Fugas - Vinhos

Os monges criaram uma cerveja com corpo e alma

Por Alexandra Prado Coelho

Nasceu numa abadia criada por seis cavaleiros que decidiram trocar as espadas pelos hábitos. Estávamos em 1074. Passaram-se os séculos, a abadia foi várias vezes destruída, os monges obrigados a fugir. A Affligem – que hoje pertence à Heineken – resistiu a tudo e renasceu sempre. Sem perder a alma.

Está uma manhã agradável e é com um sol de Inverno já generoso que esperamos alguns momentos em frente à abadia de Affligem, perto de Bruxelas. A porta entreabre-se e um monge com uma túnica preta e o capuz caído sobre as costas curvadas espreita com um ar curioso. Viemos pela história da cerveja de Affligem, temos visita marcada. O monge acena que sim e abre a porta para nos deixar entrar.

Os dez monges beneditinos que ainda aqui vivem estão habituados a estas visitas — a Affligem, comprada pela gigante Heineken, está a começar a espalhar-se pelo mundo e, afinal, a sua história está profundamente ligada a este lugar, por isso faz sentido que se recebam os visitantes ansiosos por conhecer mais sobre uma das cervejas de abadia belgas (as visitas guiadas custam três euros, metade vai para a abadia, a outra para a população local). Convém, desde já, explicar que as cervejas de abadia podem ser produzidas numa fábrica no exterior (é o caso da Affligem), enquanto as cervejas trapistas são ainda produzidas dentro dos muros da abadia (e só existem seis na Bélgica).

O monge pede-nos para esperar um momento no hall de entrada e desaparece por um corredor, no qual aparece, pouco tempo depois, Ben Vermoesen, profundo conhecedor da história da abadia e que será o nosso guia.

Quem esperava um edifício do século XI, altura da fundação da abadia, tem que se preparar para uma construção moderna, já da segunda metade do século XX. É que muita coisa aconteceu por aqui desde esse mítico ano de 1074, quando seis cavaleiros, consta que arrependidos da violência das suas vidas, decidiram trocar as espadas pelas túnicas de monges — a história de Affligem é uma história de destruição, persistência e sobrevivência. E, quem sabe, talvez a cerveja tenha ajudado.

Julga-se que a produção de cerveja terá começado logo após a instalação dos primeiros monges que, de acordo com a regra beneditina, tinham que trabalhar para garantir o seu sustento. Era-lhes permitido beber vinho, mas não em grandes quantidades e, de qualquer forma, a produção de cerveja já era tradicional naquela região, onde se encontra lúpulo de grande qualidade. Segundo Ben, vinham até comerciantes de Inglaterra e dos Bálticos para comprar lúpulo em Affligem.

A vida atribulada da abadia começou cedo. Logo em 1129 todo o edifício foi destruído por um incêndio. Séculos mais tarde, em 1580, os protestantes destruíram novamente a abadia e expulsaram os monges, que acabariam por voltar em 1605, depois de 25 anos de exílio. Ben mostra, divertido, uma gravura da abadia em 1658 — quem a observar com atenção repara em cinco pequenas figuras de monges num campo a jogar o que parece exactamente ser… futebol.

Por entre a produção de cerveja e os jogos de futebol, a abadia continua a sua existência agitada. Em 1796, na sequência da Revolução Francesa, as tropas francesas voltam a expulsar os monges, que, escondidos, celebram missas em segredo, enquanto a abadia é vendida e parcialmente destruída. Em meados do século XIX, quatro monges sobreviventes pensam que, se querem salvar o espírito de Affligem, têm que reagir sem demoras. Reunem outros e, em 1870, dez monges regressam e reconstroem a abadia mais uma vez. E, mais uma vez, recomeça a produção de cerveja.

Mas vem a ocupação alemã. Da primeira vez, na I Guerra, os alemães roubam o material para produzir cerveja e também o queijo que aqui se fazia. E da segunda vez, já nos anos 1940, põem definitivamente fim à produção de cerveja dentro dos muros da abadia. Apesar disso, os monges nunca perderam a receita — a chamada Formula Antica Renovata — e nos anos 50 começam a negociar com uma cervejeira próxima para a passar. É essa cervejeira, agora também propriedade de Heineken, que produz actualmente a Affligem, de acordo com a receita original (e com a bênção) dos monges.

