Fugas - Vinhos

Paulo Pimenta

Verde, o vinho que ainda é como os gelados

Por Pedro Garcias

Mal o calor aperta, as vendas de vinho verde disparam. Será só porque se trata de um vinho leve e fresco? A principal razão ainda é essa, mas os vinhos que provêm dos campos húmidos do Minho são cada vez melhores e já oferecem outros atractivos capazes de, a prazo, contrariarem o estigma da sazonalidade

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Os vinhos da Casa da Lage e a sublimação de uma casta "mal amada"


O vinho verde é como os gelados: quando chega o Verão, as vendas sobem em flecha. Ao sufoco do calor, até os enófilos mais exigentes se deixam seduzir por um vinho que é leve, aromático, seco e ácido.

Há cada vez mais enólogos a tentarem produzir no Minho vinhos um pouco mais maduros e menos acerbos, a prescindirem do gás carbónico que cria aquele efeito "agulha" tão peculiar, no fundo, a desconstruírem a imagem de que o vinho verde se chama assim porque é mesmo verdasco, feito com uvas que não amadurecem. Alguns colocaram-se mesmo à margem das regras da região, fugindo da denominação vinho verde e fixando preços mais altos para os seus vinhos brancos. Vários produtores têm sido bem sucedidos nesta estratégia de diferenciação. Mas o que vende, o que é representativo no bolo geral da região, continua a ser o vinho verde típico, um vinho pouco alcoólico, seco, inebriante de aroma e com uma boa acidez. E, já agora, barato.

O que para alguns é uma adversidade, o próprio nome do vinho, para a maioria é, nos dias de hoje, o seu melhor trunfo. A marca está estabelecida nacional e internacionalmente e o tipo de vinho que ela representa encaixa-se como uma luva nas tendências de consumo actuais, que privilegiam vinhos leves, frescos e aromáticos. Não há outro vinho em Portugal com tanto potencial para conquistar novos consumidores como o vinho verde.

Mas há um reverso nesta história cor-de-rosa: o vinho verde vende bem porque é barato. Esta realidade está de tal modo enraizada nos mercados que há pouca margem para fazer subir os preços. E há um outro problema, também comum aos gelados: o vinho verde é um vinho sazonal. Há quem o beba durante todo o ano, mas, pelo menos no mercado nacional, o grosso das suas vendas concentra-se no Verão.

Seja como for, o que vale a pena destacar é o lado colorido da história e esse representa uma boa notícia para o consumidor: o vinho verde, mesmo o mais comum, está cada vez melhor. Claro que não é possível esperar milagres de vinhos que chegam a custar menos de dois euros a garrafa. Mas mesmos os mais baratos já são bem feitos, tirando partido dos novos avanços enológicos e da modernização da viticultura. Há cada vez mais produtores a vinificar as suas próprias uvas, fugindo à prática habitual da região, em que o grosso da produção era canalizado de forma quase caótica, sem diferenciação de castas, para meio de dúzia de grandes operadores.

Nos últimos anos, a região tem caminhado na direcção dos vinhos varietais, inspirada e impulsionada pelo sucesso do Alvarinho. Hoje, além dos Alvarinho, já encontramos nas garrafeiras vinhos de Arinto (Pedernã), Trajadura, Espadeiro, Avesso e Loureiro, sobretudo destas duas últimas castas, as mais promissoras a seguir ao Alvarinho. A mudança é tal que até já há vários produtores a engarrafar Vinhão extreme, a casta que está na base do tradicional vinho tinto minhoto, um produto étnico difícil de exportar para outras latitudes. Um deles, um Vinhão de 2007 engarrafado com a marca Afros, da Quinta do Paço Padreiro, foi mesmo eleito como um dos 50 melhores portugueses provados em 2008 pelo crítico inglês Jamie Goode. Nessa lista, sete dos vinhos escolhidos eram provenientes da região dos Vinhos Verdes, algo impensável há menos de uma década.

O Alvarinho é a casta bandeira e o motor desta nova vida da viticultura minhota. Forma com o Encruzado do Dão e o Rabigato do Douro a tríade das grandes castas brancas portuguesas. É das poucas que consegue ter expressão e reconhecimento internacional. Mas o Alvarinho já não brilha sozinho no palco fresco do Minho. Nos últimos anos, o fenómeno mais interessante da região tem sido o renascimento do Loureiro, a variedade que impera no vale do Lima, "o rio do Esquecimento" dos romanos e cuja maldição (quem atravessasse o rio perdia a memória para sempre) parece ter afectado também durante demasiado tempo aquela casta. Alguns dos mais interessantes vinhos verdes da actualidade são feitos de Loureiro, a maioria dos quais ligados a Anselmo Mendes (Quinta do Ameal e Royal Palmeira como enólogo, Muros Antigos como produtor).

É incontornável: quando falámos em vinho verde somos obrigados a falar em Anselmo Mendes, eleito produtor do ano de 2010 pela Revista de Vinhos. Como enólogo ou como consultor, Anselmo é, a par de António Cerdeira, da Quinta do Soalheiro, um dos principais rostos da mudança do panorama vitícola do Minho. Não tanto pelas quantidades que produzem, mas mais pela inovação, criatividade e consistência que têm revelado.

