Fugas - Vinhos

  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido

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Um dia de vindimas no Douro

Os mais novos parecem os mais cansados. Sempre foi assim. Um rapazola vindima sentado. Entre dois cachos, pára para limpar o pó das mãos com a tesoura. “Não tens vergonha?”, indigna-se António, o encarregado na vinha.

Vindimar é um trabalho duro e mal pago. Ainda assim, não tão mal pago como no Chile, por exemplo, onde os trabalhadores ganham ao quilo. Se vindimassem o que se vindima em média no Douro, não ganhavam mais de dez euros por dia. Vindimando muito ou pouco, no Douro as mulheres ganham 35 euros e os homens 40, na maioria dos casos. Para o mesmo trabalho, salário diferente. É a lei do campo, apesar de quase sempre as mulheres trabalharem mais e melhor. O empreiteiro do “vagão” de búlgaros quis acabar com a injustiça: 38 euros para homens e mulheres. Mas a convergência é apenas formal, para acalmar o proprietário das vinhas. Na hora de fazer contas, alguns homens vão receber mais. Não é fácil mudar o mundo.

Os búlgaros chegam mesmo dois dias depois, arregimentados e geridos por uma compatriota que tem trabalhado com empreiteiros agrícolas de Foz Côa. Vieram de carrinha, milhares de quilómetros em direcção ao desconhecido. O grupo é divididos por várias vinhas. Três juntam-se a nós. Um mudo de verdade e dois que não sabem uma única palavra de português. Chegam de chinelos e sem tesoura para vindimar. “São bons”, garante o encarregado ao fim de umas horas de trabalho.

Ao fim do dia, um dos romenos conta que os búlgaros não tinham almoçado. Indignação geral. Na vindima, são todos iguais. O empreiteiro passa as culpas para a colega búlgara, a quem fizera um adiantamento para as primeiras necessidades. No dia seguinte, dois dos búlgaros já levam alguma comida, mas um deles continua sem comer. “Teve um cancro e só bebe café”, explica alguém do grupo. José Miguel vai comprar iogurtes e leite achocolatado, comida líquida que o homem bebe de um gole, deixando escapar uma lágrima. Estava cheio de fome. “Os jornais e as televisões deviam era fazer reportagens sobre isto”. É o fotojornalista a falar.

Está na hora. Há trabalhadores com o alarme ligado no telemóvel para as 15h00. O empreiteiro não paga horas extras. Toda a gente se despede com alívio. José Miguel, o encarregado e o condutor do camião ultimam a carga. Dentro de duas horas, as uvas começam a ser desengaçadas na adega da Casa Agrícola Águia de Moura, em Murça. Outra odisseia. No dia seguinte, volta a haver vindima.

No Douro, será assim até final de Outubro. Quando o vinho chegar ao copo do consumidor, vai mostrar mais ou menos fruta, mais ou menos taninos, mais ou menos acidez. Os mais esclarecidos são capazes de lhe detectarem complexidade, carácter, alma. Mas ninguém vislumbrará no copo a alegria, as dificuldades, o suor e a miséria que estão por trás de cada gota.

Este ano, a colheita no Douro Superior, onde chega a chover menos do que no deserto, promete ser extraordinária. Menos uvas mas muito boas. Dentro de algumas semanas, é preciso começar tudo de novo.

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