Em Lisboa pedimos a dois chefs de restaurantes da cidade para nos proporem alguns petiscos que têm nas respectivas cartas. Do Café Garrett, que fica dentro do Teatro Nacional D. Maria II, Leopoldo Garcia Calhau escolheu três petiscos que têm a ver com as suas memórias, muito ligadas ao Alentejo, mas que passam também pelo Algarve.
Do restaurante Expressões da Nossa Terra, aberto desde Novembro na zona de Picoas, o chef Víctor Hugo Sintra escolheu quatro pratos que mostram o trabalho que tem vindo a fazer de pesquisa de receitas tradicionais de todo o Portugal. Mais do que criar pratos próprios, interessa-lhe investigar receitas esquecidas e trazê-las de novo para as mesas.
No Porto, fomos a três locais tradicionais, o Capa Negra, O Buraco e o Salta o Muro, e procurámos petiscos populares – um deles (a raia frita) já quase desaparecido. Depois, foi só encontrar o vinho certo para cada um.
Harmonização I
Favas com chouriço e lascas de bacalhau | Café Garrett
Leopoldo quis fazer uma brincadeira com a tradicional saladinha de favas com chouriço, mas achou que lhe faltava ainda alguma coisa e decidiu juntar-lhe lascas de bacalhau cozidas a baixa temperatura e temperadas com azeite.
É um prato que tem a ver com a estação – aparece na época das favas, aí por finais de Abril e Maio. E tem tudo a ver com as memórias de Leopoldo que se lembra bem de, na infância, haver sempre a “altura de descascar as favas”.
Estas são do seu pai, que tem umas hortas junto ao Museu do Traje, no Lumiar, em Lisboa, o que torna o prato também uma história de família. O chouriço é picado aos cubos e, ao contrário do tradicional, não é estufado, mas praticamente cru (as favas são apenas bringidas, por isso mantêm-se ao mesmo tempo firmes mas macias).
Amplitude Dão 2013 | Pedra Cancela
Há gordura e concentração, mas a textura e gelatinas do bacalhau pedem um tinto que seja também elegante, fino e de boa acidez.
Harmonização II
Muxama de atum | Café Garrett
Também neste petisco entram as memórias de infância de Leopoldo, cozinheiro, anfitrião e alma do Café Garrett. “No Verão íamos sempre passar férias ao Algarve, a Vila Real”, conta. “E nessa altura comíamos muxama de atum”. A muxama é uma tradição que vem já dos tempos de fenícios e romanos e consiste em salgar primeiro e depois secar lombos de atum (diz-se que o nome vem do árabe musama, que significa seco). Pela semelhança do processo, costuma-se dizer que a muxama é o presunto do mar.
Nas memórias de Leopoldo, ela era sempre comida com pão – e no restaurante é acompanhada por pão alentejano e manteiga feita com peixe do rio Guadiana fumado. É por isso, diz, uma receita “que atravessa o Alentejo e o Algarve”. Falta ainda referir um último elemento, igualmente importante: o rábano. “No Alentejo, o rábano comia-se à dentada, com copitos de vinho, nas tascas”, conta Leopoldo, que recorda que os homens o cortavam sempre com uma navalhinha. No Café Garrett, ele vem em fatias fininhas e ralado, ajudando, com a sua frescura a equilibrar o sabor intenso da muxama.
Espumante Super Reserva 2012 | Quinta das Bágeiras
Bairrada
Com sal, secura e concentração, também o presunto do mar tem o umami que só no confronto com um espumante Bruto proporciona um combate justo.
Harmonização III
Pezinhos de coentrada | Café Garrett
É uma receita tradicional que parte “da boa ideia alentejana de comer tudo até ao tutano e do pouco fazer muito”, explica Leopoldo. Aqui não há desperdício e a gelatina dos pezinhos de porco é o que dá toda a graça ao prato, que é servido com uma tosta de pão alentejano. “Não é muito avinagrado”, frisa Leopoldo, “consegue-se um bom equilíbrio entre a gordura e o vinagre”. Também os coentros entram na receita – como em muitas outras no Sul de Portugal – para dar alguma frescura ao prato.