Claro que não são os únicos. Há muitos mais. Mas são os mais mediáticos e aqueles que definem tendências e caminhos novos para a região e a colocam sob os holofotes dos críticos, nacionais e internacionais. Obviamente que não se podem esquecer os grandes players da região, como a adega de Monção, responsável por um dos vinhos mais icónicos de Portugal, o Muralhas, a Sogrape e, acima de tudo, a Aveleda. Se há empresa que faz bem a síntese do estado da arte nos Vinhos Verdes, é precisamente a Aveleda. Produz alguns dos vinhos de volume mais conhecidos da região, como o Aveleda, o Casal Garcia e, mais recentemente, o Ava, mas não se deixou confinar a esse segmento e, nos últimos anos, tem vindo a produzir vinhos de um nível muito mais elevado, em especial através da gama Follies.

Gilvaz, Casa da Lage
A sublimação do Avesso

Casa da Lage, Santa Leocádia, Baião. O rio Douro corre ao fundo e a serra de Montemuro seria bem visível se não estivesse escondida por nuvens, mas estas referências geográficas são enganadoras: o vinho destas paragens não é tão voluptuoso como o das encostas durienses, nem tão elegante como os das terras altas da Beira. É o mesmo verde que se produz nos campos húmidos do Alto Minho ou do vale do Lima, embora com algumas nuances. A região demarcada, os Vinhos verdes, é a mesma, os sistemas de condução também, mas os vinhos conseguem amadurecer um pouco melhor sem perderem a acidez típica das variedades minhotas. É o reino do Avesso, uma das grandes castas dos Vinhos Verdes, juntamente com o Alvarinho e o Loureiro. É tão extraordinária, envelhecendo ainda melhor do que o Alvarinho, que dificilmente se compreende a sua quase insignificância regional e nacional. Muito delicada de aroma, entra mal no consumidor comum, devido ao seu carácter vegetal e acidez pungente. Mas ainda vai dar muito que falar.

João Cabral de Almeida, o enólogo da casa, leva-nos logo à vinha, para percebermos melhor os vinhos que iremos provar. Se fôssemos à espera de vinhas tratadas como jardins formais, sem ervas daninhas e com um rigor quase geométrico, ficaríamos desiludidos. O que se vê é o que se devia ver em todas as propriedades: vinhas bem tratadas mas sem radicalismos. Há erva no meios dos bardos e nos caminhos, renques de árvores a rodear as parcelas, um pequeno ovil onde descansam as ovelhas que, em certas alturas do ano, pastam nas vinhas, controlando naturalmente as infestantes e adubando as terras. "Isto está cheio de vida", diz, com entusiasmo, João Cabral de Almeida, adepto fervoroso da Viticultura Metaética, uma corrente que olha para as vinhas de forma sustentável mas menos rígida do que a agricultura biológica, centrando a sua preocupação no lado humano e também em todos os animais sencientes (que tem sensações), como as abelhas ou os pássaros. "É uma viticultura mais reflectida, porque não havendo nenhuma restrição propriamente responsabiliza-nos mais para tomarmos as melhores decisões", defende.

A Casa da Lage estende-se por nove hectares, formando, nesta altura do ano, um tapete verde e viçoso onde se destaca uma pequena parcela, armada ainda sob o arcaico sistema de cruzetas. Foi plantada pela actual proprietária, Leonor Ameal, hoje com 80 anos, seguindo os conselhos de Armando Galhano, o homem que trouxe a região dos Vinhos Verdes para a era moderna e que já a havia ajudado a construir a adega. "Tinha 19 anos quando tomei conta da propriedade. Na altura, só havia vinhas em bordadura", recorda Leonor Ameal, que, na verdade, se chama Leonor Maria Benedita de Castro Sottomayor de Azevedo Aires de Campos. Filha de João Francisco de Barbosa Azevedo de Sande Aires de Campos, 2º Visconde e 3º Conde do Ameal, que adoptou, como escritor, historiador e jornalista, o nome literário de João Ameal, herdou dele o título de viscondessa. Solteira e tradutora de formação, tem dedicado a vida à causa do voluntariado, inspirada na doutrina social da Igreja. Colabora com várias associações e, todos os anos, no Verão, enche a sua casa de Santa Leocádia com mães solteiras. "É uma santa", diz João Cabral de Almeida, englobando na apreciação também o privilégio de dispor de toda a liberdade na vinha e na adega.

É, pois, neste ambiente que nasce o vinho Gilvaz, a marca da Casa da Lage. Vale a pena conhecêlo, porque espelha bem o potencial da casta Avesso, conhecida na região como "o mal amado" (é uma casta muito propensa a doenças e que, entre a vinha e a adega, oxida depressa). As melhores uvas vêm da tal parcela de cruzetas e são usadas para o Gilvaz colheita, feito apenas com Avesso, e para o Gilvaz Grande Escolha, que, além de Avesso, leva também uvas de Chardonnay e Arinto.

