Fugas - Viagens

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    Memorial nas Ramblas Quique Garcia / EPA
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    Memorial nas Ramblas Albert Gea / Reuters
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    Vista sobre as Ramblas Alberto Estevez / EPA
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Barcelona não se rende - e até os barceloneses voltaram à Rambla

Por Andreia Marques Pereira

Por ano passam cerca de 78 milhões na Rambla de Barcelona. No dia 17, dezenas de pessoas foram arrastadas por uma carrinha, 13 morreram. Mas Barcelona não baixou os braços. Até os barceloneses esqueceram as queixas contra o turismo. “Barcelona hugs you” – “you”, os turistas, que nunca a deixaram.

Podíamos começar o texto por aquela mãe e aquela filha adolescente que acabam de acender duas velas junto da “entrada” norte da Rambla (ou Ramblas: La Rambla são várias ramblas encadeadas desde a Praça da Catalunha, a norte, até ao monumento a Colón, Cristóvão Colombo, já junto ao mar), mesmo diante do icónico Café Zurich. É aqui que está o primeiro memorial, enorme, velas, flores, peluches, cartazes, simples folhas de papel, palavras de luto, de esperança, “La comunidad musulmana de Cataluña condena el acto terrorista”, “No tengo miedo”. Uma multidão rodeia-o, há silêncio, alguns olhos marejados e muitos telemóveis ao alto para fotografias.

Podíamos então começar por Mar Gálvan, mas ficará para mais tarde. Vamos descendo as ramblas entre a multidão que novamente as tomou de assalto, entre memoriais mais pequenos que se sucedem, desta feita nas bordas do boulevard, muitas vezes tendo árvores como altares. Num deles, uma mulher, meia idade, imóvel, com um molho de cravos na mão, vermelhos e amarelos. Deposita um, segue numa espécie de peregrinação. “Os cravos são uma flor muito catalã. As cores são as de Espanha e da Catalunha. Mas não penso só nos espanhóis e nos catalães, penso também nas outras pessoas que nos visitam e que enquanto cá estão são dos nossos”, explica Isabel Massagué. Estava fora de Barcelona quando tudo aconteceu. “Senti-me muito triste, com muitas perguntas. Sobretudo ‘porquê?’”, desabafa. Por isso, mesmo tendo chegado na noite anterior, mesmo não vindo habitualmente às Ramblas (“Antes vinha muito, depois chegaram os turistas. E, entretanto, os meus pais, com quem eu vinha passear, já cá não estão. Então, não tenho muitos motivos para vir...”) sentiu “uma obrigação de vir”, de expressar o que sente. “E dá-me paz, não sei...”. Como sou portuguesa, despede-se dando-me dois cravos vermelhos. “Sei o que significam para os portugueses e é para que homenageies as duas portuguesas que morreram aqui.”

Barcelona no té por.” Barcelona não tem medo, lia-se, pelo menos no início da semana, na página inicial do ayuntamiento de Barcelona. Ao lado, o laço negro de luto, por baixo, uma foto da concentração do dia 18 na Praça da Catalunha, menos de 24 horas após o atentado que matou 13 pessoas (embora o número possa ter subido, entretanto) mesmo ali ao lado. Cem mil pessoas ter-se-ão juntado no minuto de silêncio que depois se transformou em 20 minutos de gritos “No tinc por”, não tenho medo, que desceram a Rambla — hoje, dia 26, repetir-se-á esse grito, numa grande manifestação de repúdio aos atentados e à violência, a favor da paz, do amor e da solidariedade, que irá da Gràcia à Praça da Catalunha. E, entretanto, a Rambla é isso mesmo, a expressão de um misto de sentimentos por gente de todo o mundo, onde se repete à exaustão em cartazes “No tinc por”.

A avenida mais emblemática de Barcelona voltou a encher-se de gente de todo o mundo depois do seu esvaziamento no final da tarde de 17 de Agosto e da fantasmagoria da madrugada de sexta-feira, quando grupos de turistas iam sendo escoltados por mossos d’esquadra armados até aos seus hotéis pelos passeios laterais. Uma cena quase surreal, vivida tranquilamente, com agradecimentos à polícia, mas também com um desprendimento quase blasé alimentado por conversas banais, despedidas efusivas de conhecimentos fugazes forjados nas longas horas de espera fora do perímetro de segurança.

