Quem vai de Vila Real pela Cumieira é confrontado a dada altura com a visão ao fundo de um edifício negro plantado em forma rectangular mesmo junto à estrada. A geometria rectilínea da nova adega da Quinta da Gaivosa, a sua cor e a enorme pala pendurada ao centro possuem uma força extraordinária no contexto do vale, cujo elemento físico dominante é a silhueta do Marão — o rio Douro corre uns montes abaixo, mas perscruta-se nas águas do afluente que corre a pouca distância.
O impacto da construção é sublimado ainda mais pelos tons amarelados das “velhas” estruturas da propriedade, num enorme contraste de cores que se insere na mesma linha da opção antagónica seguida, por exemplo, na nova adega da Quinta do Vallado. No caso da nova adega da família Alves de Sousa, a opção pelo preto proposta pelo arquitecto António Belém Lima pretende emular o mesmo mistério que se esconde por trás de cada garrafa de vinho. Quando transpomos as portas do edifício somos surpreendidos com uma alvura imaculada e um infindável caleidoscópio de panorâmicas do espaço envolvente.
No interior, o desenho segue à risca o percurso do vinho, começando com a recepção das uvas mesmo junto às vinhas e a escombro de xisto, continuando com a vinificação e o estágio no piso anterior. Na hora de ser engarrafado, o vinho sobe de novo ao piso superior, e a sua glorificação é deixada para o deck instalado no topo do edifício com uma visão panorâmica de 360 graus. Da terra ao céu num abrir e fechar de olhos.
Com a nova adega — cujo projecto esteve na corrida ao prémio de arquitectura contemporânea Mies van der Rohe —, os vinhos Alves de Sousa passam a dispor de um espaço moderno e funcional, com capacidade para vinificar e estagiar cerca de 600 mil garrafas. A anterior adega já era demasiado exígua para os cerca de 130 hectares de vinho que o produtor duriense detém no conjunto das suas várias quintas e estava longe de corresponder à imagem de excelência que os vinhos possuem em Portugal e nos mercados externos.
A modernização do processo produtivo não colide, no entanto, com as opções tradicionais seguidas em muitas parcelas vizinhas da nova adega. Alguns dos melhores vinhos da família Alves de Sousa continuam a ter origem em vinhas muito velhas. Uma delas, situada no topo da Quinta da Gaivosa, possui uma decrepitude que contrasta de forma flagrante com a “juventude” e a modernidade da nova adega. Mas os vinhos que saem daquelas cepas quase moribundas estão na linha da frente dos grandes tintos do Douro.
Esta parcela de três hectares esteve para ser arrancada e reestruturada em 2004. Muitas das cepas tinham mais de 100 anos e o número de falhas era enorme. Nesse ano, antes de arrancar a vinha, Domingos Alves de Sousa fez um vinho, que ficaria como testemunho das diversas gerações ligadas ao seu cultivo e granjeio. Como a vinha estava mais ou menos abandonada, o vinho ganhou o nome de Abandonado. O vinho irrompeu como um meteorito na cena vínica nacional, conquistou inúmeros prémios em Portugal e no estrangeiro e a ideia de arrancar a vinha desapareceu. A vinha continua meio abandonada, com cada vez mais falhas, mas já não é vista como um fardo. Embora não permita produzir mais do que quatro mil garrafas, assumiu o estatuto de jóia, de museu vivo.
O Abandonado é o vinho mais exclusivo dos Alves de Sousa e só se produz nos melhores anos. Além do primeiro, de 2004, voltou a ser produzido em 2005, 2007, 2009 e 2011. Uma prova recente de todos eles deixou, desde logo, uma certeza: o vinho está para durar. A ideia de que os vinhos, por serem bastante maduros (entre os 14 e os 15% de álcool), iriam envelhecer mal, não se confirma. Além da sua robustez tânica, os vinhos possuem uma magnífica frescura balsâmica, muito influenciada pela altitude e pela proximidade do Marão. Mesmo os mais antigos ainda dispõem de mais uma ou duas décadas de vida, no mínimo. Nesta fase, os que mais se destacam são o 2004, o 2007 e o 2011. O 2005 está muito expressivo e mais fácil de beber e de entender. O 2009 ainda precisa de integrar melhor a madeira. Para beber já, o melhor é o 2004 e o 2007. Mas o vinho que talvez tenha nascido mais perfeito e que mais promete é o 2011, um ano antológico no Douro.
Demonstra um afinamento tânico notável e, apesar dos 15% de álcool, possui uma enorme frescura, do tipo balsâmico, que contrasta com as notas mais quentes que sobressaem no aroma (fruta preta, café, alcatrão) e na prova de boca. Profundo e denso, surpreende pela forma harmoniosa como integra todos os elementos, num prodigioso jogo de nuances sensoriais (madureza/frescura, músculo/elegância) que é a imagem de marca dos grandes tintos do Douro (85 euros PVP).