São dois vinhos belíssimos. O Grande Escolha de 2009 (oito euros) é muito elegante de aroma, combinando notas florais com fruta ácida, tem uma textura refinada e um lastro longo e fresquíssimo. O Gilvaz de 2010 (cinco euros) mostra toda a subtileza do Avesso, a começar pelo seu aroma muito delicado, de flores e frutas brancas. É muito mineral e directo na prova de boca, sem fruta madura a estorvar, e proporciona um "punch" final arrebatador, graças a uma acidez muita viva e crocante. Pelo que custa, é um verdadeiro achado.

Royal Palmeira, Paço de Palmeira
A excelência do Loureiro

Quando falamos na casta Loureiro, pensamos logo no vale do Lima, o seu verdadeiro solar, e em vinhos como o Quinta do Ameal, o Afros ou o Muros Antigos. Não incluímos na equação o concelho de Braga. Mas é nos seus arredores, em Palmeira, mesmo junto ao rio Cávado, que se situa a vinha de onde provém o magnífico Royal Palmeira Loureiro Sur Lies Fines 2009. Trata-se do primeiro grande vinho produzido no Minho por Carlos Dias, o empresário bairradino que, em apenas 15 anos, criou uma manufactura de alta relojoaria com dezenas de calibres próprios, a Roger Dubois, e que ficou milionário quando, em 2008, vendeu a maioria do capital da empresa ao Richemont Group por, dizem, 850 milhões de euros.

Com uma pequena fatia desse dinheiro comprou o Paço de Palmeira ao BCP e a Quinta da Pedra (Monção) à Unicer, já depois de ter adquirido a vinícola Colinas de São Lorenço, em Anadia.

No Minho, como em todas as regiões onde está, Carlos Dias tem a ambição de fazer os melhores vinhos, ou seja, o melhor Alvarinho e o melhor Loureiro. Para isso, reformulou por completo a Quinta da Pedra e contratou Anselmo Mendes (para os vinhos da Bairrada contratou o francês Pascal Chatonnet). O teste do Alvarinho ainda não foi feito, porque o empresário, embora tenha já uma colheita, pretende comercializar o vinho mais tarde do que é habitual na região. Mas quem já o provou garante que é uma coisa séria. Quanto ao Loureiro, foi só chegar e cantar vitória com o Royal Palmeira. A garrafa é sofisticada e o vinho também.

O dinheiro ajuda, mas, só por si, não garante um grande vinho. Então qual é o segredo deste Loureiro? O lugar de onde vêm as uvas não é, à partida, o mais indicado. No entanto, além de ter descoberto no Paço de Palmeira, perdidas na garrafeira da casa, centenas de garrafas de vinho do Porto Wiese & Krohn Reserva Particular 1900 (um vinho extraordinário), Carlos Dias encontrou uma vinha que parecia ter sido plantada à medida dos seus sonhos de fazer sempre "o melhor do mundo", a expressão que mais usa para as suas criações. A proximidade do rio Cávado, que passa mesmo rente às vinhas, pode trazer riscos para a sanidade das uvas mas também proporciona maturações mais frescas; o solo é ligeiro e algo pedregoso; e as videiras, já com alguma idade, embora não possam ser consideradas velhas, foram bem seleccionadas. "Houve alguma sorte no material que se escolheu para ali", diz, Anselmo Mendes, sem saber a quem atribuir o mérito.

A Aveleda conhecia bem aquela vinha. Antes de o Paço de Palmeira ser comprado por Carlos Dias, as uvas eram vendidas para aquela empresa, que fazia dali o seu melhor vinho de Loureiro. É um tipo de Loureiro que assenta mais no fruto e menos nas notas de louro do típico Loureiro do Lima, mais enjoativo.

Esta é uma parte do segredo que está por trás do Royal Palmeira Loureiro. A outra reside nos cuidados colocados na vindima e na vinificação. Depois de colhidos apenas os melhores cachos, as uvas foram logo arrefecidas, para conservarem todos os aromas, e transportadas em camião frigorífico para a Adega da Pedra, em Monção, onde foram imediatamente transformadas. O método de vinificação foi o normal, com prensagem e decantação a frio. Seguiu-se depois um trabalho de seis meses sobre as borras finas (batonnage), para dar estrutura, sabor e capacidade de envelhecimento ao vinho. Depois do vinho limpo, foi só evitar qualquer tipo de contacto com o oxigénio e engarrafá-lo num ambiente de atmosfera inerte. O resultado foi um vinho requintado, vibrante e cheio de fragrâncias frescas e delicadas. Como já se escreveu aqui noutra ocasião, explode na boca como um grande champanhe, deixando deliciosas e longas sensações de frescura.

O estilo de Carlos Dias pode não ser consensual. Há muitos que não apreciam a sua forma de actuar, baseada no poder económico. Mas os seus vinhos e a sua visão cosmopolita dos negócios prometem introduzir um novo paradigma na maneira de olhar, produzir e promover os vinhos minhotos. Não podemos dizer "vinhos verdes", porque Carlos Dias decidiu certificar o seu Loureiro como vinha de mesa de casta, por divergências com a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes.

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