Na sexta-feira, as barreiras já tinham “caído” e no sábado o comércio já estava praticamente todo aberto. Recomeçou a voltar a vida (quase) normal à Rambla, desta feita não só no prazer de passear pelo boulevard que é a espinha dorsal do turismo de Barcelona mas também num misto de homenagem e de voyeurismo macabro (a quantidade de selfies que vemos ser tiradas parece ser paradigma de algo que o roça, pelo menos). E os barceloneses, que adoram odiar as Ramblas, regressaram em força. Afinal, pode tirar-se um barcelonês da Rambla mas não se pode tirar a Rambla de um barcelonês.

“A vida segue”

Dos barceloneses que vieram, uns encontraram o que esperavam. E, então, aqui está Isabel com os seus cravos, e Mar Gálvan com a sua filha e as suas velas depositadas logo no começo da Rambla, por onde entrou a carrinha branca disposta a percorrer os 1,2 quilómetros de extensão desta espécie de colmeia humana. Vêm pela primeira vez desde que tudo se passou — e é segunda-feira. “Esperámos, primeiro pelo cordão policial, depois pelas manifestações, havia muita gente”, explica Mar, “e hoje entrei de férias”. Viram tudo pela televisão, entre “a raiva e um pouco de medo”. “Somos fortes, há que seguir adiante. Há que sair à rua apesar do que aconteceu. Dar o exemplo, até a quem nos visita, mostrar que somos gente que acolhe, que vive, que sente a dor.” Crê que o turismo vai continuar, quer que o turismo continue.

Outros, como Pep Sanchez, que esteve na Rambla na sexta-feira e no domingo, “sem parar demasiado”, não encontraram o que esperavam. “Na sexta-feira creio que procurava emocionar-me. Mas não me emocionei nada”, confessa. E no domingo já não gostou do que viu. “Entendo que por estes dias seja um grande palco, porque todos os meios de comunicação estão a informar sobre o que se passa. Porém, no domingo já havia no ar algo como ‘parque temático da dor’ de que não gostei nada. Claro que entendo que muita gente se comova com tantas velas, corações e outros que tais, mas o ambiente... tão Black Mirror... tanta gente a tirar fotografias com telemóveis...”. Pep é contra a Barcelona que tira aos habitantes e se oferece aos turistas e teme que este seja mais um motivo para “turistificar” (um verbo muito em voga por aqui) a cidade.

António Martín está junto à Fonte de Canaletes (“território” do F.C. Barcelona: aqui se celebram as vitórias do clube) a observar uma das muitas equipas de televisão a trabalhar, sem pensar no mediatismo mórbido de que fala Pep. “Vivo perto”, aponta vagamente para o lado do Raval, “e estava por aqui”. “Não deu tempo para pensar no que se estava a passar”, recorda, “a polícia dizia para irmos para baixo, depois para cima. Tentas defender-te, não te preocupas com mais nada.”

Quase diante de Canaletes está o restaurante Aromas de Istambul, que chegou a ser dado nas primeiras horas como local de entrincheiramento de um dos supostos terroristas. Souhail Rhnimi e Souhail Hussein são dois dos empregados e estão à porta a tentar captar clientes. “A afluência baixou 80%”, sublinha Rhnimi, “mas falei com outros aqui à volta e é o mesmo”. “Há um susto ainda”, nota. “Há gente, mas são catalães, os turistas andam com muito medo.” Sobre o dia 17 recordam “um grande ruído” e de ver a carrinha a passar — “parecia que a 100 à hora”. “Pensámos que era alguém a fugir da polícia ou que tivesse ficado sem travões. Mas depois vimos que ia aos ziguezagues. Foi logo ao primeiro quiosque e depois comia tudo.” Entraram-lhes três adolescentes franceses “desnorteados”, mas um acabaria por sair à procura de outros amigos. Fecharam as portas, ligaram à polícia a dizer que estavam bem e foi-lhes dito que ficassem no interior. “Quando saímos foi com as mãos no ar, a polícia estava de armas apontadas.” “Isto não vai acabar connosco”, assevera Rhnimi, o mais falador dos dois, “temos de seguir o melhor possível”. Ambos marroquinos e muçulmanos, imigrados há quase dez anos, notam que “andam por aí dois tipos de gente: os que dizem ‘olhem os que os muçulmanos andam a fazer’; e os que dizem ‘isto é terrorismo’”. “Somos os imigrantes mais afectados”, assume Rhnimi, “os turistas sabemos que vêm e vão”. “E vão continuar a vir, tenho acordado sempre com essa convicção.”

