adiante, à direita, passa-se ao largo da Reserva Natural da Faia Brava, a primeira reserva privada de Portugal, criada pela Associação Transumância e Natureza.

Mais aldeias, caminhos de pedra e de terra, até Pinhel onde o calor é tanto que até a senhora da bomba de gasolina da avenida principal ameaça deixar de abastecer mais motos, por causa do sol.

No largo da câmara, além de bolo e sumo de laranja para os motociclistas, há uns repuxos de água. Dá para passar pelo meio deles com a moto, sem medo da água, para fazer uma fotografia diferente e refrescar corpo e máquina.

À sombra, mas nem por isso à fresca, sentadas num banco de jardim que rapidamente ficou cercado de motos, três senhoras metem conversa com os motociclistas. Perguntam donde vêm, para onde vão, dão até conselhos sobre as manobras para tirar as motos dali. Parecem muito religiosas, desejam a todos um resto de viagem sob a protecção de Nossa Senhora e ninguém duvida que o dizem com sinceridade. Poucos metros abaixo, numa rua num plano inferior ao do largo, passa a procissão do Corpo de Deus, por ruas atapetadas de folhas e pétalas. Mas é à procissão das motos que aquelas senhoras querem assistir agora.

Acontece em muito lado. Homens e mulheres, velhos e novos aproximam-se da caravana para meter conversa. Quase sempre para dizerem que gostariam de fazer um grande passeio de moto, para discutir trajectos, dar dicas sobre locais de interesse turístico, relançar a eterna discussão sobre quais são melhores, as motos germânicas ou as nipónicas… Uma coisa é certa. Há um país a que só se chega assim, de moto. Em comunhão com as estradas, a aprender-lhes os cheiros dos campos e dos bosques, e com as pessoas que as habitam, a ouvi-las e a falar-lhes. É um país que se arrisca a ser imperceptível para quem viaje sempre fechado num automóvel. Ninguém meterá a cabeça dentro de um carro alheio para confraternizar.

Cheguei a dizer que está calor? Está muito, muito quente. Sou dos últimos a sair de Pinhel. Como não tenho pendura, nem saco de depósito, nem enrolador não tenho como ler o road-book, que segue dentro da mochila. Por isso costumo seguir alguém da comitiva. Desta vez vou atrás de uma Harley Davidson, já antiga, que seguia atrás de outra moto. A determinada altura páro para tirar uma fotografia. Tenho que acelerar para as reencontrar. Quando me vê de novo nos retrovisores, o condutor da Harley faz-me um gesto de saudação ao qual respondo. Mas estanho quando estas duas motos param no meio de Vila Franca das Naves. E, ao ultrapassá-las, confirmo o meu receio. Não há coletes do Lés-a-Lés nos condutores nem autocolantes nas motos. Segui, distraidamente, durante quilómetros duas motos que nada tinham a ver com o Lés-a-Lés. Estou num cruzamento quando a Harley se aproxima de mim. “Eh pá, induzi-te em erro: fiz-te sinal e pensaste que eramos do Lés-a-Lés”. E apresenta-se: é o Carlos, faz questão de levar-me até à estrada para o Fundão, que mais à frente há uma sucessão de rotundas e o mais certo era eu perder-me com as indicações. Agradeço, digo não é preciso, mas ele insiste. E lá vai, até me deixar reencaminhado. Se passarem por Vila Franca das Naves, já sabem que o Carlos é um tipo impecável e é fácil dar com ele. “Não há muito mais Harleys em Vila Franca das Naves, pois não?”
- Por acaso até há outra. Mas também é minha.

À noite, no Fundão, consigo finalmente encontrar alguém que eu sabia estar na caravana: a participante neo-zelandesa, dos antípodas. Robyn Bennett é uma simpatia, está aqui porque o companheiro é um português de Braga, que conheceu online (mas de forma not weird, ressalva ele) e que está emigrado na Nova Zelândia. É verdade que este casal de 40 e picos está em Portugal para visitar a família dele, mas também não é mentira que escolheu esta altura do ano para coincidir com o Portugal de Lés-a-Lés, no qual ele, Adriano, é repetente. Habituados ao calor? Nada. Dizem que há três semanas até nevou no sítio donde vêm. Ele ri-se da forma como ela, em Portugal, se maravilha com qualquer construção de granito ou xisto, que a nós parece banal. Ela assume-se deslumbrada num país onde praticamente tudo o que tem visto é mais antigo do que o seu próprio país.

Há qualquer coisa de familiar nele. É o tipo que me perguntou se conhecia o caminho para Vila Pouca, no parque do hotel em Chaves. Tínhamos todos os capacetes postos, então. Foi na manhã deste dia, mas parece ter sido há semanas.

