Fugas - Vinhos

De que falamos quando falamos de vinagres?

Por Alexandra Prado Coelho

O de vinho é “o vinagre por excelência”. E se no passado todos os produtores de vinho o faziam, a tradição foi-se perdendo e só lentamente tem vindo a ser recuperada. Entretanto nascem outros produtos. A que saberá o vinagre de sidra com rosas da Madeira?

Não será fácil encontrar consensos sobre muitas coisas, mas neste trabalho sobre vinagres cedo surgiu um surpreendente consenso: o melhor vinagre português é o Moura Alves, diziam muitos dos contactados pela Fugas. 

Filipe Roboredo Madeira, da CARM, por exemplo, mesmo sendo ele próprio produtor, não hesitou perante a pergunta sobre como tem evoluído a produção de vinagre em Portugal: “Cada vez existe mais procura mas falta muito conhecimento. Até vão aparecendo algumas referências diferentes, mas só existe uma marca diferenciadora: Moura Alves.”

Nada melhor, por isso, do que telefonar para o próprio Rui Moura Alves, produtor da Bairrada, e confrontá-lo com este aparente, e inesperado, consenso nacional. Do outro lado da linha, percebe-se algum orgulho nesse estatuto. “Isso é porque é o único feito por métodos naturais”, responde. “Resulta apenas da transformação do álcool do vinho em ácido acético. Existem muitos com a adição de ácido acético, mas para se fazer um vinagre como o meu são necessários pelo menos dez anos.” 

Moura Alves trata o vinagre com o respeito que merece um produto com uma história milenar. Depois da nossa conversa telefónica envia um email com um texto que recorda “o gesto de Cleópatra, a rainha do Egipto, de dissolver em vinagre preciosas pérolas para, de um golo, beber uma fortuna fabulosa” ou a “estulta pretensão de Aníbal, o incrível general cartaginês, de querer abrir fácil passagem às suas tropas através das rochas calcárias dos Alpes, mandando-as regar com vinagre.”

Antes, ao telefone, explicara-nos que são necessárias algumas condições base para fazer um bom vinagre: “O vinho, branco ou tinto, tem que ser são [Moura Alves usa vinhos da Bairrada]; o local onde está guardado, em madeira de carvalho, tem que ter uma oscilação de temperatura, que deve ser elevada no Verão e baixa no Inverno; e o arejamento não pode ser com ar condicionado.”

Depois é preciso esperar os tais 10 anos. O resultado é um vinagre com uma acidez invulgar: 10 graus. Por tudo isto uma garrafa de meio litro de Moura Alves custa 24 euros. Mas ele próprio está a trabalhar, em duas quintas, a Quinta da Pedreira e a Quinta das Bageiras, noutros vinagres feitos com o mesmo método. “Ando há 30 ou 40 anos a estudar uma cultura que estava muito perdida em Portugal”, afirma. “Antigamente todos os produtores de vinho tinham ao fundo da adega uma barrica com vinho a azedar”, mas “os fiscais levam à letra as leis e estraga-se tudo o que é bom”.

O facto é que nos últimos anos surgiram cada vez mais produtores a interessar-se novamente pelo assunto e a querer fazer um vinagre de qualidade. Voltamos a Filipe Roboredo Madeira, da CARM (Casa Agrícola Roboredo Madeira, no Douro Superior): “Procuramos um vinagre frutado de acidez equilibrada e aroma limpo, que possa transmitir o terroir”. Também ele sabe que “para se apurar estas características são precisos anos” – o da CARM, feito a partir de vinho de Touriga Nacional para aproveitar “as características diferenciadoras das castas autóctones”, está a estagiar há 12.
Paulo Laureano, produtor de vinhos do Alentejo, tem uma perspectiva semelhante. Quer que o vinagre que faz “traduza um carácter de identidade e personalidade”, para além, “obviamente, de um carácter de prazer”. Para isso, “é fundamental que a base seja de excelente qualidade, fresco, estruturado, com características que permitam uma transformação correcta e uma excelente maturação”. Entende, contudo, que em Portugal o caminho está a fazer-se lentamente. “O país tem vinagres de enorme qualidade mas falta reconhecimento na produção e no consumo.”

E quando falamos de vinagre, falamos apenas de vinagre de vinho? “O vinagre natural é de vinho”, sublinha Moura Alves. Paulo Laureano concorda: “Penso que o nosso grande potencial está nas bases de origem vínica”. E Filipe Roboredo Madeira também não tem dúvidas: “Para nós, o vinagre por excelência deve ser de vinho.”