No jornal El País, o escritor Miqui Otero, de Barcelona, citava outro escritor da cidade, Eduardo Mendoza (Prémio Cervantes 2017) dizendo que “na Rambla confluem raças de todo o mundo” e, ironizando, acrescentava que essa foi “a virtude que a tornou na escolhida para este atentado”. Não foi todo o mundo, mas foram 34 as nacionalidades atingidas no ataque de 17 de Agosto e os cartazes espelham o mundo: há-os em cirílico, hebraico, chinês, da República Dominicana, do Canadá, do Equador, dos Estados Unidos... Contudo, tal não afastou turistas, como Dominick e Nina, alemães de Heidelberg, acabados de chegar. Estão sentados em duas das cadeiras da Rambla, mesmo ao lado do primeiro quiosque atingido, com as malas aos pés e uma sanduíche na mão. Não pensaram em cancelar a viagem. “O que aconteceu aqui foi muito mau, mas a vida segue. Não podemos ter medo”, diz ele; “Não importa onde, já não estamos a salvo em lado nenhum. Ainda há pouco tempo aconteceu na Alemanha”, atira ela. Não vêm propriamente com planos — “já estivemos aqui tantas vezes” — mas vão andar sem restrições, garantem.

Cristian Zapatero chegou do Chile com a mesma determinação. Estava em Paris quando soube do ataque, já tinha bilhete e veio de qualquer forma. “De que serve ter medo? Assim não saíamos de casa.” O irónico é, conta, que quando foi, no ano passado, ao Irão, os amigos ficaram quase horrorizados, “pensavam que era muito perigoso”. “Quando disse que vinha à Europa todos me invejaram”, sorri. Como é a sua primeira vez aqui, tinha esperança de ver o mosaico de Miró, mas encontrou-o coberto pelo maior memorial da Rambla. Deteve-se aí um pouco e até acendeu uma vela, “um dos quiosques oferecia umas pequeninas”.

Nas últimas semanas, as grandes polémicas em Barcelona eram o excesso de turismo (a “turismofobia”), a gentrificação (questões cíclicas, que agora têm direito a bandas nos postes onde se lê “Your holidays, our everydays”) e a sempiterna independência. Agora, no entanto, lê-se em cartazes “Barcelona hugs you”, “Descanseu en pau, Barcelona sempre us recordará” – “you”, “us”, os turistas que foram as principais vítimas do ataque. E se de manhã nos parecia que o espanhol estava em maioria, à tarde já a Rambla se havia transformado na habitual torre de Babel e havia grupos guiados — os sinais erguidos pelos guias eram bem visíveis acima da multidão que aumentara consideravelmente. Entretanto, já tinham aberto os quiosques de comida e bebida e ninguém aparentava qualquer sinal de alarme enquanto bebia os sumos coloridos ou comia os gelados em cones ou copos.

Passam ambulâncias, poucos olham duas vezes. Só se voltarão mais cabeças quando passar uma minicomitiva de motas da polícia e uma carrinha celular, a subir em direcção à Praça da Catalunha ao início da tarde — chegam telefonemas de Portugal porque há notícias de evacuação da Rambla: não houve evacuação, foi um falso alarme por causa de uma mochila deixada no metro da entrada norte.

E Guillém Rovira, a fumar um cigarro diante do quiosque onde trabalha, recorda, ainda tenso, o que viveu na quinta-feira. Entrava às 17h e estava a chegar ao passeio diante do seu posto de trabalho, em frente ao hotel Le Méridien, quando toda a gente ia já a correr para as ruas laterais e bares. “Os meus colegas ficaram paralisados nos primeiros instantes. Havia pessoas, bolsas no chão”, rememora. Contudo, nota, “não houve um pânico muito exagerado, se fosse bomba teria sido muito pior”. “As pessoas estavam sobretudo impressionadas, chocadas.” Juntou-se aos colegas e tentaram arrumar tudo. “Vieram duas raparigas aqui para dentro, mas não era seguro.” Entretanto, “chegou a polícia que já anda por aqui normalmente e logo as ambulâncias e mais polícia”. Mandaram todos embora e eles buscaram refúgio na Praça de la Villa de Madrid. “Depois deixaram vir os que tinham aqui negócios mas soube-se do restaurante turco e expulsaram-nos de vez.” Não sente medo, “pode acontecer outras vezes”. “Aliás, já podia ter acontecido. Já havíamos pensado: ‘Porque não colocam uns pilaretes’?” “O meu sentimento é mais wow, de ver a gente a correr, no chão. Não dormi, não comi.” “Os turistas vivem melhor isto, a cada dez minutos renovam-se”, conclui.

