José abre o forno e inclinamos as cabeças para espreitar para o interior. É enorme e na escuridão do interior mal conseguimos ver onde acaba. Não é difícil imaginá-lo repleto de pães a crescer no calor da lenha, um cheiro quente a invadir a casa, e o padeiro, com a grande pá de madeira agora pendurada numa parede, a tirar para fora pães acabadinhos de fazer.
Os Lameirinhos — agora transformados em turismo rural, na aldeia da Barroca, serra da Gardunha, quase à beira do rio Zêzere — nasceram não apenas como casa de família mas como padaria. Manuel e Amália Antunes Belchior, os avós de José, Margarida e Teresa Costa Martins, construíram a casa em 1945, já no final da guerra. Eram ainda tempos de racionamento e conta-se que nessa altura havia quem dormisse à porta para garantir que, de manhã, conseguia comprar o pão, que nunca faltou aqui.
A zona da padaria, que ficava no rés-do-chão (agora uma área de estar com televisão e vídeos), era usada também como loja para vender manteiga, ovos, leite, fruta e outros produtos da quinta, onde existia ainda uma vacaria. Era um pequeno mundo, quase auto-suficiente, em que a lenha do pinhal na encosta acima da casa era usada para o forno e a água da mina para amassar o pão. Até o milho para as broas era semeado não muito longe dali e moído na azenha da família no rio, depois de ser posto a secar no sótão da casa.
Havia também uma enorme garagem, construída para receber as camionetas da empresa Transportes do Zêzere, também explorada pelo avô Manuel, que às vezes cedia o espaço para os animatógrafos ambulantes de passagem pela Barroca aí instalarem temporariamente uma sala de cinema improvisada.
Quando José Adrião, que é arquitecto, decidiu, com as duas irmãs, reabilitar a casa para a transformar num turismo rural, uma coisa era clara para todos: as memórias dessa história teriam que estar presentes. Nos seis quartos, que se estendem ao longo de um corredor cheio de luz, há fotografias que mostram como cada um destes espaços era antes.
Pouco ou nada mudou na estrutura da casa, mas o ambiente é outro, com as paredes brancas a atraírem a luz, o mobiliário simples e claro, um jarro de água em cima de cada mesa-de-cabeceira com um pouco de alecrim dentro, tudo cheio de pequenas atenções que Maria de Jesus, a incansável guardiã dos Lameirinhos, renova a cada chegada de hóspedes novos.
A palavra Lameirinhos, pintada a verde água na parede da casa e bordada na mesma cor na roupa de cama, foi escrita com a letra da mãe de José, Matutina, a mesma senhora de vestido branco e lenço a prender-lhe os cabelos que vemos, jovem, numa fotografia antiga, sentada nas pedras do leito do rio Zêzere, perto da azenha da família. Como Matutina já tinha alguma dificuldade em escrever, a palavra foi composta, letra a letra, a partir das cartas de amor que escrevera ao marido.
Quando chegamos, numa sexta-feira de noite, faz frio na Barroca, mas a potente salamandra já aquece as salas de jantar e de estar e a cozinha. Basta pôr a comida em cima dela e nada arrefece. José faz as honras e, enquanto aquecemos o jantar e abrimos o vinho, vai contando como planeou a reabilitação dos Lameirinhos, “virando” a casa, anteriormente voltada para a estrada, para a parte das traseiras com o pátio, as hortas e o pinhal mais acima.
Agora, depois das obras feitas, percorre-se uma pequena estrada de acesso e entra-se por uma porta num muro lateral, primeiro para um pequeno pátio, parede de xisto até metade, branca daí para cima, e uma porta verde clara aberta, a convidar-nos a continuar. Lá dentro, o pátio grande, com o tanque e o som da água vinda da mina a correr e a tornar mais longínquos os ruídos da rua.
Uma mesa debaixo da latada, neste momento com a videira antiga sem folhas e reduzida aos seus troncos retorcidos, muros de xisto com o musgo verde vivo a espreitar, chão com pedras roladas, amaciadas por anos de convívio com o rio Zêzere. Ouvimos as histórias da família durante o jantar e vamos para a cama a imaginar como seria a casa nos anos 1950, cheia de gente a habitar os seis quartos da parte de cima, e cheia de movimento lá em baixo, com o forno aceso e o pão a sair, fresquinho.