Reserva 2011 | Terrenus
Alentejo
Com vinagre, gelatinas e coentros o desafio é mesmo difícil. Só um vinho intenso e complexo, com frescura e persistência estará à altura.
Harmonização IV
Sável de escabeche | Expressões da Nossa Terra
Como o conceito deste restaurante passa também por usar os produtos da época, este é um petisco que só se encontra na altura em que há sável, pelos meses de Março e Abril. Nessa época, vários restaurantes anunciam que têm este peixe de rio, que geralmente é servido frito, em postas fininhas, com açorda de ovas.
Não é nada vulgar ver-se escabeche de sável – esta é uma receita que Víctor Hugo Sintra encontrou no livro Culinária Portuguesa de António Maria de Oliveira Bello, conhecido como Olleboma, e que colocou na ementa do restaurante. “O molho leva muito mais vinho branco do que nos outros escabeches”, diz, explicando que, sendo o escabeche uma forma de conserva, esta receita permite prolongar por mais algumas semanas a época do sável. “É dos melhores molhos de escabeche que já comi”, garante.
Aphros Loureiro 2015
Vinhos Verdes
O escabeche e a frescura e acidez da casta loureiro parecem andar sempre de mãos dadas. Com notas florais, a par da fruta fresca e limonada aliada à frescura granítica, o Aphros Loureiro será sempre bom companheiro.
Harmonização V
Línguas de bacalhau | Expressões da Nossa Terra
Antigamente, as línguas de bacalhau eram muito usadas nas cozinhas portuguesas. Víctor Hugo lembra-se de a avó fazer arroz com elas mas não dar “aos miúdos” por achar que eles não iam gostar do sabor. Ele sabia que queria trabalhar este produto e Pedro Abril, o outro chef do Expressões, mostrou-lhe uma receita de línguas fritas, previamente marinadas em leite, limão e noz-moscada, e que são servidas acompanhadas por um picadinho de ovo cozido, cebola, salsa, azeite e vinagre.
Experimentaram a receita original, como sempre acontece quando procuram perceber qual o sabor que o prato deve ter, e depois fizeram alguns ajustes até chegarem ao petisco que oferece um agradável contraste entre o crocante das línguas de bacalhau fritas e o bem temperado picadinho.
Alvarinho Reserva 2013 | Casa do Capitão-Mor
Vinhos Verdes / Monção-Melgaço
Ovo, leite, noz moscada, mas também limão e as gelatinas das línguas pedem complexidade e textura. Os grandes alvarinhos aportam exuberância aromática e frescura granítica, um potencial necessário para se ajustar ao petisco.
Harmonização VI
Moelas de pato | Expressões da Nossa Terra
É mais habitual encontrar, entre os petiscos portugueses, as moelas de galinha, mas Víctor Hugo preferiu usar aqui as de pato, mas com a mesma receita, cozidas e servidas numa tomatada (as moelas são uma “miudeza” que faz parte do sistema digestivo das aves).
“As de pato são maiores e têm um sabor mais interessante”, justifica. “Cozo-as em água temperada com banha de porco, sal e pimenta, faço um estufado de tomate com o caldo do pato, o que realça o sabor das moelas, que acabam de estufar nesse molho.”
Branco Reserva 2015 | Lua Cheia em Vinhas Velhas
Douro
O refugado com tomate pede complexidade e frescura, enquanto as moelas apontam para o lado frutado e persistente. Com o bom volume de boca proporcionado por este vinho, a coisa promete ficar perfeita.
Harmonização VII
Pica-Pau | Expressões da Nossa Terra
Servir o tradicional pica-pau, petisco habitual em tascas e casas de pasto, foi a solução que Víctor Hugo encontrou para a necessidade de ter um bife num restaurante que se especializou em petiscos para partilhar. Não há muito a alterar a esta receita simples: a carne é cozinhada como bife e depois cortada em quadradinhos, que são envolvidos no molho feito à base de vinho tinto e que leva pickles para dar uns picos de sabor mais ácido.