Na “rambla das flores”, nome informal do troço onde se concentram os vendedores de flores, muitos quiosques estão fechados, alguns por férias, outros sem explicação. Os que estão abertos não param: saem muitas rosas, três euros cada uma. Estamos na zona do La Virreina Centre de L’Imatge, um dos edifícios mais destacados da Rambla, belo exemplar barroco construído por um antigo vice-rei do Peru, que agora é um museu. A exposição é de Paula Rego, Lèxic familiar, a entrada gratuita; um excerto de Clarice Lispector, em catalão, acompanha a publicidade que é feita ao longo da Rambla.

“Volveremos a cruzar las Ramblas”

E o célebre mercado modernista La Boquería já se adivinha. Numa árvore, um papel “La Boquería está de luto”, a foto de uma das vítimas é acompanhada de mensagem “Te acordamos con esa sonrisa angelical, Silvita”. Mais à frente é a foto de Luca, o italiano, que surge num dos quiosques de flores vazios. “Nada de fotos”, diz um homem em italiano, para a mulher e dois filhos. E já estamos no mosaico de Miró, na Pla de L’Os, engolido pelo que vimos em todos os memoriais, destacando-se uma coroa com a forma do emblema do F.C. Barcelona. “Viktoria Barcelona”, lê-se numa das mensagens neste que foi o local onde a carrinha branca se imobilizou, a poucos metros de outro dos símbolos da Rambla, o Gran Teatre del Liceu, uma das mais importantes casas de ópera mundiais (numa perpendicular próxima “esconde-se” o Palácio Güell, obra de Gaudí).

Foram os expositores do quiosque mesmo ao lado que “rebentaram o motor”, conta um dos funcionários. Não estava cá nesse dia. “Quem está a trabalhar agora não estava na altura. Trabalhamos por turnos.” Sabe que um companheiro se salvou por pouco, “nem ouviu a carrinha”, mas entrou na parte fechada segundos antes de esta passar a arrastar os suportes de metal carregados de gravuras, postais, capas de telemóveis, ímanes.

Poucas das pessoas que compõem a multidão aglutinada em torno do memorial que esconde precisamente um dos quatro presentes que Miró queria dar aos visitantes que chegam à cidade por terra, ar e mar — o mosaico era para quem desembarcava no porto — repararão, por estes dias, que estão junto de um dos mais interessantes edifícios da avenida. Na esquina com a Pla de La Boquería, à altura do primeiro andar, um dragão chinês escapa-se da fachada com um leque, por baixo um guarda-chuva a revelar a primeira vocação da casa (venda de guarda-chuvas) que agora é uma filial de um banco — no topo, a decoração é egípcia, a fachada principal está intercalada de sombrinhas e leques e a rematar o rés-do-chão estão vitrais de motivos orientais. Na mesma praça, o International Beer Bar tem vista directa para o mosaico. Não surpreende, portanto, que aí tenham buscado refúgio alguns dos que fugiam sem saber bem do quê. “Mesmo antes de chegar a carrinha, ouvia-se muito barulho e pessoas a correr”, dizem as empregadas, que preferem não dar o nome. Uma saiu para ver o que se passava mas as pessoas vinham a correr em sentido contrário. Ainda viu gente estendida no chão e deu-se conta de que já tinha visto isso. “Percebi que não era um acidente.” Não entraram muitas pessoas neste bar que, apesar do “international” no nome, é tipicamente espanhol. “Pensámos logo que a carrinha podia ser uma bomba e fechámos tudo.” Um dos que se abrigou aqui com a namorada acabou a prestar declarações à polícia, tinha visto bem o condutor. Viu também o rapaz que o socou quando ele conseguiu desbloquear a porta da carrinha. “Mas ele levantou-se e o outro paralisou, havia muitos corpos no chão”, terá contado. A imagem de uma criança ainda na frente da carrinha e alguém a tirá-la dá-lhes pesadelos. “Tudo parece incongruente”, dizem, embora várias vezes tivessem falado da falta de pilaretes na entrada da Rambla.

