Fugas - Vinhos

Quando a Alemanha não é racional

Por Rui Falcão

Poucos países simbolizam de forma tão evidente conceitos como a racionalidade, rigidez, frieza, previsibilidade e organização como a Alemanha, pátria da tessitura e ordenança.

Da Alemanha esperamos com assentimento pela perfeição, segurança, coerência, consistência e, sobretudo, uma racionalidade que pode ser levada ao extremo. Num país que gosta de aforrar e de ter tudo claro e perceptível, sem a ambiguidade de leis confusas que permitam interpretações múltiplas, seriam de esperar regras coerentes e de compreensão imediata.

Curiosamente, e talvez para contrariar esta lista de preconceitos que caracteriza a percepção internacional do país, no mundo do vinho a Alemanha distingue-se precisamente por apresentar um conjunto de regras extremamente confusas que muito poucos entendem e que são passíveis de tantas interpretações e tantas considerações que acabam por se prestar a equívocos e enganos consideráveis. Por acidente, omissão ou vontade própria os rótulos alemães são tão confusos que se prestam a todo o tipo de tropeções. Mesmo sem ter de considerar o tipo de letra gótica que parece ser tão do agrado dos produtores locais.

Os produtores alemães têm de indicar por obrigação o patamar de qualidade, eventualmente o tipo de doçura, a casta e, com assiduidade, a origem das uvas num sistema tão confuso que facilmente se presta à anarquia. O patamar de qualidade mais elevado, aquele que nos interessa e que representa o universo dos vinhos alemães, é conhecido como QmP, acrónimo que representa a ideia de “vinho com predicado”. A origem tem de se situar num dos treze Anbaugebiete, o equivalente às nossas denominações de origem.

Cada Anbaugebiete encontra-se dividida em diferentes Bereich, sem paridade directa com a lógica nacional mas que poderiam ser interpretadas para todos os efeitos como o equivalente a sub-regiões. Cada Bereich pode ainda ser dividido em Grosslagen, mais uma vez sem equivalente nacional mas que deve ser entendido como uma colecção de vinhas com uma fronteira específica. Para terminar, dentro de cada Grosslagen podem ainda existir Einzellagen, ou seja, vinhas específicas e únicas que são identificadas directamente pelo seu nome. Apesar dos nomes nem sempre serem fáceis para quem não domina o alemão, até agora poderíamos aceitar a divisão sem grandes dificuldades.

A lógica torna-se menos evidente quando percebemos que um Grosslagen pode na prática variar entre áreas tão díspares como 60 ou 1400 hectares, enquanto um Einzellagen se pode situar entre um mínimo de 5 e um máximo de 60 hectares. Valores que resultam da racionalização que foi levada a cabo em 1971, mudança que pretendeu simplificar a nomenclatura dos vinhos alemães erradicando o nome próprio de mais de 30.000 vinhas individuais que vigoravam e ostentavam o nome no rótulo à época. Infelizmente, a reclassificação reconverteu essas mesmas vinhas em mais de 2600 Einzellagen, diluindo o nome das grandes vinhas em nomes tão genéricos que se limitaram a acrescentar parcelas vizinhas de qualidade inferior às grandes vinhas da Alemanha.

Bernkastel, na região de Mosel, um dos grandes nomes mundiais do vinho, exemplifica de forma gritante o caos alemão. Antes de 1971, Bernkasteler Doctor era uma das vinhas mais consideradas na região e no mundo, genetriz de grandes vinhos reconhecidos como os melhores do mundo, uma pequena vinha orientada a sul de inclinação desenfreada e vertigem garantida confinada a uns minúsculos 1,32 hectares de área total. Logo após a publicação da nova lei, e ao abrigo da junção de várias vinhas sob um nome único, a área foi generosamente aumentada para 5 hectares, valor que despertou a ira dos proprietários anteriores. Depois de muitos protestos e de uma revolta organizada, a dimensão acabou reduzida para 3,2 hectares, valor que, mesmo assim, representa o triplo da dimensão original de uma vinha única. E sim, continuamos a falar na Alemanha…

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