Fugas - hotéis

  • Helena Flores
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Em casa, de olhos abertos para a paisagem

Por Abel Coentrão ,

Em Gondoriz, Arcos de Valdevez, a Quinta da Lamosa pode ser apenas um espaço para descansar. Mas o cenário em volta pede olhos e, se as houver, pernas em forma para aproveitar as belezas do nosso único parque nacional.

Um quarto podia ser apenas um espaço onde dormir. Uma cama. Lençóis lavados e um colchão confortável que nos puxe pelos sonhos. Mas nunca é assim. E se mesmo a experiência de dormir numa minúscula cápsula, como as que existem em diversos hotéis por esse mundo fora, vai muito para além do conforto da cama, o que dizer quando o quarto se abre para a natureza em redor, usando-a, assim verde, para garantir toda a privacidade?

Na Quinta da Lamosa, em Gondoriz, Arcos de Valdevez, é assim. João Paulo e Carla Serôdio cuidaram de erguer um projecto de turismo de habitação em que o descanso pode ser contemplativo. Uma cama em que apetece dormir de olhos abertos para a paisagem, de ouvidos abertos para os piares das aves que, aqui, mesmo à noite, parecem ser de bom agoiro. E tudo isto num lugar em que, poupados à cegueira das luzes da cidade, o céu se nos oferece pleno de estrelas.

Começamos pela noite, porque é o momento em que as casas da Quinta da Lamosa ganham o ar de esculturas na paisagem. Seja ela a Casa da Corte, erguida, madeira sobre pedra, sobre a memória de um estábulo de animais; sejam eles os espigueiros, à moda dos Horreos da Galiza, transformados em T0 nos quais, e sob os quais, em dias amenos, apetece estar. Mas não ficamos numa destas "casas com perninhas" - onde cabem três, graças a um sofá-cama, mas o espaço, na verdade, não abunda. Uma escolha que provocou uma pequena desilusão à pequena Raquel David, que se imaginou num conto infantil mal lhes viu as fotografias.

Não foi tristeza que durasse. Não foi nada que cinco minutos na quinta, e um banho nas águas calmas do rio Vez, a seguir, não conseguissem fazer esquecer, como aconteceu. Em contraponto, só o quarto de dormir da Casa da Corte duplica o espaço de um espigueiro, com a vantagem de se abrir, num painel envidraçado, para uns carvalhos na meia-idade, que hão-de ser mais belos ainda agora que o Outono lhes dá umas cores quentes. No piso mais baixo, a cozinha está preparada para tudo - mesmo para quem lhe apeteça, como foi o caso, transformar umas amoras colhidas no caminho numa deliciosa compota.

A escassos metros de um ribeiro que segue para o rio Vez, numa quinta que é Lamosa de nome porque já foi, um dia, margem enlameada daquele curso de água, a paisagem entra-nos olhos dentro, e não há melhor calmante, ou inspiração. João Paulo Seródio fala-nos de uma cliente habitual, italiana, que costuma não sair da quinta, passando os dias a tocar violoncelo. Nós não sabemos tocar violoncelo, mas temos à mão, no telemóvel, uma aplicação chamada Star Walk, que nos ajuda a olhar o céu, à noite, e aprender, das estrelas, o nome e a mitologia das constelações. E foi o que fizemos, na companhia de um ou outro morcego.

De dia, há outros apelos neste lugar. Estamos à porta do Parque Nacional da Peneda-Gerês, num concelho, o de Arcos, que tem no seu território alguns dos lugares humanizados mais interessantes da mais importante - e desleixada - área protegida do país. A Vila do Soajo está a alguns quilómetros, o Santuário da Peneda a alguns mais, mas nada longe. Mas, conhecendo como já conhecíamos aqueles lugares, seguimos o concelho do dono da casa e pusemo-nos, para norte, a caminho do Sistelo. Uma das mais bem preservadas localidades do Alto Minho, integrada numa marca, as Aldeias de Portugal, que é de âmbito nacional, mas que, para já, apenas distingue espaços no noroeste do país.

Situada na berma de uma estrada de montanha, a EN 202-2, que nos leva para Monção, Sistelo é uma boa surpresa. Tem uma casa com torre a dar-lhe ares de castelo, obra de brasileiro torna-viagem, a precisar de um grande restauro, mas, para lá disso, já muito trabalho foi feito para requalificar o casario e o espaço público que se desenvolve dos dois lados da via. A parte mais baixa, central pela presença da igreja, tem a seus pés o rio Vez, que aqui se confunde com um pequeno ribeiro. Mas o que espanta mesmo é toda a paisagem em que a aldeia se insere. Quilómetros de socalcos, rasgando, sinuosos, as encostas, e que nesta fase do ano estão pontuados de medas de milho, a parecerem-se com cabanas.

