A tradição portuguesa assenta na arte do lote, na habilidade de misturar diversas variedades tentando retirar o melhor de cada uma para a elevação do conjunto. Mas se a tradição portuguesa se ajusta no talento do lote, nunca como hoje se falou tanto de uma só casta tinta, da Touriga Nacional, que foi nos últimos anos elevada à confissão de estrela do firmamento das castas portuguesas.
Tal como seria inevitável, o discurso não é unânime e nem todos se revêem numa exaltação incondicional sobre as qualidades e bondades da Touriga Nacional. Se alguns sentem dúvidas sobre essa conjuntura de primazia, outros preocupam-se mais com os perigos da glorificação de uma só casta, sobre os riscos de desvirtuação que a aposta no nome de uma só casta comporta, sobretudo num país que sempre preferiu e que cedo se habituou a vender e promover vinhos de lote em lugar de vinhos elaborados com uma só casta. Polémicas e discussões que são naturais num meio que vive rodeado de subjectividade e apreciações de estilo e onde raramente se conseguem atingir consensos alargados.
Porém, e independentemente de um maior ou menor número de entusiastas, independentemente de um maior ou menor número de detractores, a Touriga Nacional vive um momento de exposição mediática e notoriedade verdadeiramente excepcionais. Uma reputação geral a que nenhuma outra variedade nacional poderia sequer sonhar aspirar, com a evidente excepção do Alvarinho, a casta branca mais reconhecida de Portugal.
Num país onde a larga maioria dos consumidores continua a pedir os vinhos pela marca, pelo rótulo ou pelo nome da região, a Touriga Nacional começou a afirmar-se pela diferença. Num país onde poucos reconhecem o nome das variedades, a Touriga Nacional começou a afirmar-se pela excepção, conquistando um lugar ao sol e elevando-se a um patamar que anteriormente estava reservado ao Alvarinho, a única variedade nacional até então a ter direito a uma afirmação individual… por ressoar em lugar de destaque nos rótulos dos vinhos da sub-região de Monção e Melgaço.
Tudo isto num país que sempre assentou a sua filosofia vínica na ideia de lote. São raros os países que assumiram o conceito de forma tão entusiasta como Portugal, lutando por esbater as debilidades de cada variedade e de cada colheita. O espírito da arte do lote foi levado tão ao extremo que, numa prática que nos é quase exclusiva, levou a ideia do lote até à vinha, agregando dezenas de variedades perfeitamente distintas na mesma parcela. Uma prática rara e misteriosa para a maioria dos produtores de vinho internacionais que permite a combinação de castas mais temporãs com castas mais serôdias na mesma vinha, castas mais aromáticas com castas mais austeras, castas mais delicadas com outras que acrescentam propriedades mais estruturantes.
O radicalismo do conceito chegou mesmo ao ponto de, em algumas vinhas, as castas brancas serem misturadas com a presença de castas tintas, como muitas das vinhas velhas do Douro, Dão ou Norte do Alentejo atestam. Durante décadas, poucos sabiam ou se interessavam sobre a identificação das variedades que compunham o lote dos vinhos nacionais. Quando muito sabia-se que os vinhos eram elaborados com as uvas de uma vinha, eventualmente de uma parcela delimitada, sem procurar identificar as castas individuais. Ainda hoje tal conhecimento é considerado como um dado irrelevante para alguns dos produtores de maior prestígio nacional, que preferem valorizar condicionantes da vinha consideradas mais relevantes como a idade, solos, exposição, altitude e outros factores em detrimento da identificação ou preocupação sobre a identificação de cada casta presente.