Fugas - restaurantes

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Também de tradição se faz a Bairrada

Por José Augusto Moreira ,

Mesmo com a chanfana a rarear na carta, no Manuel Júlio continua a mandar a tradição e a boa cozinha regional. Prove-se o negalho, o cabrito no forno ou o bacalhau à moda da casa e a satisfação está garantida.

Já não há o recinto da feira lotado de camiões à hora de almoço, mas o Manuel Júlio mantém os sabores daqueles tempos em que toda a circulação Norte-Sul se fazia pela Nacional 1. A casa é a mesma, só que agora alargada e afidalgada. Também a clientela é mais diversificada, com executivos e famílias da região, mas também muitos que, viajando entre Lisboa e Porto, aproveitam para, com uma breve saída da auto-estrada, se render aos prazeres da mesa neste restaurante de cozinha regional cuidada e saborosa. 

“Duas gerações privilegiando a cozinha regional”, assim se apresenta o restaurante que nasceu em 1930 e mantém na ementa pratos emblemáticos como bacalhau e cabrito “à Manuel Júlio”, feijoada de búzios, ensopado de pregado, mãozinha de vitela, rabo de boi com castanhas, favas com entrecosto ou o arroz de pato à antiga. Além do leitão, claro! Ou não estivéssemos na Bairrada. 

Pena que a chanfana seja agora uma raridade. Para os mais saudosos, o melhor é mesmo pedir de véspera, já que por aqui sempre foi preparada segundo a tradição beirã. Com carnes de cabra velha que vão ao forno em vinho tinto durante toda a noite. 

Muito procurado é também o arroz de lampreia (45€), que por este tempo (Fevereiro e Março) é proposto a par do sável com açorda de ovas. 

Por aí começámos em recente incursão de final de tarde, pedindo como entrada um pires de sável em escabeche (7€). Canónico, sem deslumbrar. Antes já a mesa tinha sido composta com cestinho de pão (saloio de muito boa confecção e broa), queijinho de ovelha curado (não se provou), fatias de presunto (3,50€) e salada de polvo (4,80€).

Como entradas, o menu do dia propunha ainda cogumelos salteados com bacon (4,80€), pires de carapauzinhos (3€) e o negalho à moda da Bairrada (4,80), uma especialidade regional que tem nesta casa uma das melhores mais competentes e cuidadosas execuções. Feito com o bucho, tripas e miudezas da cabra, é cozinhado como a chanfana e dele se diz que nasceu como uma invenção dos aldeões das Beiras, sufocados pela ocupação durante as invasões francesas. 

Tal como se diz das tripas no Porto, que terão começado a servir de alimento depois de todas as carnes terem sido fornecidas aos navegadores que partiam à conquista de África, é também épica a história que se conta a propósito do negalho. Com os constantes saques por parte das tropas de Napoleão, que levavam carnes e animais, houve que recorrer à imaginação e aproveitar as miudezas da cabra velha para alimentar as aldeias. 

O bucho é recheado com tripas e vísceras, bem cortadas em pedacinhos e depois fechado com uma linha, tomando aspecto de enchido. Coze longamente no forno com vinho tinto em caçoilas de barro, tal como a chanfana, e o sabor é único. Por si, já justificava o desvio até ao Manuel Júlio.

O efeito de temporada pedia a prova do sável frito (11,50€), que veio acompanhado com açorda de ovas, mas a excessiva fritura deitou irremediavelmente a perder a textura e sabor deste imponente peixe de rio. 

Seguiram-se os filetes de polvo, tenros e fritos em polme adequado, que acompanhou com arroz de berbigão, antes da chegada do afamado cabrito assado no forno (17,50€). Na assadeira, acolitado por batatinhas redondas e aromas arrebatadores. Carnes macias e saborosas e suculentas, que se desfiam e separam do osso quase deslizando, a mostrar como é competente a cozinha. Igualmente tenros, docinhos e saborosos, os grelos salteados e a mostrar como é diferente e melhor quando o campo e a horta estão ali mesmo à mão. 

Como complemento, um arroz branco com a riqueza e sabor que só o carolino tem. Pena que não fosse igualmente do nosso carolino o que foi usado com o berbigão, que se mostrava “teso” e impenetrável à saborosa calda.

Além da cozinha competente e experimentada, a qualidade e genuinidade dos produtos será um dos mais sólidos pilares deste restaurante que teima em manter também uma oferta permanente de peixes e mariscos frescos. 

Genuíno e de qualidade exemplar — como já é infelizmente raro na generalidade dos restaurantes — o queijo da serra (4€) que se saboreou à sobremesa. 

Referência ainda para a garrafeira, pelas boas e equilibradas propostas em relação ao que é produzido na região. Escolheu-se o Marquês de Marialva Arinto Reserva 2013 (11€), um branco fresco, concentrado e gastronómico, a mostrar a qualidade do trabalho que vem sendo feito na Cooperativa de Cantanhede, e o tinto Rama Reserva 2011 (14,80€), outro de qualidade e grande aptidão gastronómica, a provar que nem sempre é preciso alargar os cordões à bolsa para se ter um vinho à altura da refeição. 

E como se está na Bairrada, é lógico que no Manuel Júlio também se serve o leitão. Que não provámos, mas há quem assegure nada ficar a dever aos melhores e mais afamados da região. 

Não faltam, pois, motivos para rumar a esta casa de tradição culinária, que fica mesmo no limite do concelho da Mealhada, a meio caminho de Coimbra e mesmo à beira da estrada, tal como se dizia nos tempos em que tudo circulava pela EN1 e o restaurante de Santa Luzia era paragem obrigatória. 

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