O inusitado da situação tem uma explicação. O líquido que bebemos é tudo menos um líquido qualquer. Somos uns privilegiados: provamos o The Glenrothes Extraordinary Single Cask, ano 1969. Só existem 69 garrafas do precioso líquido e cada uma será vendida a 5000 euros. A mola no nariz serve para intensificar a experiência. Impedidos de utilizar o olfacto, provamos sem provar realmente. Soltamos a mola “e é como passar do preto e branco para o Technicolor”. A analogia é de Ronnie Cox, verdadeiro embaixador da Glenrothes (função oficial: “Brands Heritage Director”). E tem razão. Num segundo libertam-se os aromas: baunilha, coco, avelã, textura cremosa e um fim de nogado. Foi o grande final.
Que whisky para Callas?
Um par de horas antes, naquele dia de Novembro, tínhamos entrado em Abbey Road para participar nas primeiras “Vintage Vinyl Tasting Sessions” organizadas pela Glenrothes. Os responsáveis da destilaria escocesa fundada em 1879, especializada nos vintage single malt, decidiram reunir dois sentidos da expressão vintage, a aplicada ao whisky que produzem e aquela que empregamos à música de qualidade intemporal, juntaram-lhe outro sinal de vetusta intemporalidade, o vinil tocado em gira-discos, e nasceu isto que a Fugas viveu em Abbey Road: a associação de diferentes edições da Glenrothes a discos específicos, a reunião do prazer do palato com a delícia audiófila.
Não sendo músico ou técnico em sessão de gravação, e exceptuando algumas ocasiões excepcionais em que as portas se abrem ao público, só podemos imaginar o que escondem as históricas paredes de Abbey Road. A escolha da Glenrothes para a sua primeira sessão de, digamos, whisky musicado (iniciativa que a marca pretende expandir aos países em que esteja representada), torna-nos, portanto, privilegiados — pelo local distinto, pela distinção dos whiskies que nos acompanham.
Na sala, os convidados ouvem Ronnie Cox apresentar com humor cada um dos whiskies, seguem a apresentação dos estúdios, e do estúdio 2 em particular, feita por um homem da casa, Jeremy Huffelmann, e ouvem a música seleccionada e contextualizada para a ocasião por Colleen Murphy, DJ americana radicada há décadas em Inglaterra.
Para o single vintage 1995, a balada editada no mesmo ano pelos Radiohead, High and dry. Thom Yorke entoa os versos de uma das canções emblemáticas do álbum The Bends e saboreamos o travo “amistoso, citrino, floral”, daquela edição, com a qual “não adormecemos certamente, mas também não saímos para o clube”, diz Ronnie Cox. A acompanhar o Vintage Reserve, e para corresponder à combinação de vintages envelhecidos em barris distintos que o constituem, uma canção apenas não chegaria: ouvimos então Abbey Road na sua totalidade, do Here comes the sun cantado por George Harrison, à primeira faixa escondida da história, a Her majesty com que Paul McCartney o encerra. Todo o tempo, assim sendo, para apreciar o “estilo leve”, “límpido e luminoso” do Reserve, para aperceber o tom frutado e o travo a mel, para sentir a textura “como seda de gravata a flutuar ao longo da língua”.