Fugas - Vinhos

A tradição alentejana

Por Rui Falcão

Os eternos mensageiros da desgraça insistem na afirmação que os vinhos do Alentejo não sabem envelhecer por natureza com dignidade, nem o conseguem, continuando a insinuar os mesmos estereótipos de sempre.

Os vinhos alentejanos são vinhos de consumo rápido e sem grande complexidade, vinhos suaves, macios e eloquentes na expressão da fruta, vinhos de ciclo curto, sem capacidade de guarda e sem qualquer sinal de longevidade digna de ser assinalada

Apesar de serem afirmações que não passam de mitos ou lendas, são infelizmente cismas que perduram na memória de muitos consumidores, incluindo enófilos mais esclarecidos e líderes de opinião, frases feitas sem qualquer base prática ou verídica que permitisse sustentar tal estranha tese. Declarações ainda mais misteriosas quando as evidências materiais demonstram o equívoco da teoria, quando a prática indica precisamente o contrário da alegação, quando se descobrem os vinhos velhos do Alentejo.

Quando se tem oportunidade de provar os raros vinhos velhos que conseguiram escapar ao famigerado ciclo da campanha cerealífera do Estado Novo… e mais tarde à insensatez do período pós revolucionário de Abril de 1974, as dúvidas desvanecem-se. Os fantasmas da alegada insuficiência alentejana têm de ser exorcizados para longe, afastando de uma vez as eternas descrenças e desconfianças que recaem sobre o potencial de uma região que representa quase metade dos vinhos consumidos em Portugal.

Apesar de os produtores históricos serem relativamente raros, tal como de resto em todo o território nacional, existem algumas casas alentejanas que se podem orgulhar de um passado histórico e faustoso. Entre eles conta-se o produtor José de Sousa, uma das casas mais antigas do Alentejo, produtor que produz e engarrafa vinho de forma ininterrupta há pouco mais de um século.

Num país onde as marcas duram tão pouco tempo, quantos produtores nacionais se podem vangloriar de produzir vinho sem pausas ou quebras temporárias desde 1878? Quantos produtores nacionais se podem orgulhar de manter um registo sereno e consistente ao longo de um pouco mais de 136 anos num dos exemplos mais reluzentes da forte tradição vinícola alentejana? José de Sousa é um produtor clássico, um dos mais clássicos do Alentejo e de Portugal, uma casa assente na região de Reguengos. Como pilar de tradição, a casa continuou devota durante muitas décadas da cultura romana milenar do vinho em talhas, nos potes de barro, como carinhosamente apelidam as talhas na José de Sousa, hoje pertença da José Maria da Fonseca, dando corpo a vinhos ímpares no carácter, vinhos de identidade e personalidade forte, únicos e originais, marcados por uma forte raiz regional.

A casa original, ainda sob o nome Casa Agrícola José de Sousa Rosado Fernandes, nasceu em 1878 pelas mãos de José de Sousa Rosado Fernandes. Em 1986, fruto de variadas vicissitudes familiares que condicionaram o futuro da propriedade da Herdade do Monte da Ribeira e obrigaram à sua colocação no mercado, a setubalense e igualmente casa centenária José Maria da Fonseca decidiu investir em terras alentejanas comprando o espólio, propriedade e marca.

Os vinhos sempre tinham vivido num estranho mundo de contradições, divididos entre um classicismo exacerbado e um progressismo simultâneo. Se por um lado o vinho sempre tinha sido fermentado e estagiado em talhas, da forma mais simples e tradicional possível, as uvas eram arrancadas a uma vinha já aramada ainda no início da década de cinquenta do século passado, décadas antes de essa prática que hoje todos usam se ter disseminado em Portugal. Quando a José Maria da Fonseca comprou a José de Sousa, na década de oitenta, estreitou a tradição de fermentar os vinhos em talha, passando a limitar progressivamente a prática a pouco mais de metade do volume produzido. Curiosamente, e depois de a vinificação em talha ter sido quase descontinuada num passado próximo, os vinhos voltaram a ser fermentados nas talhas, tal como sempre foi tradição da região. Em alguns dos lotes mais simples, os vinhos de talha constituem uma minoria, um pouco de tempero para apaladar o lote e acrescentar algum mistério e complexidade.

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