Mas o programa de voluntariado abre as portas da quinta o ano todo, e entra toda a gente: os “potenciais agricultores profissionais”, os “urbano-depressivos da varanda”, e “os voluntários da pastilha”.
A técnica é fácil de explicar e, na verdade, é ainda mais fácil de aprender. Primeiro, coloca-se o chapéu na cabeça; depois, pendura-se no cinto das calças o saco plástico, ainda vazio. Por fim, escolhe-se um entre a mais de uma dezena de canteiros que, por esta altura do ano, estão majestosamente floridos. Então, é começar a colher. As flores dão-nos sensivelmente pela cintura, a planta das perpétuas é admiravelmente generosa, não é preciso sequer tentar levar o canteiro a eito. É só dar gosto às unhas e escolher as que têm as flores maiores: usa-se a unha, e tenta-se cortar a perpétua o mais perto possível da flor. A flor desprende-se com tanta facilidade que, rapidamente estaremos à vontade para usar as duas mãos. De repente, o saco começa a ficar alegremente cheio.
Deve dizer-se que não se trata aqui de uma corrida a ver quem enche mais sacos. Não há objectivos mínimos ou máximos, na verdade cada um apanha as que quiser. Porque é de voluntariado que aqui se trata, e a colheita de perpétuas foi mesmo a iniciativa pioneira que transformou o Cantinho das Aromáticas na primeira empresa agrícola do país a aderir à bolsa nacional do voluntariado. Foi há seis anos. A bolsa nacional entretanto extinguiu-se. Mas a procura do Cantinho das Aromáticas, para passar uma manhã de sol ou de chuva, está muito longe da extinção. E as perpétuas, sobretudo as de cor roxa, como aquelas que estamos a cortar com a ponta dos dedos, têm muito a ver com isso.
Maria de Fátima, Luísa e Matilde são três gerações de uma mesma família, residente no Porto. O apelido “não interessa”, a motivação era clara: “Vi ontem no Facebook as fotografias do sábado passado, já ouvi falar muitas vezes, decidimos vir experimentar. É uma maneira diferente de passar a manhã. Ao ar livre”, explica Maria de Fátima, a avó. A neta, Matilde, cinco anos aguardava o reinício da escolinha, e estava a “adorar estar a apanhar flores”; a tia, Luísa, está desempregada, à procura de oportunidades no mundo da fotografia. Desta vez não trouxe a máquina, e, confessa, já se arrependeu.
A fotogenia deste Cantinho e destes canteiros é inegável, e não há câmara de nenhum telemóvel que não o confirme. Américo Cartucho, reformado da PSP, apaixonado pela fotografia e voluntário desde que o Cantinho começou a abrir as portas, será um do que mais a conhece. “Tenho uma colecção de fotos do Cantinho que é interminável. Vejo-o do meu terraço – e tenho fotos em que, às vezes, parece que estamos na Provença (França), ou na Suíça”, explica. Admite que a época das perpétuas é uma das mais bonitas, mas ele está lá todo o ano, mesmo quando é para colocar estacas, fazer envasamentos, trabalhar na estufa. “O Luís [Alves] é um poço de sabedoria. E o sentido de humor dele é excepcional. Quando não venho cá, sinto a falta”, explica. Esta quinta-feira trouxe a neta para o acompanhar e, enquanto despeja um saco cheio de perpétuas roxas, e tira a máquina da mochila que trazia às costas, avisa. “Já fiz a minha parte, agora vou procurar a aranha-tigre: não me pergunte o nome científico dela, já a vi aí a semana passada [e mostra a fotografia no ecrã da máquina] vou ver onde anda agora!”, sorri.
Há, pois, os voluntários que aparecem todas as semanas – e que têm mesmo esse estatuto, e um manual assinado com direitos, deveres e benefícios (no final de cada actividade, degustar infusões e biscoitos na casa das infusões; receber uma planta por participação, beneficiar de descontos, contribuir para cabazes a entregar a instituições de solidariedade. E há os que aparecem uma vez por outra, quando podem. “Acho que as pessoas querem sobretudo alterar os seus hábitos, estar ao ar livre, sentirem-se úteis, serem felizes”, sintetiza Luís Alves.
Esse é, também, o resumo perfeito para descrever a “Malta das Aromáticas”, o grupo iniciado por Carlos Vieira, que começou a frequentar a Quinta em 2012, e desde então não deixou de o fazer, todas as quintas-feiras, de Julho a Outubro. Reformado da PT, começou a juntar ex-colegas ao grupo, hoje já são mais de 30, reformados dessa e de outras empresas. “Passamos a manhã aqui, e depois vamos todos almoçar e passear. Hoje vamos ao leitão”, avisa. Da “Malta das Aromáticas” faz parte gente de toda a Área Metropolitana do Porto, mas não só. Há quem venha de Baltar (Paredes) ou do Marco de Canavezes. Ou até de Montemor-o Velho, distrito de Coimbra, como Cláudio Matos, um funcionário de uma livraria em Coimbra que quer mudar de vida e já se candidatou aos fundos do PDR2020 (que distribuem apoios comunitários a projectos agrícolas) para avançar com um projecto próprio. Ou até do Funchal, como Gilda Freitas, que aproveitou a casa de um filho a trabalhar no Porto para ficar a sua última semana de férias em Gaia, e passar todos os dias em actividades no Cantinho. “Gosto muito, mas mesmo muito disto. Vivo rodeada de plantas e flores. Quero sempre saber mais”, conta, dizendo que não tem nenhuma horta a sério, mas tem a casa cheia de vasos e vasinhos.
Antes de nos mostrar o caminho até aos canteiros, já Luís Alves nos tinha feito o resumo das tipologias de voluntários que lhe aparecem todas as semanas do ano. Temos os agricultores profissionais em potência, os urbano-depressivos que querem fazer hortas na varanda, e os voluntários da pastilha, que querem uma alternativa aos anti-depressivos”, brinca Luís Alves, com o humor que já todos lhe reconhecem. “Costumo dizer que os agricultores são como os hackers e os terroristas, as classes mais anónimas do planeta. Isto é, toda a gente sabe que existem mas ninguém lhes conhece a cara. Raramente se sabe quem plantou a batata que colocamos na panela, ou as folhas com que fazemos uma tisana. Aqui queremos mudar isso”, afirma.
Nesta manhã de Agosto muito quente, eram quase 50 as pessoas que se espalhavam pelos canteiros para ter esta experiência. Há estreantes e veteranos, homens e mulheres, de todas as idades e proveniências. A colheita desta manhã rendeu à volta de 70 quilos. As perpétuas são espalhadas pelos tabuleiros que as levarão à estufa, onde ficam entre dois a três dias, a uma temperatura de 40 graus. “Cada quilo de perpétuas apanhadas e depois de passar pelo processo de secagem dará 200 gramas para infusão. Devemos ter apanhado uns sete quilos de perpétuas roxas para infusão”, contabiliza Luís Alves.
Para esse final da manhã, o fundador do Cantinho das Aromáticas escolheu outras duas infusões e uma tisana, para servir bem fresquinha a todos os voluntários que lhe encheram a casa essa manhã: Erva-Príncipe, Tomilho Limão e a Especialidade da Casa. Tudo servido com bolachinhas. Em ambiente de festa. Para a semana há mais. E nós também queremos voltar.