Há, no entanto, cada vez mais produtores a apostarem noutros vinagres. No mundo industrial, é o caso da Paladin, mas há também quem se dedique a isso em projectos de pequena escala. “Tudo o que tem açúcar fermenta”, lembra a engenheira agrícola Regina Pereira, que tem vindo a trabalhar na Madeira em vinagres de sidra, num projecto ligado à Quinta Pedagógica dos Prazeres, na Calheta.

Tudo começou quando o padre da Igreja dos Prazeres se viu perante um excesso de maçãs, que não queria desperdiçar. A solução foi fazer sidra. A partir daí, Regina Pereira, que tem estudado o universo dos vinagres e juntou-se a este projecto em 2006, iniciou algumas experiências e hoje têm vinagre de sidra com ervas aromáticas, com rosas e com maracujá (todos eles à venda para já apenas na Madeira).

Para a acetificação do sumo de maçã fermentado, Regina introduz a “mãe do vinagre”, uma película natural gelatinosa, formada por bactérias acéticas, que se forma no vinagre e que ajuda a acelerar o processo. “É uma forma natural, um pouco artesanal, mas em que aproveitamos o que a natureza nos dá”.

O de maracujá, que tem como base a sidra à qual foi adicionada a polpa do maracujá e esteve sete anos em barricas de carvalho francês (tal como o de ervas aromáticas), já ganhou o prémio O Melhor dos Melhores no Concurso Nacional de Vinagre de Vinho e Outros. O de rosas partiu da ideia do aproveitamento destas flores da Quinta Pedagógica, herdeiras das rosas antigas que existiam tradicionalmente nas quintas madeirenses. É vinagre mas sabe (também) a rosas.

Paladin, do figo ao tomate, a vontade de fazer diferente

udo começou com o vinagre de figo. Faz já 34 anos que Carlos Gonçalves, na altura ainda um adolescente, e o pai abriram na Golegã uma fábrica e apostaram em algo invulgar. “O primeiro produto que fizemos foi uma coisa que ninguém fazia no mundo”, diz Carlos Gonçalves. “Mas não foi por queremos ser muito inovadores. Foi só a vontade de não fazer igual aos outros”.

Hoje, mais de três décadas depois, é o mesmo espírito que move a Paladin. A gama de vinagres cresceu muito mas a Paladin faz muitas outras coisas na área dos molhos – e, orgulha-se o fundador, acaba de ver o seu ketchup “À Portuguesa” ser distinguido como “produto inovador” na Anuga 2015, feira de alimentos e bebidas em Colónia, Alemanha.
O início não foi fácil. “A distribuição não era organizada e não estava aberta a novidades”, recorda. Mas eles insistiram e a marca (que na altura ainda não se chamava Paladin) foi crescendo. Apareceram vinagres de sidra, de arroz, de cereal, de tomate, pêra rocha, maçã de Alcobaça e alguns muito específico como um de alho feito especialmente para Marrocos.

“Apostámos sempre em tudo o que é nacional e diferenciador. Perto de 88% da totalidade do que a empresa compra são produtos portugueses”, sublinha Carlos Gonçalves. Gostam de ser desafiados: o vinagre de tomate nasceu de uma parceria com produtores do Ribatejo e ainda há pouco fizeram, a pedido de um produtor, uma experiência para ver como resulta um vinagre de maçã Bravo de Esmolfe. “Somos uma indústria importante para que não haja desperdício”, salienta.

A ideia é que cada vinagre, com as suas características, tempere saladas de maneira diferente. E, sobretudo, que “transporte os sabores que lhe estão na origem”. De resto, a produção é muito semelhante, independentemente do produto base usado.

Carlos explica-nos quais são os dois passos necessários para que algo que tenha açúcar se transforme em vinagre: “É um produto 100% natural. Primeiro faz-se a fermentação alcoólica da fruta, transformando o açúcar em álcool com a ajuda de leveduras, o que demora entre três e quatro dias. Na segunda fase, que demora de 24 a 30 horas, faz-se a transformação do álcool em ácido acético, usando bactérias acéticas.”
Aliás, sublinha, “o vinagre é um produto milenar, que existe desde que apareceu o vinho”. As bactérias acéticas andam no ar e “se um produto alcoólico é deixado ao ar livre, elas alojam-se nele, produzindo uma espécie de ‘nata’ que vem ao de cima”. É assim que, com o tempo, o vinho acaba por se transformar em vinagre.