E assim renasceram as três cervejas clássicas da abadia: a Blonde, a Double e a Triple. A Blonde é a única que está à venda em Portugal, onde foi lançada em Abril de 2014 na barbearia O Purista, em Lisboa, antigo alfarrabista que foi inicialmente um espaço pop-up para a Affligem e acabou por se transformar mesmo num bar. Hoje a cerveja já está em cerca de 70 espaços “embaixadores” em Portugal, grande parte dos quais restaurantes, porque a ideia é mostrar o potencial gastronómico da Affligem.

Blonde, Double, Triple

O sommelier Matthias Lataille vai, durante um jantar no restaurante La Quincallerie, em Bruxelas, explicar-nos as diferenças e mostrar-nos o ritual que rodeia o consumo da Affligem. Para isso precisamos de dois copos, um maior, para “o corpo”, e outro mais pequeno, para “a alma”. Começamos por deitar a cerveja no copo maior, o que, com a inclinação e à velocidade certas, deverá resultar num copo com uma espuma perfeita de cerca de dois dedos. Na garrafa terá ficado nessa altura cerca de 10% da cerveja. Devemos então rodar a garrafa, mas sem a agitar excessivamente, para “libertar a alma”, e deitá-la no copo mais pequeno.

Há uma explicação para isto, claro. É que a Affligem é uma cerveja de dupla fermentação — há uma primeira fermentação no processo normal e a segunda acontece já dentro da garrafa durante 14 dias (só é posta à venda dois meses depois de terminado este processo). No fundo da garrafa fica, por isso, um pouco da levedura adicionada para a segunda fermentação e é ela que dá a “alma” à cerveja, que no copo pequeno se revela mais baça e turva, com um gosto distinto e intenso.

Embora não esteja ainda à venda em Portugal, vale a pena contar também a história da Triple. Enquanto a Blonde e a Double têm 6,8 graus, a Triple sobe para os 9 graus. Com mais malte e mais lúpulo, é uma cerveja de maior intensidade. No século XVI entrou em vigor a proibição de os monges beberem esta cerveja mais pesada, mas o então arcebispo-abade Jacobus Boonen percebeu que ainda estavam a ser produzidos alguns barris de Triple e estabeleceu uma norma: os monges podiam beber apenas cerveja escura (a Double) durante o Inverno e clara (a Blonde) no Verão. Apesar disso, a receita da Triple resistiu e chegou até aos nossos dias.

Hoje o ambiente na abadia é muito diferente do que terá sido nesses dias do século XVI, quando um dos irmãos era capaz de partir a sua caneca na mesa do refeitório em protesto contra uma ameaça de restrição no consumo de cerveja. “Actualmente a idade média dos monges é de 83 anos”, conta o nosso guia, Ben. “E há apenas dez monges em Affligem, enquanto em 1934, por exemplo, havia mais de 50. É uma situação dramática.”

Num pequeno quadro de madeira junto a uma porta estão placas com os nomes de cada um e um sistema de marcadores coloridos que indicam se estão ou não no edifício. “Antigamente era preciso, se alguém os procurasse. Hoje já têm telemóveis”, brinca Ben.

Mas não se pense que os monges têm uma vida fácil. Todo o trabalho doméstico da abadia é garantido por eles. Até o da cozinha, explica Ben enquanto nos mostra o refeitório, onde os dez lugares estão já postos na longa mesa. Havia um cozinheiro, um holandês que até tinha trabalhado num restaurante em Veneza, mas durante anos os monges tentaram convencê-lo a ser padre. Ele recusou sempre, até que se convenceu a fazer os estudos. “Falhou e tem vergonha de voltar aqui, por isso eles ficaram sem cozinheiro”, conclui Ben.

Os cozinhados podem correr melhor ou pior, mas há, no entanto, uma coisa que está garantida aqui: a cerveja, que continua a ser produzida na fábrica a pouca distância da abadia. Desde que foi comprada pela Heineken, em 2000, a Affligem já se espalhou por 30 mercados, primeiro os vizinhos, França, Espanha, Itália, Holanda, e agora também os asiáticos.

É na fábrica que termina a nossa visita. Aí é-nos explicado todo o processo de produção e tentamos, confusos, identificar as cinco especiarias que são adicionadas à Double (alcaçuz, anis, sementes de coentros, cominhos, pele de laranja).

Ninguém fala em quantidades, porque num país como a Bélgica, onde se produzem mais de 600 cervejas, o segredo é a alma do negócio. O segredo e uma boa história para contar — mas nesse campo a Affligem não tem que se preocupar, os monges são os melhores parceiros que poderia desejar. São eles, na verdade, que, há muitos séculos, lhe dão o corpo — e a alma.

A Fugas viajou a convite da Heineken

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