O culto da não intervenção e da enologia minimalista é uma falácia que assume muitos dos erros de princípio evidenciados no manifesto político adoptado pelo documentário Mondovino, visível nas distinções facilitistas e primitivas entre bons e maus, entre pobres e ricos, entre produtores puros e artesanais versus os produtores industriais e as grandes multinacionais do vinho. Não é difícil perceber de que lado da barricada de comunicação a maioria dos produtores quer estar.
Fazer um vinho é intervir sobre a natureza. Da mesma forma que um escritor traça uma narrativa graças à escolha das palavras, um enólogo constrói os seus vinhos graças à escolha das muitas decisões que teve de tomar ao longo do processo.
Não foi certamente por acaso que os franceses escolheram as palavras elevage e affinage para definir de forma explícita as principais funções de enologia, aproveitando dois conceitos que explicam de forma eloquente as tarefas de produtores, enólogos e adegueiros.
Educar e apurar os vinhos são tarefas que a natureza, por mais benévola que seja, não consegue providenciar. Ao longo da feitura de um vinho há infinitas decisões a tomar, mesmo numa enologia assumida como minimalista, a começar pela marcação da data de vindima, a primeira e mais decisiva das intervenções impostas pelo enólogo. Depois seguem-se um rol de decisões e intervenções imprescindíveis para o desempenho do vinho. É que nem mesmo os apologistas do não intervencionismo desejarão deixar de fermentar a temperaturas controladas, de maneira a conseguir governar de forma mais apurada a extracção de cor e taninos nos vinhos tintos, ou a expressão da fruta ou de outros predicados nos vinhos brancos.
São apenas duas das muitas intervenções necessárias nas adegas. Um enólogo é um decisor, não um espectador do processo. Intervenções como permitir ou suprimir macerações com as peles das uvas, desengaçar ou manter o engaço da uva, autorizar ou impedir a fermentação maloláctica, determinar o tempo de estágio, são algumas das muitas deliberações que um enólogo tem de efectuar ao longo da vida de um vinho.
E o que dizer quando os não intervencionistas envelhecem o vinho em madeira, velha ou nova, francesa ou americana... mas sempre exógena ao vinho? Deverá o vinho transformar-se então numa manipulação artificial e industrial da uva? Claro que não, e quanto menor for a manipulação necessária da fruta, melhor. Mas tal como poucos acreditarão no conceito de não intervenção na educação de um filho, deixando-o à solta e entregue a si próprio, sem regras nem valores, por mais liberal ou rigorosa que a educação pretenda ser, poucos acreditarão que o vinho se fará sozinho, sem o condicionamento do homem. O vinho é um processo de criação intrinsecamente interventivo.
A aproximação enológica não interventiva não passará, no seu melhor, de uma aspiração legítima e poética... e, no seu pior, de uma convincente e eficaz ferramenta de comunicação.