16 de Junho

Dia terrível, em termos de pontualidade. Perco-me à conversa com reformados, numa farmácia do centro do Fundão onde toda a gente parece acometida de hipocondria e ter uma lista infinita de coisas a aviar, e já tenho dificuldade em colar-me a uma equipa que esteja a seguir o road-book. Descubro um grupo de algarvios que deixam de ser opção, quando decidem aceitar o desafio de um amigo de Coimbra para fazerem uma estrada alternativa para Oleiros, que ele garante ser melhor do que a programada. Como ontem me fartei de aldrabar – cheguei de IP e de A23 ao Fundão! –, quero redimir-me fazendo hoje tudo by the book.

Encontro finalmente um jovem casal micaelense, com a bandeira dos Açores pendurada na chapeleira. Viajam com um amigo que é alentejano mas trabalha em S. Miguel e com o primo deste. A leitura do road-book está a cargo dela, que não tem experiência na função. Não foi fácil descobrir a vizinha Aldeia Nova do Cabo.

Nesta aldeia prestou-se homenagem ao padre Zé Fernando junto à casa onde nasceu, identificada com uma placa. O criador do Dia Nacional do Motociclista morreu aos 55 anos, de doença, em 2013. Autor do livro Padre Motard – Boas Curvas? Se Deus Quiser, era conhecido entre os motociclistas por dizer: “Até 100, Deus protege. A partir de 100, Deus acolhe.”

Depois de muita curva, muito engano, muita casa de xisto, muito engano, belas vistas sobre o Zézere e muito engano e um calor insuportável, chega-se à Foz do Cobrão, onde há uma espécie de piscina com uma enorme rocha no meio. Até gente vestida se atirou lá para dentro, para um dos bocados melhores de todo o passeio.

E vamos lá a recuperar, que já devíamos ter passado ao Alentejo pela sua entrada mais nobre: as Portas do Rodão. E é tempo de seguir para Nisa, Castelo de Vide e Arronches, cuja câmara mobilizou um arqueólogo para apresentar à caravana as pinturas rupestres da Lapa dos Gaivões, onde elementos do Moto Galos, de Barcelos, fazem uma paródia aos Flinstones.

Depois da visita a Campo Maior, e ao incontornável Centro de Ciência do Café, a etapa acabou em Elvas, com a noite a cair sobre uma praça repleta de motos, com as esplanadas cheias e um céu cinza-azul-dourado que prenunciava a trovoada que, de facto, se fez esperar muito menos do que certos participantes no Lés-a-Lés.

Sábado, dia 17

Há lá sítio melhor para se estar em Portugal durante uma vaga de calor do que na Amareleja, a recordista nacional das temperaturas máximas? Mas foi por lá que passou o 19.º Portugalde Lés-a-Lés, no seu derradeiro dia.

- Vocês aqui estão habituados ao calor!

- Mas ainda estamos em Junho. Em Junho é demais!- responde o proprietário do café Santo António, a servir águas atrás de águas. Até porque no alto de Monsaraz, o “oásis” anunciado secou.

Boa parte da caravana, como aliás voltou a acontecer adiante, já não teve como matar a sede, que o stock de duas mil garrafas esgotou demasiado cedo. E muita gente ficou a suspirar por água, ali, naquela varanda sobre a imensidão do Alqueva, o maior lago artificial da Europa.

Da Amareleja, a coluna saiu com passagem junto àquela que já foi a maior central fotovoltaica do mundo, subiu ao pitoresco Santo Aleixo da Restauração, onde na sede do grupo musical, junto à igreja, há uma sala com homens a ler o jornal, num silêncio sepulcral, enquanto outros ensaiam o cante de copo de vinho na mão, junto ao bar da agremiação.

Outro ponto alto do dia é a paragem nas Minas de S. Domingos, cheia de ruínas e crateras lunares. Foi a primeira aldeia do país a ter luz eléctrica. Explorada por ingleses, no séc. XIX, a extracção das pirites justificou uma linha de caminho-de-ferro, para escoar o minério para o Guadiana e daí para o mar, e até polícia própria tinha. Agora, aquilo que atrai muita gente é a praia fluvial.

O Moto Clube de Albufeira, já com pergaminhos nos dispositivos cénicos que engendra (no ano passado pôs um mini-submarino num rio), convocou uma figura de Jesus Cristo, de pé sobre a água, para picar os cartões de controlo dos participantes. Quem queria picar o cartão devia caminhar sobre as águas, sobre uma estrutura de madeira submersa, até ele, que aguardava de alicate e “mini” na mão. Ao lado, havia outro controlo para quem não se quisesse molhar. O controlador aguardava o participante numa cadeira colocada muito mais perto da margem. Mas não era certo que, num ou noutro controlo, não se fosse mandado à água. Se nos perguntassem se tínhamos o telemóvel no bolso, era caso para desconfiar das intenções…

E agora é seguir o Guadiana, para o deslumbramento com Mértola, Alcoutim e atravessar a serra algarvia até Estói, com o seu palácio convertido em pousada. Resta, finalmente, descer a Faro, para a festa da subida ao palanque e atribuição dos diplomas, no jardim Manuel Bívar.