Aqui parece que há uma espécie de mentalização de que o turismo vai decrescer. “Vimos o que aconteceu em Paris.” Curiosamente, não faltam exemplos de cidades atacadas por veículos (Nice, Berlim, Estocolmo — daí o dèja-vu), mas em Paris foram bombas as armas utilizadas. Em vários pontos da cidade.

Se os planos iniciais aqui seriam outros, a verdade é que acabaram por se restringir à Rambla. Segundo um estudo realizado em 2016 pela Associação Amigos da Rambla citado pelo jornal El Mundo, por esta passam anualmente cerca de 78 milhões de pessoas, apenas 20% das quais de Barcelona. “Uma geração de barceloneses foi para as Ramblas para tornar-se adulto. Já ninguém permanece nas Ramblas. Ninguém permaneceu nas Ramblas após o ataque. Todos nós ficámos nas Ramblas no dia seguinte”, escreveu ainda Miqui Otero no texto que intitulou “Volveremos a cruzar las Ramblas”. Talvez os barceloneses voltem a cruzar as Ramblas, sim. Com vontade. Talvez até o desiludido Pep Sanchez recupere um hábito antigo: “Há anos sim, andava muito, Rambla arriba, Rambla abajo”. Afinal, como canta Manu Chao, espécie de filho adoptivo da cidade (e, dizem, vizinho da Rambla, na Praça Real), “rambla pa’qui rambla pa’llá, esa es la rumba de Barcelona”. E essa rumba já não se dança sem os turistas.

 

Roteiro por uma Barcelona que no té por

Uma Barcelona que não tem medo teria saído para as festas de Gràcia, canceladas no dia a seguir ao seu início por causa do período de luto decretado, e não perderá as festas de La Mercè (a padroeira da cidade), as maiores da cidade, que vão acontecer entre 22 e 25 de Setembro. Vai continuar a assistir a concertos e cinema ao ar livre em Montjuic acompanhada dos turistas que vão ver o espectáculos de luzes e água que todos os finais de tarde se realizam nas fontes da escadaria que leva ao Museu Nacional de Arte da Catalunha (no extremo oposto da Praça de Espanha) e ninguém deixará de ler e fazer piqueniques no Parque da Cidadela. Claro que se manifestará na “Diada”, o 11 de Setembro da Catalunha e o seu dia nacional, este ano (ainda) mais animada pelas questões independentistas, uma vez que a Assembleia Nacional da Catalunha quer realizar um referendo a 1 de Outubro (e de certeza que os atentados na região autónoma farão parte da agenda).

Sim, serão ocasiões de grandes concentrações humanas, que o estado de alerta em Espanha (e em tantos países europeus) desaconselha, mas é assim que os catalães mostrarão que “são livres”, como nos dizia Mar Galván, na Rambla — uma liberdade reivindicada desde 1714: “Viveremos livres ou morreremos” (“Viurem lliures o morirem”). Na ocasião, “morreram”, perderam a sua constituição, as suas instituições, universidades, foi-lhes proibida a língua. Agora, vivem.

A cidade retomou o ritmo normal e, em Agosto (como em todo o Verão), isso até significa um ritmo mais lento — turistas em magotes encontram-se por todo o centro da cidade, sobretudo na Cidade Velha —, obrigando a abrandar o passo a quem faz a sua vida quotidiana e muitas lojas “locais” fecham as portas como sempre o fizeram neste mês de estio (esperem-se muitos sinais de “Trancat per vacances”). As praias de Barceloneta, como sempre, rebentam pelas costuras (por estas caminham os vendedores: artesanato, contrafacções, massagens), e não é de barceloneses — estes preferem praias um pouco mais afastadas, de Poble Nou para cima. Poble Nou, aliás, está cada vez mais na moda: de aldeia piscatória a centro de grandes empresas, aqui prédios novos atraem cada vez mais jovens que optam por comprar casa e encontram na sua Rambla entretenimento q.b..

Do outro lado de Barcelona, Sant Antoni ou Poble Sec, este já aos pés de Montjuic, estão a deixar para trás o passado de bairros de classes trabalhadoras. O comércio tradicional convive nos últimos anos com bares e restaurantes mais ou menos trabalhados — os brunches e os vermutes são vícios e a preços “locais”, o que significa que muito mais baratos do que no centro —, boutiques de autor, galerias de arte, de design. E, entretanto, o famoso mercado de Sant Antoni, o maior de Barcelona, tem o final das obras marcado para Outubro (pelo que vemos, será difícil...) e Poble Sec tem-se confirmado como o destino de ouro para os foodies que visitam Barcelona, muito por culpa dos suspeitos do costume, os irmãos Adrià: Enigma, o último restaurante aberto (em Janeiro deste ano) já foi considerado o melhor novo restaurante da cidade por um guia local.