Cada novo produto da marca Paladin nasce numa sala, que nos convida a visitar, onde trabalham as 10 pessoas do departamento de Investigação e Desenvolvimento. Aqui, o processo completo é feito numa mini-escala. Há vários frascos com líquidos de muitas cores, resultado das experiências que são continuamente realizadas. “Temos trezentos e tal projectos de investigação por ano, dos quais só 40 ou 50 chegam ao mercado”.
Quando o projecto é considerado viável e interessante, segue para uma produção de média escala e, por fim, chega às grandes cubas de aço inoxidável, onde se produzem milhões de litros de vinagre. Do vinagre de vinho (e apenas esse), aquele que é considerado particularmente bom é escolhido para ser envelhecido durante seis meses em cascos que já serviram para vinho, um processo que “suaviza a adstringência e faz sobressair as características do vinho original”.

Carlos Gonçalves conduz-nos agora a outra zona da fábrica onde parece que recuámos no tempo. À nossa frente estão barricas e tonéis de madeira e também talhas de barro, cobertas com uma rede que impede os mosquitos de entrar.
Se, na sala ao lado, nas modernas cubas, o ar é introduzido no centro por um movimento rotativo e expelido para o fundo em bolhinhas, lançando bactérias em toda a massa ao mesmo tempo e acelerando o processo (mas também fazendo com que, pela introdução do ar, os aromas se volatilizem mais facilmente), nas talhas faz-se vinagre como antigamente. Com a arte do tempo e guardando os aromas o mais possível.


“Estamos a fazer experiências usando métodos antigos”, explica Carlos Gonçalves. “Tal como queremos acrescentar inovação a um produto tradicional, também queremos recuperar a tradição.” Assim, usam as talhas como se fazia no Alentejo para guardar azeite e vinho e os tonéis usados em Trás-os-Montes. “Com este processo tradicional, o produto nasce muito mais aromático. O nosso desafio é todos os dias acrescentar valor partindo de produtos básicos.”

Empregam 230 pessoas na Golegã, desde Abril têm uma fábrica em Angola produzindo vinagres, e colocam os seus produtos em 23 países, sobretudo de África e Médio Oriente. “Para quê fazer mais um vinagre balsâmico?”, pergunta Carlos Gonçalves. “Não somos um país que nasceu ontem. Queremos ir para o mundo com algo realmente diferenciador.”

“Um vinagre de vinho do Porto? Era o melhor do mundo!”

Carlos Gonçalves tem um sonho: fazer um vinagre com vinho do Porto. Mas a legislação portuguesa não permite. “Não compreendo”, desabafa. “Fazem-se vinagres com alguns dos vinhos mais nobres do mundo, com champanhe, com xerez. O nosso vinho do Porto podia estar ao mesmo nível. Era um vinagre que teria imediatamente uma posição revelante.”

Além disso, argumenta o proprietário da Paladin, seria vantajoso para todos. “De qualquer prisma, toda a gente ganha. É um produto com valor acrescentado e muito interessante, exclusivo de Portugal e que seria certificado pelo Instituto do Vinho do Douro e do Porto (IVDP). Era isso que queríamos, nem mais nem menos.”

Diz-se disponível para conversar com os produtores e com as autoridades responsáveis pela matéria para, em conjunto, acordarem as regras. “Se nos disserem que tem que ser num determinado tipo de garrafa, com rolha de cortiça ou outra coisa qualquer, tudo bem. O facto de ser regulado só lhe acrescenta valor. Aliás, queremos que seja regulado, para que seja um produto que só nós, portugueses, possamos fazer”. Acredita que em nada prejudicaria a imagem do vinho do Porto.

Questionado pela Fugas sobre esta questão, o IVDP, sem esclarecer as razões que sustentam esta decisão, referiu apenas que, de acordo com a legislação que aprova o estatuto das regiões de origem e indicação geográfica da região demarcada do Douro, “não é possível, neste momento, a comercialização de um vinagre denominado ‘Porto’”, sendo esta designação autorizada apenas nos vinhos licorosos provenientes daquela região e certificados pelo IVDP.

Carlos Gonçalves não vai desistir. “Ponham as regras que quiserem mas deixem-nos fazer um vinagre de vinho do Porto.” Também Rui Moura Alves, o produtor de vinho e vinagre da Bairrada, acredita no potencial dessa ideia: “Um vinagre de vinho do Porto? Era o melhor do mundo!”.

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