Chegamos na altura da desfolhada, e umas mãos para ajudar são sempre bem-vindas. O mulherio, todo de preto, trabalha e conversa com uma destreza ímpar, abrigada do sol de Setembro por uma ramada cujas uvas já se comem. A Raquel David conversa e trabalha como elas, e em cinco minutos percebe o que há que fazer às centenas de canas de milho miúdo ainda por desfolhar. É preciso um esforço para a tirar dali. Ela que nunca tinha visto tanto cereal, assim amarelo, espalhado ao sol na eira dos espigueiros da aldeia, percebe, fruto do acaso, uma parte importante do ciclo de um dos seus alimentos favoritos. E há-de falar disso durante dias.

Acabámos por sair e espreitar um troço de um dos vários trilhos que passam por aqui, descendo até ao rio Vez. É possível atravessá-lo, por uma pequena ponte, e subir a encosta, para ver a aldeia de um outro patamar. Pelo caminho, estamos sempre sob ramadas de videiras, com água a correr, entre as pedras. Ela é assim levada, patamar a patamar, para alimentar estes campos, terrenos ganhos à força de braços ao declive, acentuado, destas montanhas. E o que espanta em Sistelo, pelo menos na parte que a vista alcança daqui, na principal povoação da freguesia, é ver quilómetros de socalcos e tão pouca gente para os trabalhar.

O espanto é apenas fruto de um deslumbramento sem reflexão. Pensando um pouco, percebe-se que Sistelo não é nada diferente de uma boa parte do país. Despovoado apesar de belo, porque a beleza esconde uma dureza de viver que o simples passeio não revela. Daqui muito se emigrou e pouco se regressou. O investimento que foi entretanto feito permitiu fixar algumas pessoas, em torno do turismo de habitação, mas urge fazer mais. João Paulo Serôdio, portuense que se instalou nos Arcos por causa da mulher, está a fazer a sua parte. Como Hugo, o pastor de Sistelo, ele também forasteiro, que proporciona experiências de pastoreio por um dia a quem o desejar (basta combinar com os donos da Quinta da Lamosa).

Está visto que João, antigo velejador, agora mais dado às actividades de montanha, fez ele também o seu caminho de descoberta. À volta da quinta, a metros ou quilómetros, não faltam pessoas a fazer coisas interessantes, e importantes, e ele quer mostrar, valorizar o território e o parque nacional. É provável que agora já se consiga comer na casa, a pedido, o queijo de cabra que um casal amigo (mais gente de fora) se preparava, naqueles dias, para começar a comercializar. Ou visitar a exploração onde ele se produz - nada longe, por sinal, de uma outra quinta onde se cultivam ervas aromáticas.

Laços de amizade - e uma paixão pelo lugar - unem os promotores destes projectos, nos quais há que incluir, pela parceria que acabou por desenvolver com João Serôdio, a Aktiva Natura, de Luís Antas de Barros. De canoa, bicicleta, a cavalo, a pé, em percursos mais ou menos duros, Luís tem sido o guia de muitas pessoas, entre elas dezenas de clientes mais afoitos da Quinta da Lamosa. Esses que, não sabendo tocar violoncelo, ou não querendo passar o dia sob um espigueiro feito casa, numa preguiça contemplativa, preferem estourar o corpo na montanha e encher a alma de tudo o quanto este lugar tem para dar.

A Fugas esteve alojada a convite da Quinta da Lamosa

Gondoriz
É uma freguesia do concelho de Arcos de Valdevez, no distrito de Viana do Castelo, a uma hora e meia de distância do Porto, por auto-estrada. A Quinta da Lamosa tem três casas, dois espigueiros T0, com cama de casal e sofá-cama para uma criança, e a Casa da Corte, capaz de albergar uma família maior. Os preços começam nos 67,65 euros/noite, para um mínimo de duas noites, mas em época baixa, como agora, é proposta uma campanha em que é possível dormir, sem sobrecusto, uma terceira noite, a de domingo, sem pagar mais por isso. Saindo daqui directamente para o emprego, propõem os donos.

Nome
Quinta da Lamosa
Local
Arcos de Valdevez, Gondoriz, Lugar da Zebra
Telefone
914509049
Website
http://www.quintadalamosa.com
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