A diferença é que Víctor Hugo coloca uma fatia muito fina de toucinho salgado por cima da carne, deixando-a derreter com o calor desta. Os pickles também são um pouco mas adocicados que o habitual, realçando assim o sabor doce do vinho tinto. Mas, diz, para que o prato não se torne monótono, a ideia é ir variando o molho de tempos a tempos.
Alfrocheiro 2013 | Paulo Laureano
Vinho Regional Alentejano
Tudo aponta para uma boa acidez casada com a fruta e aromas dos tintos criados em ambientes quentes. São assim os vinhos da casta Alfrocheiro nos anos em que Paulo Laureano os consegue fazer chegar à garrafa.
Harmonização VIII
Rissóis de Vitela | Capa Negra
O Capa Negra é um daqueles snack-bares de grande rotatividade e movimento. Espaços múltiplos, uma lista também diversificada de sandes, petiscos e refeições a toda a hora. É antiga a fama – e procura – dos substanciais rissóis de vitela, que se devoram ao balcão nas noites em que os copos de cereja se vão multiplicando.
Além de generosos no tamanho – quase em forma bola – satisfazem também pelo sabor apurado do refogado que está na base do picado. A massa espessa, macia e crocante, complementa a é também saborosa e envolvente, enquanto a crocância da fritura está mesmo a pedir a efervescência da cerveja. Irresistíveis nas noites de Verão.
Muralhas de Monção 2016
Vinho Verde
A crocância pede vinhos frescos e espevitados, num perfil que tem tudo a condizer com os vinhos verdes. No casamento com Alvarinho e Trajadura, a simplicidade do Muralhas de Monção da última colheita parece adequada.
Harmonização IX
Iscas de Vitela | O Buraco
Além de já não ser muito usual a utilização das vísceras na maioria das ementas, as iscas de fígado de vitela que continuam a ser cozinhadas n’O Buraco sempre foram diferentes. Sempre de dimensão generosa, a fritura é contida de forma a cozinharem sem perder humidade e a cebola frita, no mesmo molho, com idêntico cuidado. São servidas no prato de grés, que a par do ar rústico mantém o calor, e acompanha com barata frita à rodela.
São muitas – e sempre bem saborosas – as razões que nos podem levar até este movimentado restaurante da Rua do Bolhão, mas as iscas de fígado são mesmo um petisco especial.
Bastardo 2014 | Quinta de Arcossó
Trás-os-Montes
Cebola, batata frita e carnes moles parecem pedir aroma, frescura e tanino frutado. Nas vinhas de Arcossó a casta Bastardo assume ainda um carácter maduro e vegetal que a torna particularmente gastronómica.
Harmonização X
Raia frita | Salta o Muro
Como era prato de gente pobre nas comunidades piscatórias, a raia frita já quase desapareceu. Cozinhava-se também nas tascas da beira-mar, tal como os rabos de bacalhau que confortava, os estômagos dos menos favorecidos, e por isso se dizia “p’ra quem é bacalhau basta”. Eram petiscos de gente pobre, mas, tal como o bacalhau, a raia também subiu de estatuto, se bem que seja raro encontrar quem ainda a frite. Talvez pela sua história como casa de petiscos e localização junto à lota de Leixões, o Salta o Muro é dos poucos lugares onde ainda se encontra a raia fria. É aqui particularmente bem cozinhada, em posta louras, crocantes e bem escorridas, que acompanha normalmente com delicioso arroz caldoso de lombarda e feijão branco.
Branco Barrica 2012 | Campolargo Bical
Bairrada
A raia é crocante, o arroz caldoso e o vinho tem que ser fresco, sabores frutados e algum volume de boca. Tal como a raia frita, um branco fora do comum, frutado e delicado.