Fugas - hotéis

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Um abrigo alentejano que convida a pôr as mãos na massa

Por Marisa Soares ,

Fomos atrás do descanso no coração da planície e acabámos a partir ovos e a picar cebola, numa cozinha onde antigamente se desmanchava o porco depois da matança. No Refúgio da Vila, em Portel, de avental posto, ajudámos a fazer o almoço e sentimo-nos em casa.
Sábado, meio-dia. Nesta escola não se ouve o toque da campainha a chamar para a aula, é pelo olfacto que somos tentados a entrar. Cheira a especiarias, a carne, a bacalhau, a salsa e a alho. E a outras coisas que ainda não conseguimos deslindar. Enquanto esperamos pelo chef, que há-de desvendar os segredos dos pratos típicos do Alentejo, pomos o avental. A barriga já dá horas, mas não por muito tempo.
 
No programa que nos tinham sugerido para o fim-de-semana no Refúgio da Vila, em Portel (Évora), este parecia ser o ponto alto. Desde que abriu, em 1999, numa antiga casa agrícola apalaçada do século XIX, o hotel rural de quatro estrelas tem uma Escola de Cozinha que já foi considerada uma das dez melhores da Europa por um jornal inglês. Mesmo com o hotel em risco de fechar no ano passado devido à quebra da procura, as aulas não pararam. 
 
A escola foi uma ideia que a proprietária, Sofia Vieira, ex-guia turística, trouxe das viagens que fez pela Europa, onde proliferavam projectos do género — antes mesmo de os concursos culinários se terem tornado moda nas televisões. “Percebi que as pessoas que viajam gostam de ter coisas para fazer, e que a mesa de uma cozinha é o local ideal para se falar de tudo”, conta. Em 1993, foi de Lisboa a Portel com um anúncio de jornal na mão. Mal viu o edifício senhorial foi “amor à primeira vista”. Apaixonou-se pela alma do espaço onde viveram fidalgos ligados à Casa Real e onde foi rodado um filme português, Cerromaior, que adaptou ao cinema o primeiro romance de Manuel da Fonseca. 
 
Sofia Vieira comprou o edifício de paredes abobadadas e as pequenas casas contíguas para criar um hotel com “ar de casa”, sem grande luxo. Conseguiu. Além de 30 quartos, uma sala de bilhar e uma agradável sala de estar (com lareira, porque afinal no Alentejo faz frio), tem também uma sala de conferências, para empresas. E também acolhe casamentos ou festas de aniversário. No jardim interior, há espaço para as correrias dos mais pequenos.
 
Maratona gastronómica
 
A proprietária quis manter as pinturas murais nas paredes do primeiro andar da casa principal, que contam pequenas histórias das aventuras lusas pelo Norte de África. Nos corredores, apenas uma das fotos penduradas pertence à matriarca da última família que habitou a casa, a Amaral-Palhavã. As restantes são de familiares da actual proprietária. A imagem de marca do hotel é um cavalo, uma vez que a coudelaria de Portel, nascida em 1557, esteve na origem da raça alter-real (mais tarde transferida para Alter do Chão). 
 
A Escola de Cozinha funciona no local onde no passado se desmanchavam os porcos depois da matança, contíguo ao restaurante Adega do Refúgio, antiga garagem de coches e charretes. Quando ali chegamos, um grupo de crianças está já no pátio de avental, mangas arregaçadas, mãos sujas de farinha e sorrisos de entusiasmo. Sofia Vieira ensina-as a fazer bolachas e salame (que provámos mais tarde). Aos adultos — mais de uma dúzia, entre jornalistas e outros hóspedes — cabe a tarefa de fazer o almoço, com os ingredientes colocados em tigelas de barro sobre a enorme banca de mármore, no centro da cozinha. 
 
Pedro Soudo, chef do restaurante e professor da escola, dita a ementa: queijo de cabra com azeite de São Pedro (produzido em regime não intensivo nos olivais da região, com vários sabores) e orégãos, queijo fresco panado com mel e canela, tomatada, migas, carne do alguidar, salada de bacalhau e grão e a bela da sericaia (já estamos a salivar). Os alunos dividem tarefas entre si — coube-nos, entre outras missões, a difícil empreitada de partir 12 ovos e separar (bem separadas) as gemas das claras, para a sericaia. Prova superada. 
 