A Gràcia mantém aquela espécie de aura de pueblo, ainda que já tenha sido descoberta pelo turismo. As suas praças e ruelas estreitas ainda assim continuam a dosear com habilidade a identidade local e a gentrificação, e isto bem perto do centro da cidade: entre a Praça da Catalunha e a Gràcia está apenas o Paseig de Gràcia, a avenida de Barcelona que rasga o Eixample e alberga as marcas mais caras (e outras mais banais, tudo depende da altura). E guarda também dois monumentos imperdíveis, por estes dias facilmente identificáveis pelas longas filas que se formam na rua à espera de entrar, e outras jóias do modernismo catalão, pelo que andar atento à arquitectura tem as suas recompensas — não tivesse sido o Eixample o laboratório preferido dos modernistas, já que aqui não havia qualquer urbanização até quase ao final do século XIX. Já lá iremos.

A Cidade Velha, a Barcelona original, aquela que foi cercada por muralhas sucessivas, é aquela onde o turismo engole o dia-a-dia — e se é verdade que no Verão é mais massivo, o movimento dura todo o ano. É aqui que a Rambla surge como um dos eixos estruturantes, divide o bairro Gótico do Raval, mais a oriente é a Via Laietana que faz esse papel sem o charme da primeira, apenas uma longa avenida de tráfego intenso, que separa, simplisticamente, o Born (e Santa Caterina y Sant Pere) do Gótico — mas que tem quase a bordejá-lo o Palácio da Música Catalã, obra modernista de Lluís Domènech i Montaner, que é uma verdadeira pérola luminosa de pormenores infinitos.

E se os turistas por aqui andam é porque vale a pena. Mesmo se sabemos que o bairro Gótico é uma “invenção” dos anos de 1930, quando a cidade decidiu que queria tornar-se um destino turístico. Foram deslocados e remontados vários edifícios, outros foram arranjados com um “ar” mais medieval. Certo é que entre o Born e o Gótico, separados artificialmente pela Laietana, o labirinto de ruas e ruelas que desembocam em praças e pracetas é imenso — e vale a pena perdermo-nos só para nos descobrirmos num dos melhores restaurantes japoneses de sempre. E, entre palácios austeros com as suas enormes portas de madeira, igrejas, conventos, antigos cemitérios, espreitem-se restos da muralha e aquedutos romanos diante de um friso de Picasso (na Praça Nova, Gótico). Claro que o comércio do século XXI, com insistência de souvenirs — e estamos no Gótico — pulula, mas não queremos saber. No Born, onde a pedra antiga dá lugar a mais fachadas pintadas (mais ou menos desbotadas), o comércio é mais vanguardista, abundam designers, lojas alternativas e bares de cocktails que valem o seu preço (pago em “ouro”).

E depois temos o Raval, onde parece caber toda a Barcelona e a sua sofreguidão por criar pontos turísticos. Aqui se implantou o Museu de Arte Contemporânea (MACBA), com uma esplanada imensa a servir de pista de skate, aqui se instalou o famoso Gato de Botero, na Rambla do Raval, fama de red light district. A fama é, aliás, algo que precede o Raval, bairro de imigrantes depois de ter sido de indústrias e operários. Chegou a ser conhecido como “bairro chinês” mas agora são mais os paquistaneses que por aqui vivem e trabalham. Quem procura a Barcelona multicultural vê-a aqui em concentrado: uma rua cheia de locutórios, mercearias e lojas de electrónica propriedade de imigrantes, tem nos interstícios alguns dos bares mais interessantes da cidade e cervejas a um euro acompanhadas por música alternativa; os brunches de alguns dos seus restaurantes são dos mais concorridos da cidade. A roupa segue a secar nas janelas entre a boémia do ravalear, onde a prostituiçãoo prossegue mais escondida e a droga volta a revelar-se nos chamados “narco pisos”.

Esta é Barcelona central. A Barcelona hiperturística. A Barcelona onde não ter medo passou a ser, mais do que uma necessidade, uma obrigação, mais que não seja por orgulho. De barceloneses e turistas.

