Muxagata, aldeia situada na última fronteira do Douro Vinhateiro, campos ressequidos onde só verdejam oliveiras e vinhas, o deserto habitado. Estão mais de 40 graus, não há sombras. “O calor é psicológico”, tenta convencer-se Danilo, antigo gasolineiro convertido em trabalhador agrícola.
Entre homens e mulheres, anda um grupo de 12 pessoas a vindimar. Um é menor, filho do empreiteiro agrícola. “Tem que saber o que custa a vida”, justifica. Na hora de apanhar as uvas, desafia-se tudo: o tempo, o cansaço, a lei.
Quando era menor, também ia à vindima. Um dia fui vindimar para o Armindo “Rico”. Na rua onde morava, em Alijó, havia outro Armindo, o “Pobre”. Na verdade, não era pobre, era é menos rico, e melhor pessoa, do que o outro. Recordo bem essa jornada: mais de oito horas a cortar uvas e a despejar baldes por meia dúzia de escudos e uma sopa e meia sardinha assada com pão.
Toda a gente trabalhava, desde que tivesse corpo. O dinheiro escasseava e a vindima era uma festa: cantava-se, namoriscava-se e falava-se mal de toda a gente. O trabalho da vinha sempre foi povoado de “pegas de Sintra”, como diria Almeida Garret.
A nostalgia, o romantismo e a miséria sempre suavizaram a dureza da vindima. A moça trigueira e risonha que surgia nas fotos como emblema das vindimas no Estado Novo fazia parte da propaganda do regime. Nesse tempo, era 10 a 12 horas a cortar uvas, os homens mais fortes a acarretar cestos com mais de cinquenta quilos, alguns a subir socalcos, e à noite mais quatro horas a pisar, embalados a versos e a copos de aguardente. Hoje já há tractores e inspecção do trabalho. Mas cortar uvas, sempre em genuflexão com as videiras, continua a ser um trabalho violento. Violento e, no entanto, mágico. É o fim do ciclo, a recolha do fruto semeado, a ideia de folia – cada vez mais, quase só uma ideia. Já pouco se canta e brinca.
Silêncio. Do telemóvel de um trabalhador saem sons de influência roma (cigana) que sugerem latitudes longínquas. É um dos muitos romenos que nos últimos anos têm vindo a suprir a falta de mão-de-obra nos vinhedos durienses. As rogas do Douro já não chegam das terras altas de Trás-os-Montes e da Beira. Vêm da Roménia, da Bulgária, da Moldávia, de Marrocos. Para os próximos dias, o empreiteiro agrícola anuncia a chegada de um “vagão” de búlgaros. Gente pobre e desprotegida que emula nas vinhas do Douro a epopeia dos primeiros emigrantes portugueses na França e na Suíça.
Os romenos ambientam-se bem. Alguns já comunicam em português, mas ninguém conhece a “Liberdade” e as outras cantigas de vindima. José Miguel também não. Fotógrafo profissional, com passagem pelo PÚBLICO, Visão e O Primeiro de Janeiro, antecipou a crise dos media formando-se em Agronomia. No ano passado, trocou o Porto por Vila Nova de Foz Côa. Hoje é o “senhor engenheiro”. Anda feliz e derreado. “Água, água”, clama ofegante com os rebordos da boca brancos.
As três da tarde, quando acaba a jornada, aproximam-se e o sol escalda mais do que nunca. O dia começou às 6h30 da manhã, com uma pausa de 30 minutos para comer a merenda trazida de casa. São os trabalhadores que definem o horário e as pausas. Começar cedo para chegar cedo a casa e fugir ao calor do meio da tarde, que pesa mais.