Há quem inicie pouco depois a viagem de regresso a casa, até para poupar a despesa de mais uma noite fora. Não é muito barato o Lés-a-Lés. Além de ser preciso atestar várias vezes o depósito, a inscrição custa 150 euros por pessoa e quer a adesão quer a renovação anual do cartão de motociclista custa 25 euros (20 para associados de motoclubes). O cartão dá descontos no combustível e noutros produtos e serviços, além de incluir um seguro. E é preciso contar ainda com a despesa da viagem de regresso a casa, que pode ter ficado no outro “Lés” de Portugal.

E agora? Auto-estrada ou nem por isso?

 

Outra geringonça: Motards de todo o mundo, uni-vos

Há sempre figuras conhecidas no Portugal Lés-a-Lés, algumas repetentes. Nesta 19.ª edição participaram os actores Víctor Norte, Alexandre Silva e Helena Costa, o juiz Rui Teixeira, o ex- ciclista Cândido Barbosa, o ex-nadador Nuno Laurentino, o ex-piloto de enduro Miguel Farrajota. O mundo da política esteve representado pelo secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, pelo ex-ministro e ex-presidente da Câmara de Lisboa Carmona Rodrigues, pelos deputados do PCP João Oliveira e Miguel Tiago e pelo ex-parlamentar do PSD Rodrigo Ribeiro. Foi este o autor da Lei 33/2004, a chamada lei dos rails, que visa erradicar aquelas guardas ditas de segurança das estradas que funcionam como lâminas para motociclistas em despiste. “Sou frequentemente contactado por estrangeiros que pedem a nossa lei para traduzir”, orgulha-se.

O “facho” Rodrigo Ribeiro e os “comunas” Miguel Tiago e João Oliveira podem referir-se assim uns aos outros, porque são amigos. Os dois últimos continuam no Parlamento e estiveram ligados a outro diploma relacionado com o motociclismo. A dita lei das 125, que permitiu que os automobilistas possam conduzir também motociclos com motor até 125 cc. “Aconteceu até uma coisa estranha, caso único na Europa. A sinistralidade, mesmo em termos de número absoluto de acidentes envolvendo motociclos, até diminuiu”, refere João Oliveira, adiantando que o PCP tem um projecto de lei pronto para resolver outro problema que diz respeito aos motociclistas e que talvez seja apresentado ainda nesta sessão legislativa. “As matrículas portuguesas são as únicas que não têm indicação do país de origem e os nossos motociclistas, às vezes, são apertados pela polícia no estrangeiro por causa disso”, explica o líder parlamentar comunista.

 

Pim-pim-pam-pum

O Lés-a-Lés não é uma competição, mas, se fosse, o vencedor só podia ser Filipe Nascimento, de 41 anos, que em Faro toda a gente conhece e cumprimenta no Jardim Manuel Bívar, à chegada. Paraplégico desde os 23, em consequência de um acidente de moto, Pim Pim — como lhe chamam — participou com uma Vespa com side car, que amigos descobriram à venda no Olx.

Por incrível que pareça, ninguém reparou no facto de o side car, por ser inglês, estar montado à esquerda. O vendedor acabou por oferecer-lho, até porque não o conseguia homologar. E Pim Pim, que é engenheiro mecânico, tratou de fazer os projectos necessários.

Os seus amigos garantem que adrenalina a sério é fazer o Lés-a-Lés nas suas Vespas, com depósitos extra e LEDs. Alguns trocaram 1200 pelas vespas de 125 cc. E estão sempre a pensar em melhorá-las, sobretudo o veículo de Pim Pim, que, no que diz respeito a avarias, lhes deu água pela barba. “Tenho mais juízo do que eles”, diz Pim Pim, quando engatam a congeminar trocas de motor e marchas-atrás para o side car.

Não é fácil mantê-lo em linha recta, exige força de barços e jeitinho. É preciso cuidado a curvar para a esquerda, para que não se vire, e não é nada fácil convencê-lo a curvar para a direita. Dir-se-ia que uma pessoa normal não podia ter feito o Lés-a-Lés neste veículo. Mas o Pim Pim é um piloto extraordinário e os seus amigos, que nunca o deixam para trás — se vão ao rio, ele também há-de ir, nem que não lhe apeteça — também são tudo menos normais. Têm um sentido de humor incomum, politicamente incorrecto, impublicável... Foram, de longe, o troço mais louco e divertido do 19.º Lés-a-Lés. E a melhor parte melhor da caravana, em termos humanos.

--%>