Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

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Um dia de vindima no Douro

Trabalho infantil, crime, os inspectores da Autoridade para as Condições no Trabalho andam à coca. Pagam todos: o empreiteiro agrícola que contratou a adolescente e o viticultor que contratou o empreiteiro. A adolescente, como qualquer mulher, recebe 28 euros por dia do empreiteiro (os homens recebem 30 euros) e o viticultor paga ao empreiteiro 38 euros por cada trabalhador (seja homem ou mulher), mais IVA. O empreiteiro assegura o transporte e paga o seguro e as contribuições dos trabalhadores (menos das crianças, claro!). É o negócio.

Uma festa? 

Quando tinha 13 anos, quase suplicava para me deixarem ir cortar uvas ou despejar baldes. Ganhavam-se uns poucos tostões, comia-se o que houvesse e voltava-se para casa ao cair do sol. Era duro e, no entanto, todos os anos ansiávamos por voltar às vinhas e aos lagares, enquanto a escola não reabria. Mas as vinhas não são lugares paras crianças, nem para velhos, muito menos no Douro Superior, onde as temperaturas chegam a ultrapassar os 40 graus centígrados.

Três da tarde. A última hora é sempre uma tortura. O termómetro deve estar mais perto dos 50 do que dos 40 graus. Parece vir fogo do céu e da terra e o vento quando corre é também de fogo. Tudo queima: os arames que seguram as videiras, os paus que seguram os arames, as folhas que protegem as uvas, as próprias uvas. Só se encontra algum conforto na sombra filtrada das videiras mais ramalhudas, ainda a viver da chuva que caiu durante a Primavera e as primeiras semanas do Verão. Demorado no seu devir, o tempo pesa tanto como o ar. A água fresca refresca a boca por um instante, mas transformava-se logo em ardor salgado nos olhos, do suor.

As vinhas não se dão no deserto, mas em Foz Côa, no Douro Superior, há vinhas e o lugar é quase um deserto: chove tanto como no Saara, a paisagem é árida e nos meses de Verão há sempre uma poalha fumegante no ar.

Vê-se pelos rostos e pelo caminhar que estão todos no limite: o septuagenário já reformado de França que aceitou dar uns dias “a pedido do sobrinho” e encarregado; a rapariga que corta uvas de cigarro na mão; a mãe da rapariga que fuma; a viúva triste que mal fala; o sexagenário, recém-separado, que coxeia; o encarregado, orgulhoso com a produção mas com pegões nas costas, por conta de uma suposta distensão muscular que afinal eram “três vértebras fora do sítio”; os romenos que andam sempre juntos, sussurrando em romeno e perguntando em português: “E agora, patrón?”.

E agora vamos embora, meia-hora mais cedo. Ninguém fala, mas o silêncio é de agradecimento e de alívio. Acabou o calvário, mas os homens ainda têm um camião para carregar de caixas com uvas a troco de uns euros extra. Para muitos, o dia seguinte, o mais quente do ano, ainda será pior. Quem disse que a vindima é uma festa?

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