“É preciso uma moda” para se beber mais Moscatel, dizia Vasco Penha Garcias, director técnico da Bacalhôa, no final de uma prova de vinhos generosos desta companhia, em Azeitão. É sempre assim: depois de provarmos grandes fortificados, sejam Moscatel de Setúbal, Porto ou Madeira, interrogamo-nos sobre como é possível que estes vinhos tenham tão pouca expressão nos nossos hábitos de consumo e nas nossas compras.
O preço não é um motivo. Um Moscatel de 2002, por exemplo, custa 15 euros. O álcool (cerca de 20%) também não, porque o gin, a vodka e o uísque têm mais álcool e consomem-se muito mais. Uma boa razão pode ser o elevado nível de açúcar destes vinhos. Um Moscatel com 20 anos, por exemplo, pode ter cerca de 200 gramas de açúcar. E, para agravar, a tradição associa o consumo destes vinhos à sobremesa, após já termos bebido outros vinhos durante a refeição e juntando mais doce aos doces. Uma bomba, claro.
É preciso reinventar o consumo destes vinhos, porque o prazer e a emoção que eles nos proporcionam não merecem ficar reservados apenas para ocasiões especiais. São vinhos extraordinários e impressivos, como ficou mais uma vez evidente na prova que a Bacalhôa realizou esta terça-feira, colocando lado a lado diversas colheitas de Moscatel de Setúbal e de Moscatel Roxo.
Uma explicação prévia: Moscatel de Setúbal e Moscatel Roxo são da mesma família, mas de parentesco muito afastado. O primeiro é o Moscatel de Alexandria (também conhecido por Moscatel Gordo ou Moscatel de Málaga); o segundo é uma variedade que resultou de uma mutação genética do Muscat Blanc à Petits Grains, que é igual ao Moscatel Galego do Douro (também conhecido em Espanha como Moscatel de Grano Menudo e em Itália como Moscatel Bianco).
Apesar de o Moscatel Roxo ter tido origem numa mutação genética do Moscatel Galego do Douro, não tem nesta região qualquer expressão comercial. Em contrapartida, em Setúbal, o Moscatel Roxo ganhou foros de prima-dona, por ocupar uma área pequena na mancha total de Moscatel, também ela baixa (cerca de 500 hectares, quase sete vezes menos do que a área de Moscatel do planalto de Favaios). Os seus vinhos atingem sempre preços superiores e são mais procurados do que os vinhos de Moscatel de Setúbal. Mas nem sempre são melhores. Em novos, podem ser. Por terem mais acidez e serem mais exuberantes de aroma (rosas, líchia, anis), mostram-se mais finos e delicados. Mas, com o envelhecimento, os vinhos de Moscatel de Setúbal, mais cítricos, ganham outra vivacidade e ficam mais complexos do que os generosos de Moscatel Roxo.
Pelo menos, foi essa a sensação que sobrou da prova dos moscatéis da Bacalhôa. E ambas as variedades são vinificadas da mesma maneira — como se fossem vinho tinto. O mosto fica a macerar em cuba de inox juntamente com as películas das uvas durante alguns meses, já depois de ser adicionada a aguardente vínica para parar a fermentação. Este tipo de vinificação permite extrair o que de melhor tem a película e acelera a oxidação dos vinhos. Ajuda a extrair aromas e sabores das uvas mas também taninos e alguns amargos que conferem tipicidade aos moscatéis de Setúbal e lhes garantem uma grande longevidade.