Fugas - Vinhos

  • Tiago Machado
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  • DR Rótulo Viúva Gomes

Colares, a teoria de Darwin aplicada ao vinho

Por Pedro Garcias

Colares produz os vinhos mais caros do país, mas a região é tão pequena e tão difícil que cada garrafa de Malvasia ou de Ramisco ganha foros de raridade. As poucas que se produzem podem durar décadas. É a lei dos mais fortes.

Colares foi uma das regiões vitivinícolas que mais cresceram em Portugal nos últimos anos. A área de vinha passou de mais ou menos oito hectares para 12 a 15 hectares! Não é uma brincadeira. Existir ainda vinha em Colares é, por si só, algo admirável, porque estamos a falar de um lugar sujeito a enorme especulação imobiliária e onde fazer viticultura é tarefa de titãs.

Resistir à fúria dos ventos marítimos e ao poder corrosivo das partículas de sal e extrair vinho da areia é uma heróica teimosia que perdura desde a chegada dos árabes a Sintra. Heróica porque, além de terem de lutar contra os elementos, os viticultores têm que suportar elevados custos de plantação e manutenção para obterem produções inferiores a duas toneladas por hectare. O primeiro grande desafio começa com a plantação. Esta exige que, numa primeira fase, seja retirada a areia até ser encontrado, a vários metros de profundidade, o solo argiloso, onde as varas são “unhadas” (entaladas na argila para enraizarem). As videiras crescem horizontalmente, coladas ao chão, num rendilhado de madeira, e são protegidas da influência marítima através de paliçadas de cana seca e muros de pedra solta. É muito trabalho para tão pouco vinho.

A zona demarcada de Colares compreende a praia da Adraga, parte de Almoçageme e Colares, Mucifal, Banzão, Rodizio, Azenhas do Mar, Fontanelas, Magoito, Casal de Pianos e praia da Samarra. Toda esta área foi um dia tomada pelo mar e com o recuo das águas marítimas sobraram terrenos cobertos de areia. Os vinhos de Colares, provavelmente sucedâneos dos vinhos da Azóia (Cabo da Roca), famosos em toda a Europa na Idade Média, devem a sua notoriedade e existência à casta tinta Ramisco, que terá sido introduzida na região no século XIII por ordem do rei D. Afonso III, talvez trazida de França.

É uma casta que origina vinhos de baixo teor alcoólico, com alguma complexidade aromática e bastantes taninos, cuja adstringência se vai esbatendo com o estágio em madeira e em garrafa. Para diminuir a sua agressividade, o regulamento da Região Demarcada de Colares permite a incorporação de 20% de outras castas da zona, de preferência Molar e João Santarém. Nos vinhos brancos, a casta principal é a Malvasia de Colares.

Cresceu graças à filoxera

O apogeu desta região começou a desenhar-se com a chegada a Portugal da filoxera, o insecto que, ao atacar a raízes das videiras, dizimou grande parte dos vinhedos do país. Antes mesmo de a praga ter sido controlada com a importação de porta-enxertos americanos, imunes ao insecto, verificou-se que as castas instaladas em chão de areia resistiam à filoxera, o que levou ao incremento da viticultura em Colares.

No início do século passado, quando o rei D. Manuel II concedeu a Colares o estatuto de região demarcada (1908), a área plantada de Ramisco rondava os dois mil hectares. Hoje, só restam os tais 12 a 15 hectares (os valores variam consoante se conte ou não toda a área afecta à vinha, como os muros de pedra). A produção anual é pouco superior aos 20 mil litros e está concentrada em quatro produtores: Adegas Beira Mar, Adega Regional de Colares, Adega Viúva Gomes e Fundação Oriente. O engarrafador oficial é a Adega Regional de Colares, que fornece a maioria do vinho.

É tudo feito numa escala liliputiana, mas basta provar os vinhos para percebermos a grandeza e singularidade de Colares. É um caso único no universo vitivinícola nacional. Os vinhos de Colares – que Eça de Queirós considerava “os mais franceses” do reino – são raros e inconfundíveis. Aos brancos, salgados e de acidez viva, não há enófilo que fique indiferente. Os melhores são mesmo extraordinários.

Aos tintos, menos consensuais, é necessário dar-lhes tempo e ter gosto por vinhos pouco alcoólicos, frescos e bastante tânicos, sobretudo em novos. Provar um Ramisco com quatro ou cinco anos é capaz de causar algum desconforto, mas beber um Ramisco bem apurado pelo tempo, com algumas décadas, pode ser uma experiência exaltante e inesquecível. O Viúva Gomes 1934, por exemplo. No nariz, já não mostra muito: alguma especiaria, uma ou outra nota mais química. Porém, na boca ainda revela garra tânica, frescura e subtilezas que só o cinzel do tempo pode criar. Não há muitos vinhos tintos tranquilos no mundo que consigam aguentar-se assim, vivos e inteiros, durante tantos anos. Colares resiste porque os seus vinhos resistem. É a teoria de Darwin aplicado ao vinho.

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