Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

O renascer da Casa de Saima

Por Rui Falcão

Carácter é uma palavra que abunda no estranho léxico do vinho, um termo que surge cada dia mais apregoado e valorizado, quase endeusado como uma das características mais desejáveis, aquilo por que todos anseiam quando compram e bebem vinho.

Hoje não há ninguém no seu perfeito juízo, pelo menos no discurso, que deseje vinhos sem alma, sem coração, sem temperamento forte que lhe acrescente firmeza, resolução e individualidade. Esta é a época certa para os vinhos de personalidade forte, vinhos irredutíveis e sem compromissos.

Ou, pelo menos, esta é a versão poética em que por vezes nos deixamos embalar, confiando na presença de um universo de candidatos a beber vinhos de expressão forte, um mundo quase infinito de consumidores desejosos de provar vinhos intensos e de personalidade tão arreigada. Infelizmente, e tal como acontece tantas vezes na vida, a realidade nem sempre se conforma ou se harmoniza com os sonhos.

Apesar de tantos votos de boas intenções e da abertura de espírito nos discursos animadores, são ainda poucos os que realmente ambicionam beber vinhos de personalidade forte, vinhos que obriguem a pensar, vinhos que se afastem da facilidade que a maioria deseja para o seu dia-a-dia.

Não será certamente por acaso ou acidente de percurso que a casta Baga se mostra muito menos popular que, por exemplo, as castas Syrah ou Touriga Nacional, tal como não será certamente por acidente que a casta Bical seja substancialmente menos popular entre produtores e enófilos que as castas Arinto ou Antão Vaz.

No fundo, no fundo, mesmo que os discursos apontem para outras realidades mais poéticas, e mesmo que todos desejemos um pouco de carácter nos vinhos, alguma complexidade e individualidade, raramente pretendemos que esse cunho se revele de forma excessivamente viva e exuberante.

A maioria dos consumidores de vinho prefere os valores seguros, vinhos que sejam apelativos mas não demasiado sérios, vinhos ricos e complexos mas que sejam simultaneamente fáceis de entender e que não obriguem a grande atenção ou preparação mental.

Neste universo do facilitismo em que vivemos imersos numa procura constante pela comodidade e simplicidade, os vinhos da casta Baga ou da casta Bical raramente têm cabimento. Se as castas em si encerram já alguma responsabilidade no cartório, por serem variedades caprichosas e com temperamentos de diva, uma grande parte da responsabilidade tem também de ser assacada aos produtores da Bairrada, talvez os seus principais inimigos. Afinal, muitos dos vinhos da Bairrada nascem indistintos e herbáceos, desafinados e ásperos, vinhos que em nada dignificam a casta ou a região.

Felizmente nem todos são assim e ainda hoje persistem exemplos de produtores na região que não se incomodam em fazer vinhos que alguns podem considerar difíceis, vinhos com carácter, produtores com a vontade expressa de não sucumbir a modas, facilitismos ou em desprezar as tradições. Entre esses produtores sem medo encontra-se a Casa de Saima, um dos clássicos da Bairrada que marcou o final da década de oitenta e grande parte da década de noventa do século passado e que durante um período relativamente alargado quase desapareceu do mapa.

Podemos dizer com tranquilidade que a Casa de Saima palmilhou um trajecto sinuoso que em determinados momentos mostrou alguma complexidade, alternando entre momentos de bonança e uma ou outra circunstância mais adversa. Alguns dissabores familiares fizeram com que o nome Casa de Saima, bem como a produção, quase tenham desaparecido durante a primeira década deste século. Agora a tranquilidade parece ter voltado de vez à Casa de Saima num regresso à ribalta que se saúda com suprema alegria.

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