No jantar de apresentação do Barca Velha de 1999, o chef Miguel Castro e Silva decidiu virar do avesso as normas estabelecidas sobre a harmonização entre o vinho e a comida e levou à mesa um prato de garoupa. José Silva, crítico de gastronomia e vinhos, lembra-se de uma combinação tão improvável como deliciosa num restaurante da Baixa do Porto onde experimentou uma francesinha com uma malga de vinho verde tinto. Dirk Niepoort, enólogo e chef nas horas vagas com pergaminhos reconhecidos, recorda a experiência de um steak au poivre com um Porto Vintage novo, ao qual a pimenta temperou a doçura e o transformou num tinto que combinou “muito bem” com o prato. Pedro Nunes, o chef do São Gião, guarda na memória um momento em que combinou uma lampreia com um Buçaco branco já com uma dúzia de anos no corpo para produzir uma experiência “extraordinariamente interessante”.
Ninguém põe em causa a razão ou o nexo de causalidade que há entre o vinho e a comida ou, o que é o mesmo, entre a comida e o vinho. O que vale por vezes a pena notar é que a ideia da “harmonização” ou, numa expressão muito mais infeliz, da “maridagem”, se tornou numa atitude conservadora que, na sua expressão mais básica, impõe modas e contra-modas de duvidosa eficácia. Como em qualquer onda temporária, a harmonização produziu os seus teóricos, os seus gurus e arrastou consigo uma vaga de devotos que se limitam a procurar aquilo que sempre esteve em cima da mesa. O vinho é um ingrediente fundamental de uma boa refeição e, como tal, deve ser escolhido em função da sua relação com os outros ingredientes. Se Miguel Castro Silva, Dirk Niepoort ou Pedro Nunes recordam experiências inesperadas com escolhas fora da caixa é porque, como em tudo o que tem a ver com a sensibilidade humana, não há regras universais para harmonizar os gostos.
José Silva nota, por isso, que a harmonização já esteve mais na moda do que hoje. Dirk Niepoort reconhece que “houve muitos exageros”, com “toda a gente a fazer a mesma coisa”, o que redundou numa certa “patetice”. Mas se muitos restaurantes e muitos produtores de vinho parecem hoje estar menos focados nas “harmonizações” transformadas em recursos de marketing, isso não quer dizer que o velho hábito de escolher vinhos ajustados à comida se tenha extinto. Pelo contrário, Pedro Nunes dá conta que o acréscimo de informação que sente haver nos seus clientes tornou mais frequente a pergunta: “E que vinho recomenda para este prato?”.
É aqui que, com ou sem a atmosfera mais erudita, ou filosófica, da harmonização, as coisas se complicam. Dirk Niepoort escolhe muitas vezes o vinho antes de pensar na comida. Pedro Nunes escolhe um vinho para uma comida de modo a que nenhum se sobreponha ao outro. “O despique não funciona, tem de haver uma relação leal”, diz o chef. E esse balanço tanto funciona com a alta cozinha como com pratos mais quotidianos. “Um champanhe não fica só bem com ostras”, diz Pedro Nunes. “Pode combinar muitíssimo bem com sardinha marinada em vinagre de sidra que depois fica a descansar num azeite com cebolinho”, nota. A este propósito, Dirk Niepoort recorda uma experiência fantástica com um moscatel velho da sua empresa combinado com presunto. “Só presunto”, sublinha. Ou seja, tanto há margem para equilíbrios como para a tensão entre o vinho e comida. Desde que, como sublinha o chef do São Gião, um dos elementos da relação não abafe o outro.
Se algum mérito teve a onda da harmonização foi, por isso, o de acabar de vez com ideias feitas, do tipo carne é para o vinho tinto e o peixe para o vinho branco. “Os meus clientes seguem cada vez mais aquilo que gostam, procuram as suas próprias harmonizações”, afirma Pedro Nunes. Embora aí haja fronteiras que nem todos gostam de ultrapassar. Se há uns anos os queijos eram para vinhos tintos, hoje há muita gente a bebê-los com brancos. José Silva, por exemplo, aprecia a relação mas... “Se dissesse isso ao meu avô, ele matava-me.” Dirk Niepoort, inconformista e avesso a padronizações por hábito, torna-se aqui mais conservador. “São modas e contra-modas”, admite, argumentando que queijo é para vinhos tintos. E, em concreto, um queijo Serra? Se há dez, 20 anos era impossível não o experimentar com Porto Vintage, hoje há quem ponha defeitos nessa relação. Dirk contesta. “É uma combinação fantástica”, diz.
Não há, portanto, convenções seguras pela tradição, não é líquido que brancos encorpados não façam melhor figura com alguns pratos de carne do que tintos menos concentrados. O bacalhau é para tintos ou para brancos dependendo da forma como é cozinhado. Até porque as possibilidades de combinação multiplicaram-se com a profusão de estilos de vinhos e a explosão de restaurantes e chefs que se esforçam por fazer comida com assinatura. A ligação de empresas produtoras a grandes cozinheiros — casos da Malhadinha Nova ou da Quinta dos Grous — acelerou. E há alguns que fazem até questão de partilhar com os produtores de vinho gamas especiais e exclusivas, como Vítor Claro, Rui Paula ou Miguel Castro Silva.
Depois, bem, há criações de chefs praticamente impossíveis de se combinarem com vinhos, há pratos que se dão bem com quase todos os estilos e regiões e há vinhos que dificilmente não produzem grande satisfação com qualquer tipo de comida. Dirk Niepoort aponta para o primeiro exemplo as experiências que teve no el Bulli, onde o menu com 26 pratos inferniza qualquer boa intenção sobre a escolha de vinhos. Pedro Nunes considera que um capão assado fica bem com um amplo leque de vinhos — a parte do peito “delicada”, a perna mais “agressiva” e o recheio intenso que recomenda um tinto mais forte ajusta-se a muitas escolhas. Depois, um bairradino clássico e transversal para desmistificar a ideia de que a combinação entre comida e vinho é um bicho-de-sete-cabeças: Pedro Nunes escolheria para essa função um Quinta das Bágeiras de 2001. “Fica bem com muitas coisas”, explica. Quando o vinho é bom e a comida é boa, torna-se tudo mais fácil. Sem ser necessário produzir uma teoria especial para o efeito.