Fugas - Vinhos

Pablo Sanchez/Reuters

Vinhos africanos, para além do óbvio

Por Rui Falcão

Na semana passada preguei sobre a presença de vinhas em locais que podem ser encarados simultaneamente como insólitos e inóspitos, debruçando-me sobre a presença de vinhas ordenadas em pontos tão extraordinários e exóticos como as salinas da região francesa de Camargue, a ilha vulcânica do Fogo, em Cabo Verde, ou ainda as vinhas florescentes que brotam no Egipto em pleno deserto do Sara.

A excentricidade africana não se limita, no entanto, aos países descritos. A maioria saberá que a África do Sul é um dos pilares do vinho internacional, assegurando mesmo o troféu de ser o país produtor de vinho mais antigo e com maior percurso histórico do novo mundo. Apesar de muito provavelmente o percurso vínico de Marrocos, Argélia e Tunísia não ser tão conhecido, a maioria reconhecerá igualmente a sua contribuição para o mundo do vinho graças à influência francesa que ajudou a reformar a paisagem destes três países do Magrebe.

O que menos saberão é que a produção de vinho africano não se resume a estes países, estendendo-se a nações tão pouco associadas ao mundo do vinho como o Quénia, Namíbia, Zimbabué, Madagáscar, Tanzânia, Serra Leoa, Etiópia e um grupo relativamente alargado de outros países produtores igualmente pouco óbvios. Alguns chegam mesmo ao ponto de terem criado associações de produtores e terem formado agências de promoção internacional dos vinhos do seu país.

A maioria situa-se mais a sul do continente, agenciando por frescura e climas mais temperados para implantar as vinhas. Outros, não podendo beneficiar da bênção de uma latitude mais moderada, perseguem a frescura da altitude como meio para temperar os ânimos de um clima de índole mais tropical. É o caso das duas vinhas do Quénia que se encontram em exploração comercial que procuram a altitude da cadeia montanhosa do vale do Rift para resguardar-se simultaneamente da inclemência do calor e da intensidade das chuvas tropicais que costumam assolar a região poucas semanas antes do período de vindima.

A prevenção dos ataques de animais mostra-se muito mais difícil de controlar que o assédio das chuvas. No topo da cadeia alimentar de potenciais predadores estão os bandos de macacos locais, que desenvolveram um apetite e paladar muito especial pelas uvas europeias, mostrando-se capazes de dizimar uma vinha inteira em menos de uma noite. Talvez por isso as duas vinhas se encontrem rodeadas por guardas armados que não hesitam em disparar a matar para qualquer símio que ouse apresentar-se perto das vinhas. Os outros fregueses perigosos são as muitas cobras, a maioria das quais venenosas, que se escondem entre as linhas e entrelinhas da vinha, embora estas sejam mais uma preocupação para os trabalhadores do campo que um desassossego para o roubo de uvas.

Poderá parecer estranho para a maioria, mas a Etiópia é um dos países africanos com maior tradição da produção de vinho, bebida que faz parte da tradição não só na versão local, aromatizada com mel, mas igualmente na produção de vinho tradicional que, entre outras razões de ser, surge pela necessidade de celebração da eucaristia num dos países que mantém uma das mais antigas comunidades cristãs do mundo. Na actualidade sobrevivem dois produtores tradicionais, assegurando o enchimento de uns incríveis onze milhões de garrafas que abastecem o mercado local.

Muito mais popular, e com volumes de produção muitíssimo mais substanciais, irrompe o vinho da tradição Tej, costume local de produção de vinho que adiciona mel e folhas de um arbusto local que é endémico da região que se costuma designar como o Corno de África. A prática está tão enraizada nos costumes locais e a sua adaptação à gastronomia etíope é aparentemente tão feliz que existem dezenas de lojas e bares inteiramente dedicados à causa deste vinho tão peculiar e que desafia as convenções vínicas ocidentais da mesma forma que o Retsina grego nos desafia desde a antiguidade.

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