 

 

A não perder

Sagrada Família

Foi apontada como outro dos possíveis alvos dos terroristas de 17 de Agosto, esta obra inacabada de Antoní Gaudí. Claro que continua em obras, mas as filas para a visitar não deixam de ser quilométricas. Há quem suba às torres para ver Barcelona aos pés; há quem se concentre na praça diante dela (não se espere nada grandioso) a fotografá-la durante horas — e a evitar os andaimes e tapumes. É um dos símbolos da cidade e a síntese da carreira do seu arquitecto: foi iniciada em 1882, quando ele tinha 30 anos — morreu em 1926 sem terminar a sua visão para a igreja a que se dedicou quase exclusivamente nos últimos dez anos de vida.

La Pedrera e Casa Batló

Continuamos a perseguir Gaudí e as suas formas orgânicas feitas em pedra. Estes dois edifícios, que foram de habitação até serem declarados monumentos (e património da UNESCO, a primeira) distam poucos metros no Paseig de Gracià. Ambos foram construídos na primeira década do século XX, para habitação de famílias ricas: estas viviam no andar nobre, deixando os de cima para aluguer e o rés-do-chão para comércio. E ambos reflectem a faceta mais orgânica de Gaudí, que buscou aplicar na aarquitectura as formas da natureza. Em termos funcionais, eram avant-garde; em termos estéticos, revolucionários — e belos, como hoje, com as suas formas arredondadas, quase como ondas. O primeiro é reconhecido pelas chaminés e torres de ventilação, peças quase escultóricas, a um tempo sinuosas e rectas, pintadas em cores ocre ou revestidas em pedaços de cerâmica; o segundo pelas varandas que lembram caveiras contra uma fachada de mil cores pintadas por vidros e pequenas peças de cerâmica.

Parc Güell

Não queremos insistir tanto em Gaudí, mas não podemos escapar-lhe em Barcelona. O Parc Güell foi encomendado por Eusebi Güell a Gaudí (que já lhe havia construído o Palácio Güell, perto da Rambla) como um projecto imobiliário, numa zona a norte de Gràcia. Seria um retiro exclusivo no meio de um grande jardim. O insucesso das primeiras casas doou à cidade um parque que é como um jardim das maravilhas. Não faltam, aliás, elementos alusivos a vários contos infantis, longas escadarias, bancos serpenteantes com vista para a cidade e, claro, a famosa salamandra que se tornou num dos símbolos da cidade.

Catedral

O nome oficial é comprido, Santa Igreja Catedral Basílica da Santa Cruz e Santa Eulália, e foi construída entre os séculos XIII e XV, sobre a antiga catedral românica, que por sua vez tinha sido erigida no lugar de uma igreja visigótica, que havia substituído uma basílica paleocristã... Lugar sagrado desde tempos quase imemoriais, a catedral gótica tem 90 metros de comprimento e 40 de largura e a ela está adossado um claustro. Está localizada, claro, no bairro Gótico, ao lado da Via Laietana, rodeada de vestígios romanos e um painel de Picasso. Em 1545, um pintor português, Henrique Fernandes, terá pintado uma das paredes, junto a túmulos reais.

Fundação Joan Miró

Se Miró pretendeu oferecer três obras para dar as boas-vindas a quem chegava a Barcelona — a obra prevista para quem chegava por terra, a instalar na avenida Diagonal, acabou por não ser aí instalada por ter sido originalmente concebida para Chicago e aí ter ficado —,também decidiu oferecer à cidade uma fundação-museu. Seria um local para exibir a sua obra mas também para albergar exposições de arte contemporânea. Foi assim que surgiu a fundação, instalada na falda oriental de Montjuic, inaugurada em 1975, e onde se vê uma réplica mais pequena da tal terceira obra que não chegou a dar à cidade, a escultura Miss Chicago. Incontornável para amantes do artista catalão, uma vez que possui o maior acervo do mundo da sua obra. Oferece ainda vistas incríveis da cidade e está rodeado do verde da montanha.

Museu Picasso

São 2429 as obras, em vários suportes e estilos, que o museu catalão possui do artista malaguenho. Abriu em 1969, tem a colecção mais completa das obras da juventude de Picasso – a maioria dos trabalhos foram realizados entre 1890 e 1917. No entanto, destaca-se a série de 58 obras que produziu em torno de “As meninas”, de Velázquez, que o próprio Picasso doou ao museu em 1968.

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