Fugas - Viagens

  • Mário Lopes Pereira

Um perfume é como um livro, com um enredo e várias personagens

Por Francisca Gorjão Henriques

Lourenço Lucena é o único nez português que faz parte da Société Française des Parfumeurs. Acabou de lançar a primeira eau de parfum com a sua assinatura, o Acqua di Portokáli.

Marcamos encontro no Jardim Botânico Tropical, em Belém. É meio-dia de um dia de semana ameno. Sentamo-nos num banco de frente para a longa alameda ladeada de palmeiras e à sombra de uma árvore de copa larga, que de vez em quando deixa cair uns frutos que parecem figos anões. Ouve-se o chilrear dos passarinhos e os “gritos” dos pavões. Cheira a...

“Cheira a quê?”, perguntamos ao perfumista Lourenço Lucena (que acabou de lançar a primeira eau de parfum com a sua assinatura, o Acqua di Portokáli). Olha à volta, faz uma pausa, e responde: “Há aromas indefinidos, com notas muito verdes, não é? Se dermos aqui umas passadas vamos identificar mais alguns aromas. Basta começarmos a mexer na madeira, nos troncos e nas folhas e certamente será mais evidente. Se eu puder ser um bocadinho batoteiro, diria que existindo jacarandás há uma riqueza olfactiva espectacular, sobretudo em final de Maio e início de Junho, com as flores roxas a desabrochar e aquele aroma resinoso, muito intenso, muito denso.”

Um perfumista habitua-se a activar o sentido que mais vezes deixamos adormecido e a dar importância a detalhes que muito frequentemente nos escapam. “O olfacto foi dos sentidos humanos mais usados há uns milhares de anos, nomeadamente na pré-história, mas com a evolução da espécie deixámos de lhe dar importância. Hoje em dia o nariz é quase acessório. Andamos muito desatentos, mas tudo tem um cheiro. E tudo seria mais divertido se nos déssemos mais tempo para sentir esses pequenos detalhes.”

Podemos praticamente traçar a sua biografia com base nas memórias olfactivas (já agora, Lourenço Lucena tem 47 anos e nasceu em Lisboa). A primeira é a do picadeiro onde fazia volteio, aos dois anos e meio. O espaço já não existe, mas o cheiro a estábulo é o suficiente para o reconstruir. E se lhe aproximarmos do nariz um ramo de lúcia-lima, imediatamente voltará a ser a criança que brincava na casa dos avós no Monte do Estoril, onde a numerosa família passava férias. Depois há o cheiro da areia e do mar batido de Inverno, do tempo que passou em Pedras d’El Rei, no Algarve, entre 1975 e 1976. Há a grande excitação de, aos 12 anos, depois de juntar várias mesadas, comprar o primeiro perfume: Kouros, da Yves Saint-Laurent (a seguir veio um Aramis, “muito masculino”, depois o Fahrenheit, da Christian Dior). Esta é uma paixão que chegou cedo, portanto, mas que acumula com outras: com a música, a arte contemporânea, a publicidade.

Lourenço Lucena já era casado e pai de filhos quando decidiu que queria fazer uma formação em Composição de Perfumes na Cinquième Sens, em Paris — agora é o único nez português que faz parte da Société Française des Parfumeurs. Na sua empresa de publicidade, a Blug, era frequente dedicar-se a traçar o perfil olfactivo de uma ou outra marca. Como é que isso se faz? Exemplifica com o trabalho que em 2006 desenvolveu para a EDP, “a maior empresa de Portugal, altamente dinâmica, que pela sua actividade cria conforto”, e que no geral tem uma imagem relativamente feminina. Criou um perfume de ambiente que junta o cheiro da erva acabada de cortar (dinamismo), cedro seco (a madeira passa a ideia de solidez), tronco de rosa (um aroma floral, sem ser espampanante, mas feminino) e baunilha (que transmite conforto, como biscoitos acabados de sair do forno). Fez o mesmo para a Carris, num perfume inspirado em Lisboa, com a brisa do Tejo e o cheiro a especiarias. “Tinha a canela, dos pastéis de nata, manjerico, aroma da roupa lavada que se vê nos estendais.”

O acto de compor um perfume é “semelhante ao acto de cozinhar”, diz. “Antes de um chef criar uma receita já visualizou o prato. Houve antes o trabalho de pensar na história que se quer contar para depois fazer a concretização, que é o acerto de vários elementos.” Neste caso, mais do que um nariz ou paladar apurado, entra “a noção de equilíbrio e do belo”.

Lucena também se dedicou a fazer perfumes para pessoas ou projectos (como o cantor moçambicano Stewart Sukuma ou o Casa Comigo Lisboa), à venda em lojas. E perfumes costumizados, totalmente personalizados: fez cinco e recusou vários, porque exigem muito tempo. “É preciso entrar na pessoa, conhecer o seu gosto, a sua personalidade, o que come, que música ouve, como se relaciona com os filhos. É um retrato psicossocial.”

E ao fim de dez anos a encontrar o cheiro dos outros, decidiu que estava na altura de assumir a sua própria identidade — através da identidade do país. O Acqua di Portukali é inspirado numa fórmula clássica da perfumaria, o Água de Portugal, “que tem mais de 100 anos”. “Ainda hoje não consigo encontrar a história dessa fórmula, mas há algumas referências. A base é cítrica porquê? Porque os portugueses é que trouxeram a laranja da China. Muitas vezes é referido que as laranjas portuguesas são as melhores para a perfumaria, porque são as mais doces, mais sumarentas, mais aromáticas. É ‘a’ laranja [que em grego se diz portukali, daí o nome]. Decidi recuperar essa fórmula, mas rapidamente percebi que se a replicasse hoje ela pareceria antiquada, porque tinha neroli (um cítrico denso um bocadinho floral e muito pesado, quente) e muita flor de laranjeira. Retirei isso e adicionei bergamota, rosa branca e madeira de cedro para lhe dar contemporaneidade.”

Abre-se o frasco, um cubo preto, com o nome serigrafado a cor-de-laranja, e o que se sente? “O perfume tem um primeiro impacto muito cítrico, com a laranja à cabeça empurrada pelo limão e a bergamota — é quase uma laranja acabada de espremer. Mais tarde aparece a rosa branca e no final o cedro. O perfume é como um livro, em que vão aparecendo as várias personagens. É uma história que se vai revelando”.

 

Acqua di Portukali
O frasco, de 120ml, custa 120 euros, e a produção é limitada
À venda na Embassy - Niche Perfumery, em Lisboa, ou em https://acquadiportokali.com/

Resposta rápida

Quais os cheiros que não suporta?
Lixo, ovo podre, Cerveja e bebidas alcoólicas no chão queimado pelo sol, depois de uma noite de excessos.

Porque há tão poucos perfumistas em Portugal?
Porque é uma actividade rara. No mundo, no activo, somos cerca de 800 profissionais. Por outro lado, porque não existe uma indústria afirmada na área dos perfumes em Portugal.

Qual a importância de ser-se membro da Société Française des Perfumeurs?
Mais do que um título, o que valorizo na SFP é a facilidade de acesso a informação, conferências, congressos, encontros e uma porta aberta para o contacto com todos os membros. Ser membro da SFP é um garante profissional perante outros profissionais e perante a indústria.

--%>