No dia seguinte levantamo-nos para encontrar a mesa posta, com leite, café, pão, manteiga, queijos locais, os doces feitos pela dona Maria de Jesus, as duas marmeladas, uma mais clara e outra mais escura, e ainda os esquecidos e outros bolos tradicionais da região. Vamos fazer um passeio ali perto, por um troço da Grande Rota do Zêzere que estudamos num mapa colocado numa das paredes da casa, enquanto Maria de Jesus nos conta como faz a marmelada, promete trazer mais logo uma tigelada, também típica daqui, e conversa sobre o fim da época da apanha da azeitona.
Prontos para sair, metemo-nos a caminho e atravessamos as ruas da Barroca, que faz parte da rede das Aldeias do Xisto, descendo até às margens do Zêzere. A Grande Rota percorre 370 quilómetros, mas nós vamos fazer apenas uma pequena parte — umas duas horas de percurso por um troço baptizado como Terra Mineira.
O caminho serpenteia ao longo do rio, que corre calmo em alguns sítios, depois alarga-se e agita-se, correndo mais rápido. Este caminho foi usado durante anos pelos mineiros que iam trabalhar para as minas de volfrâmio situadas mais à frente e hoje desactivadas. Os homens percorriam-no de manhã e à hora do almoço eram, muitas vezes, as mulheres que caminhavam ao longo do curso de água, para lhes levar as marmitas com comida.
Agora somos nós que, descontraídos, passeamos por ali num dia frio mas de sol aberto. E, de repente, a paisagem muda. Desaparecem as árvores e o verde e, ao nosso lado, ergue-se uma montanha de terra clara. São as escombreiras do Cabeço do Pião, pirâmides de gravilha onde se acumulam as partes não aproveitáveis dos minérios depois da lavagem e que são uma ferida na paisagem que serve de testemunho de décadas de trabalho duro dos mineiros.
É também uma parte da história desta região que passa por este caminho, pelas ruínas de uma “casa da malta” onde os mineiros ficavam a dormir, à beira-rio, e pelo carril enferrujado que corre ao lado do Zêzere. Conta-se que, na altura da guerra, com o volfrâmio que se apanhava no rio, houve quem fizesse fortuna num dia e a perdesse no seguinte.
Damos a volta e regressamos à Barroca pela outra margem, com mais obstáculos mas uma paisagem igualmente bonita. E, ao fim de 9km de passeio e já com apetite, sabe-nos bem voltar a casa, almoçar, pôr lenha na salamandra e passar uma tarde preguiçosa entre leitura de jornais e jogos de cartas, discutindo planos para voltar e fazer dos Lameirinhos base para, a pé, de bicicleta ou (em algumas partes) de canoa, partir à descoberta de mais histórias do Zêzere.
Residências artísticas
Os Lameirinhos lançaram um programa de residências artísticas baptizado como RAL – Residências Artísticas Lameirinhos, e que terá o primeiro workshop, de Fotografia, nos dias 3, 4 e 5 de Março de 2017, com o fotógrafo Duarte Belo.
Preço da residência: 250 euros para o workshop e duas noites na casa com pequeno-almoço incluído.Estão previstos quatro workshops por ano, com temas diferentes. Mais informação na página do Facebook Residências Artísticas Lameirinhos.
Reservas: ral.workshop@gmail.com
Telf: 934857710
Grande Rota do Zêzere – GRZ
Ligada ao projecto das Aldeias do Xisto, a GRZ está preparada para receber visitantes que se desloquem a pé, de bicicleta (há vários pontos de apoio para ciclistas) e canoa. Junto da Barroca podem ver-se (apenas entre Maio e Setembro) gravuras rupestres descobertas em 2003. Existem na região mapas com informação sobre os vários troços da rota, também disponível no site das Aldeias do Xisto.
Onde comer
Restaurante A Esplanada
(especialidades regionais)
Estrada Nacional, Barroca
Tel.: 275 647 407
Horário: Fecha ao sábado
Restaurante Fiado
(especialidades regionais)
Rua do Espírito Santo, 5 - Janeiro de Cima
Tel.: 272 745 024
Horário: Fecha às segundas
A Fugas esteve alojada a convite dos Lameirinhos
- Nome
- Lameirinhos
- Local
- Fundão, Barroca, Estrada Nacional 238, Lameirinhos, 1
- Telefone
- 916285593
- Website
- www.lameirinhos.pt