Fugas - hotéis

Os contos à casa

Por Rute Barbedo ,

Para que se volte a ler como antes, é preciso um lugar: o do nunca e do nada. Nunca por não haver horários, nada porque é lá que cresce a imaginação. Nesta casa de 1840, em Sobral do Campo, renascem o beirão Eugénio de Andrade ou Victor Hugo, que morreu sem ter “achinchado” ou “ido à marouva”. Assim começa o Leiturismo.

A maior — mas pequena — preocupação de Luís Veríssimo sobre este lugar será talvez a sua maior qualidade: o nada. É nas Aldeias do Xisto? Não, é ao lado. Tem praia fluvial? Também não. E a barragem? É mais à frente. Sobral do Campo, de nome e de raiz, já nem freguesia é. Desde 2013, passou a fazer parte de Ninho do Açor, mas só administrativamente, porque já se sabe que, por terras beirãs, quem é do Ninho é do Ninho e quem é de Sobral é de Sobral. Ponto.  

“Eu fui nascida e criada em Sobral e estou neste negócio há 31 anos”, conta Tijuca, que alimenta os dias no café-mercearia, cheia de vontade e de histórias. Pergunta de um fôlego se estamos a “dormir no Luís Filipe”, de onde vimos e para onde vamos, ainda antes de nos servir. Conta da ponte romana que aqui havia, de como as contradanças aconteciam ao domingo e de como se descamisava o milho em festa. Era assim o Sobral, tal como o pintou Rosário Bella na parede do café, no tempo em que “o correio funcionava na loja dos senhores Veríssimos” e a chegada do carteiro era “um acontecimento”, escreveu Maria Gabriela Hormigo em Memórias da Minha Aldeia – Sobral do Campo.

Este é o livro que nos fez madrugar no antigo curral da Casa Sarafana, hoje quarto do Leiturismo, o conceito que Luís Veríssimo (filho de João, feitor e herdeiro da casa por vontade de Luís Sarafana) desenvolveu para dar balanço a uma fantasia em torno dos livros num mundo que “lê de maneira diferente”. “Cheguei a sonhar que tinha uma livraria em São Bento [Lisboa]”, conta Luís, e a mãe, Fernanda (ou dona Bibi), credibiliza com a ilustração: “E calças com suspensórios!” Mas o publicitário surge de calções, sem suspensórios à vista, nesta residência-biblioteca mais longe da urbe que o diabo da cruz. Quer tirar-nos o sono com 4000 livros à solta. Dias antes, perguntou-nos que leituras queríamos à cabeceira, “para preencher lacunas” ou por hedonismo. “Autores da Beira Baixa”, pedimos; “menu regional” teremos. Assim vamos, de poesia e prosa à la carte, sobre lençóis brancos, sob traves brancas, entre os cedros e a piscina, ao luar e ao sol queimante. 

A Net e a mosca que passa

“A casa estava em muito mau estado, já nem tinha telhado”, conta dona Bibi. Era preciso recompô-la. “Os meus pais gostam disto e queriam ficar aqui. E eu queria arranjar um enquadramento e manter a integridade do património”, concretiza Luís. Do turismo em volta dos livros, fica o melhor exemplo: o da filha que acreditava que os pais precisavam de ler. “Enviei-lhes, em nome da filha, dois livros, e os separadores eram vouchers para o Leiturismo. Eles vieram. Foi delicioso”, regozija-se Luís.

No desenho do espaço trabalharam as mãos do arquitecto Rui Horta Santos, para manter a essência do lugar e garantir a privacidade dos hóspedes (a entrada para cada um dos quatro quartos foi pensada de forma a evitar cruzamentos). No conceito, imperou o entusiasmo de Luís Veríssimo, especialista em marketing e comunicação e, muito antes disso, um rapaz que não cresceu “à lambada mas à lombada” (o pai, João, de 79 anos, é um bibliófilo). Hoje, admite que nem sempre é fácil encontrar “paz de espírito para ler” e crê na globalidade do sintoma, como na análise de Nicholas Carr sobre o que a Internet está fazer aos nossos cérebros, à forma como lemos e memorizamos. “Não vou maçar com isto, mas é tudo muito diferente.”

Se é preciso voltar a ter tempo e espaço, ei-lo. Junto à piscina, esticamos os pés e, para além do galo que canta, da mosca que passa e da criança que treina proezas no triciclo da casa ao fundo do fundo, pouco mais nos pode desviar d’O Anjo Ancorado, de José Cardoso Pires. Ao meio-dia, o sol empurra para a sala de estar, depois dos degraus altos em xisto, junto à antiga loja onde chegava o correio e “onde se vendiam melancias e todas essas coisas”. 

A filha de Luís e a melhor amiga querem ir “lá em cima”, à parte vedada aos hóspedes e habitada pela família Veríssimo, vasculhar livros, fotografias, grafonolas e alçapões. Receiam os espíritos e fantasmas, mas ao mesmo tempo — o de criança — querem conhecê-los. “As pessoas que estavam aqui gostaram muito de cá morar, por isso os espíritos ficaram”, segreda Teresa ao balcão do bar emadeirado. Mas arriscamos que os espíritos são as paredes, as fotografias, o cartão de condolências deixado por Alexandre de Almeida Garrett aquando da morte de alguém próximo, a capela fresca (onde os “leituristas” gostam de estar) ou a salgadeira que conservava as carnes. Há fotografias a preto e branco do pai Veríssimo, dos habitantes da aldeia, da família Sarafana. Misturam-se. “Esta ainda é um daguerreótipo”, mostra Luís.