Enquanto aprendemos alguns truques — como picar cebola e alho com mestria, por exemplo — vamos provando as iguarias, acompanhadas de um copo (ou mais) de Monte Cruz, um vinho produzido em Portel, na Herdade do Monte do Outeiro. A mesa está repleta de produtos locais — alguns até poderiam ter sido cultivados no quintal que fica junto à piscina, repleto de laranjeiras e limoeiros carregados de fruta, mas a ASAE proibiu que estes fossem utilizados no restaurante. 
 
Antes de mergulharmos o garfo no tacho das migas e de picarmos um pedaço de carne do alguidar, Pedro Soudo explica que o segredo da cozinha alentejana está no exagero. “Se a receita diz para pôr dois ou três alhos, pomos dez.” Provamos a comida e o conceito de “comida de conforto” ganha forma ali mesmo à nossa frente. E assalta-nos uma pergunta. Como é que se almoça (desta vez sentados à mesa do restaurante, onde iríamos comer todos aqueles pratos) depois de duas horas a petiscar?
 
A maratona gastronómica só termina ao jantar, que teve direito a petiscos regionais e a um concerto dos Almocreves de Portel, grupo de cantares alentejanos famoso pelo tema do “passarinho” que canta “às quatro da madrugada”. Se canta, não sabemos. Caímos na cama de ferro, king size, e só acordamos de manhã com o canto dos galos, que conseguimos adivinhar numa capoeira vizinha. Da varanda do quarto vemos os raios de sol a bater na torre do castelo, ao cimo da colina. Depois de uma visita, é de lá que nos despedimos de Portel.
 
 
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Como ir
Quem vai do Norte ou do Centro deve apanhar a A6 para Évora e depois ir pelo IP2 em direcção a Beja. Vindo do Sul, tem que fazer o caminho inverso: apanhar o IP2 até Beja e daí seguir em direcção a Évora. Em qualquer dos casos, Portel dista 40 quilómetros destas duas cidades. Entrando em Portel, siga a estrada principal que atravessa a vila e encontrará o hotel. A viagem vale a pena: pelo caminho fique atento aos inúmeros ninhos de cegonha instalados no cimo das árvores e dos postes e siga o voo das pegas-rabudas, inconfundíveis com a sua plumagem preta e branca e a longa cauda, e de algumas aves de rapina que rasgam o céu.
 
O que fazer
No intervalo das aulas de cozinha no hotel, pode esticar as pernas num passeio a pé pela vila. O castelo que se ergue no cimo da colina pejada de casas caiadas é de visita obrigatória e proporciona uma vista privilegiada sobre as planícies douradas. A vila tem também várias igrejas (entre elas a Igreja de Vera Cruz, cujo santuário guarda o lendário Santo Lenho, um fragmento da Cruz Verdadeira de Cristo, associado a milagres e a exorcismos) e ermidas com interesse arquitectónico, como a ermida de São Pedro, construída no século XVII no alto da serra de Portel e actualmente em recuperação pela câmara. Pode visitar também a Bolota, antigo matadouro municipal que agora é um pavilhão temático de promoção da cultura da zona. E se for no primeiro fim-de-semana de Abril, marque na agenda a 8.ª edição do Congresso das Açordas, onde pode aconchegar o estômago com este prato típico alentejano.
 
Portel fica a 15 minutos de carro de Alqueva, por isso guarde algumas horas para um passeio na albufeira. São 250 quilómetros quadrados de água doce, abraçados por montes carregados de oliveiras e sobreiros, em cujas margens passeiam colónias de garças cinzentas e cegonhas. Há operadores turísticos que navegam no grande lago, como o AlquevaLine, com saída junto à barragem, ou o Amieira Marina, na Amieira. É possível fazer desde passeios de semi-rígido, canoagem, cursos de vela ou esqui aquático. E até dar um mergulho — no Verão a água chega aos 28 graus, garantem-nos. À noite, aproveite para observar estrelas no escuro céu alentejano. O Refúgio da Vila é um dos hotéis que integram a rota criada pela Reserva DarkSky Alqueva — primeira reserva do género no mundo a ser reconhecida pela UNESCO —, pelo que pode pedir que instalem o telescópio no jardim e ficar ali a contemplar os astros. A DarkSky, recentemente premiada pela Organização Mundial de Turismo, organiza também passeios nocturnos a pé ou a cavalo, wildnightwatching, nightbirdwatching, provas de vinhos e passeios de canoa.
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A Fugas esteve alojada a convite do Refúgio da Vila
Nome
Refúgio da Vila
Local
Portel, Portel, Largo Doutor Miguel Bombarda, 8
Telefone
266619010
Website
http://www.refugiodavila.com/
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