Marcamos encontro no Jardim Botânico Tropical, em Belém. É meio-dia de um dia de semana ameno. Sentamo-nos num banco de frente para a longa alameda ladeada de palmeiras e à sombra de uma árvore de copa larga, que de vez em quando deixa cair uns frutos que parecem figos anões. Ouve-se o chilrear dos passarinhos e os “gritos” dos pavões. Cheira a...
“Cheira a quê?”, perguntamos ao perfumista Lourenço Lucena (que acabou de lançar a primeira eau de parfum com a sua assinatura, o Acqua di Portokáli). Olha à volta, faz uma pausa, e responde: “Há aromas indefinidos, com notas muito verdes, não é? Se dermos aqui umas passadas vamos identificar mais alguns aromas. Basta começarmos a mexer na madeira, nos troncos e nas folhas e certamente será mais evidente. Se eu puder ser um bocadinho batoteiro, diria que existindo jacarandás há uma riqueza olfactiva espectacular, sobretudo em final de Maio e início de Junho, com as flores roxas a desabrochar e aquele aroma resinoso, muito intenso, muito denso.”
Um perfumista habitua-se a activar o sentido que mais vezes deixamos adormecido e a dar importância a detalhes que muito frequentemente nos escapam. “O olfacto foi dos sentidos humanos mais usados há uns milhares de anos, nomeadamente na pré-história, mas com a evolução da espécie deixámos de lhe dar importância. Hoje em dia o nariz é quase acessório. Andamos muito desatentos, mas tudo tem um cheiro. E tudo seria mais divertido se nos déssemos mais tempo para sentir esses pequenos detalhes.”
Podemos praticamente traçar a sua biografia com base nas memórias olfactivas (já agora, Lourenço Lucena tem 47 anos e nasceu em Lisboa). A primeira é a do picadeiro onde fazia volteio, aos dois anos e meio. O espaço já não existe, mas o cheiro a estábulo é o suficiente para o reconstruir. E se lhe aproximarmos do nariz um ramo de lúcia-lima, imediatamente voltará a ser a criança que brincava na casa dos avós no Monte do Estoril, onde a numerosa família passava férias. Depois há o cheiro da areia e do mar batido de Inverno, do tempo que passou em Pedras d’El Rei, no Algarve, entre 1975 e 1976. Há a grande excitação de, aos 12 anos, depois de juntar várias mesadas, comprar o primeiro perfume: Kouros, da Yves Saint-Laurent (a seguir veio um Aramis, “muito masculino”, depois o Fahrenheit, da Christian Dior). Esta é uma paixão que chegou cedo, portanto, mas que acumula com outras: com a música, a arte contemporânea, a publicidade.
Lourenço Lucena já era casado e pai de filhos quando decidiu que queria fazer uma formação em Composição de Perfumes na Cinquième Sens, em Paris — agora é o único nez português que faz parte da Société Française des Parfumeurs. Na sua empresa de publicidade, a Blug, era frequente dedicar-se a traçar o perfil olfactivo de uma ou outra marca. Como é que isso se faz? Exemplifica com o trabalho que em 2006 desenvolveu para a EDP, “a maior empresa de Portugal, altamente dinâmica, que pela sua actividade cria conforto”, e que no geral tem uma imagem relativamente feminina. Criou um perfume de ambiente que junta o cheiro da erva acabada de cortar (dinamismo), cedro seco (a madeira passa a ideia de solidez), tronco de rosa (um aroma floral, sem ser espampanante, mas feminino) e baunilha (que transmite conforto, como biscoitos acabados de sair do forno). Fez o mesmo para a Carris, num perfume inspirado em Lisboa, com a brisa do Tejo e o cheiro a especiarias. “Tinha a canela, dos pastéis de nata, manjerico, aroma da roupa lavada que se vê nos estendais.”