Há provas porque a casa era de uma família rica. “Tinha produção”, corrige Luís, sublinhando a pobreza da região. “As pessoas vinham bater à porta para pedir trabalho em troca do almoço.” Era daqui que se alimentava a aldeia, para lá das pequenas agriculturas em volta. Por isso é que um dia apareceram, atrás dos alçapões, armas deixadas por soldados da terceira invasão francesa. “Na primeira, eles vinham confiantes e levaram os cereais para se abastecerem para a viagem. Na terceira, como iam em fuga, deixaram as armas”, reconstitui a história. 

São quatro da manhã e já lá vão dois livros — um lido e outro por escrever; já “achinchámos” uma pêra (ou “fomos à marouva”, como se diz por terras beirãs); já provámos o alecrim. O nada, afinal, leva tempo.

INFORMAÇÕES

Preços: Com o mínimo de três noites de estadia, os preços variam entre os 45 (quarto individual) e os 120 euros por noite, consoante o quarto e a época. A casa completa está disponível a partir de 190 euros. A estadia contempla a preparação de menus de leitura e o acesso à cozinha, salas de estar e de refeições, bar, capela, bicicletas, Internet, jardim, forno a lenha e barbecue.

À cabeceira
Se este turismo é à volta de livros, cabe a Luís Veríssimo (e seus conselheiros) “fabricar” um menu que cruze as preferências do leitor com o tempo de estadia na casa rural. No fundo, é esse tempo que serve de referência ao número de páginas de leitura. A Fugas pediu um “menu regional” e quando chegou ao quarto tinha em cima da cama os seguintes títulos (pensados para três noites e quatro dias): Como se desenha uma casa, de Manuel António Pina; O Anjo Ancorado, de José Cardoso Pires; Poesia e Prosa de Eugénio de Andrade; O riso de Deus, de António Alçada Baptista; Guerra Peninsular, de António Pedro Vicente; Beira Baixa, de M. Lopes Marcelo; e Memórias da Minha Aldeia – Sobral do Campo, de Maria Gabriela Hormigo. Também é possível levar livros para casa, desde que sejam entregues em mãos até seis meses após a requisição. 

Outras informações

- Embora o complexo de quartos do Leiturismo tenha sido desenhado com o intuito de preservar a privacidade, privilegia-se o aluguer completo da casa, uma vez que áreas como a cozinha, a sala ou a piscina são comuns. 

- Há wi-fi, embora o papel e o offline predominem.

- Para lá da piscina, o pomar integra um poço que chegou a ser o maior da região. Os hóspedes são convidados a “achinchar” limões e laranjas, entre outros frutos.

- Há bicicletas disponíveis e podem fazer-se visitas guiadas às redondezas, como a Barragem do Pisco (a 4,3 km) ou a Albufeira de Santa Águeda (7,1 km), no rio Ocreza.

- Em breve, o espaço que já contou com a presença das ovelhas Camões e Agustina voltará a ter duas ovelhas.

- “Autonomia” é a palavra de ordem nesta unidade de turismo rural, onde não há horários. Por norma, as refeições são por conta do “leiturista”, mas, caso seja solicitado com antecedência, poderão ser disponibilizadas refeições, bem como o serviço de baby-sitting. 

- Estão planeadas para este ano “jornadas de promoção leiturística”, em que o almoço, o jantar ou a ceia serão à volta dos livros. Um exemplo: Em “Vamos Comer as Viagens da Minha Terra”, serão servidos pratos inspirados na viagem de Almeida Garrett entre Lisboa e Santarém. 

Como ir
Não há muito que enganar no caminho para Sobral do Campo. Desde Castelo Branco ou do Fundão (a aldeia fica entre as duas cidades), a estrada nacional 18 guia-nos até ao entroncamento com a N352. Depois de passar Póvoa de Rio de Moinhos e Ninho do Açor, avista-se Sobral do Campo. Na primeira bifurcação (com uma fonte à direita), segue-se pela esquerda. Os azulejos da capela da antiga Casa Sarafana indicam a chegada ao Leiturismo. (Aos utilizadores de GPS avisa-se que a Rua da Ladeira nem sempre está identificada no mapa.) 

Onde comer

Enchidos da Aldeia
A dois minutos a pé (funciona por encomenda)

Mini Mercado Etelvina 
A três minutos a pé

Café e Mercearia Tijuca
A dois minutos a pé (é necessário encomendar pão)

Restaurante A Mila
EN352, Casal da Fraga, São Vicente da Beira

Restaurante do Alfredo
Bairro Chão Santo 26, Póvoa de Rio de Moinhos, Tinalhas

Café e Restaurante O Cerejal
EN18, Vale dos Clérigos, Alpedrinha

Queijaria Vale de Alfaia
EN352, Sobral do Campo

Casa Agrícola Cabeço Carvão
Dois irmãos “tentando dar continuidade ao bem fazer da avó Teresa” na área dos queijos.
EN18, 6005 Alcains


A Fugas esteve alojada a convite do Leiturismo

Nome
Leiturismo
Local
Castelo Branco, Sobral do Campo, Rua da Ladeira, 5
Telefone
937010450
--%>