Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Um dia de vindima no Douro

Por Pedro Garcias

A vindima é o momento alto da viticultura e há até quem pague para ir cortar uvas. Mas para quem vindima por ofício e necessidade só há festa no primeiro e no último dia. Relato de um dia de vindima no Douro, num ano em que o míldio e o granizo destruíram mais de 30% da produção.

Mais um dia, a mesma rotina, sempre de costas dobradas, às vezes de cócoras ou até mesmo de joelhos para chegar ao cacho mais escondido. Começa-se às sete, às dez já não se pode com o calor e só se termina às quatro.

Primeiras horas. Cada um com o seu grupo e a sua fila de videiras. É o momento do dia que mais rende. Discute-se a novela, os últimos jogos de futebol, a crise, qualquer coisa serve para fazer conversa e quebrar o mecanismo do vaivém das tesouras. As caixas vão começando a encher-se de uvas, umas atrás das outras.

Meio da manhã. Por volta das 11h00, os mais novos começam a olhar para o relógio. Ainda falta uma hora para o almoço. Agora só se para uma vez por dia, para se comer qualquer coisa seca trazida de casa. Uma hora de pausa, para descansar as costas e as pernas. Os almoços fartos de vindima já só acontecem nas colheitas mais pequenas, de um dia, quando se junta a família e os amigos.

Somos uns dez, mas ninguém canta. É só queixumes pela mesma vida triste e pobre de sempre, pelas uvas pagas ao preço de lentilhas, pelo dinheiro que não chega para nada. A escola está a começar e todo o dinheiro ganho não dá para pagar os livros dos filhos, anda tudo a sobreviver, a viver sobre arames.  

Este ano foi uma razia no Douro, por causa do míldio e do granizo. Há gente que perdeu tudo. A quebra em toda a região, se não houver muita candonga de uvas das regiões vizinhas e de vinho vindo de Espanha, deve ser superior a 30% por cento. A qualidade é ainda uma incógnita. Num dos finais de ciclo mais quentes de que há memória, as uvas chegaram ao ponto certo de maturação com níveis de álcool surpreendentemente baixos.  

Mas isso é assunto de adega. António, o encarregado, anda de peito cheio. Foi certeiro nos tratamentos e as trovoadas passaram ao lado. “Corto os… se não tivermos mais 30 pipas do que no passado!”.

Qualquer sombra serve para comer a merenda, em grupos como na vinha. Há portugueses e romenos, gente enviada pelo empreiteiro agrícola e alguns conhecidos recrutados na aldeia mais próxima. No pico da vindima é uma luta diária por pessoal, sejam novos ou velhos, viçosos ou estropiados, nacionais ou estrangeiros vindos da Ucrânia, Roménia, Moldávia, Bulgária ou outro lugar qualquer. O Douro e todo o campo português é hoje uma babel, um lugar de múltiplas línguas e religiões.

Desta vez só há adultos. Noutro dia foi diferente: “Já tens a nacionalidade portuguesa?”, perguntei à jovem trabalhadora romena que vindimava com lassidão, pouco entusiasmada com a ideia de cortar uvas, metida no seu mundo, com o namorado, também romeno, sempre ao lado a vigiar os olhares dos outros homens. Ela, tímida e envergonhava, respondeu num português perfeito: “Ainda não. Só a posso pedir aos 14 anos”. Até esse momento, era uma trabalhadora como outra qualquer. Afinal, era uma criança de 13 anos, com corpo de mulher mas uma criança, já meia portuguesa dos vários anos que leva em Vila Nova de Foz Côa, estudando e trabalhando no campo como os pais. “Não devias estar na escola”? “Não vale a pena. Daqui a uns dias vamos para a Roménia, trabalhar também nas vinhas. Estamos com saudades”.

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