Fugas - viagens

Adriano Miranda

Todos os caminhos - e todos os carros - vão dar a Ulan Bator

Por Maria João Lopes

Chama-se Rally da Mongólia mas não existe uma competição real entre quem participa. O objectivo é chegar, pouco importa se em primeiro ou último, e doar um carro e dinheiro a instituições de solidariedade. Em Portugal, já há várias equipas preparadas para partir, tudo pelo prazer da aventura e por uma boa causa.

Podiam ir num carro de polícia, dos bombeiros, do lixo, num reboque. Vão de ambulância e ao som de Diabo na Cruz, On the road again, de Willie Nelson e Por este rio acima de Fausto. No grupo, até vai um DJ, mas eles dizem que a música electrónica que o Roger (Rodrigo Lourenço) compõe para públicos nocturnos não combina com uma manhã de paisagens rurais do Cazaquistão. Apesar de o nome desta equipa, Agorafobic, remeter para o medo de espaços abertos, eles vão atravessar meio mundo, cerca de 15 mil quilómetros, até à capital da Mongólia, onde, para além de dinheiro, vão doar a ambulância a instituições de solidariedade. 

Mais do que uma viagem, o Rally da Mongólia - promovido pela The League of Adventurists International Limited - é uma "experiência". "Não é apenas um passeio turístico, nem um simples trajecto de uma ponta à outra", diz André Mota, arquitecto de 34 anos a viver em Barcelona, da equipa de Coimbra Agorafobic. É uma aventura. A opinião é unânime entre os portugueses que vão participar nesta edição, com arranque a 24 de Julho de Londres, Milão e Barcelona. As mais de 350 equipas encontram-se todas em Praga numa "festa de arromba" e cerca de um mês depois deverão chegar a Ulan Bator.

Nesta odisseia - na qual cada equipa, para além do carro, faz uma doação de cerca de 1200 euros a organizações não governamentais (ONG) associadas ao rally - os participantes desenrascam-se sozinhos. Por saberem que nada são facilidades é que uma das equipas se chama Fátima is Our Girlfriend. Eles queriam um símbolo de Portugal no nome e, se Nossa Senhora os proteger até lá, melhor. 

Regras do jogo: para além do donativo, é preciso pagar 800 euros de inscrição. O carro deve ser citadino de cilindrada inferior a 1200 cm3, com menos de 10 anos. Também se pode ir numa mota até 125 cm3 - já houve italianos que fizeram a viagem de Vespa (www.theitalianwheels.com) - ou num carro de serviço público. 

Traçar a rota (cada equipa escolhe a sua), arranjar patrocínios e dinamizar festas para angariar fundos - algumas equipas estimam que o custo da viagem oscile entre os 12 e os 14 mil euros - e fazer-se à estrada, dormindo onde calhar, tornam estas férias contra-indicadas para quem quer descanso. 

Ricardo Trindade, 32 anos, arquitecto e actor em Lisboa, acredita que esta preparação também faz parte da experiência: "Deu-nos muito mais trabalho e chatices do que quaisquer outras férias, mas também sentimos que é mais útil", diz este membro da equipa Agorafobic, que optou por uma ambulância - uma Ford Transit de 1990 - conseguida num quartel de Sever do Vouga e escolheu a organização Nadieshda, que apoia crianças órfãs nos países pertencentes à antiga União Soviética, para fazer a doação. 

Uma estranha missão

Mas o que leva um grupo de amigos a andar um mês na estrada até à Mongólia? "Será uma mistura de loucura, de desafio, de adrenalina, de fazer memórias. Não é turismo, fazer 500 ou 600 quilómetros por dia não é propriamente aprazível. É uma estranha missão, uma porta para o desconhecido...", diz Gonçalo Pinto, engenheiro informático de 32 anos a viver em Barcelona, também da Agorafobic. 

A motivação de Nuno Duarte, engenheiro mecânico de 30 anos, de Matosinhos, foi "a aventura, o gosto por automóveis, e a vertente solidária". "Vamos num Fiat Punto de 2001. Levamos roupa e frigoríficos pequenos para dar, é uma viagem por uma causa. Um desafio a nós próprios, uma experiência humana e uma lição de vida, que não se repete nem se esquece", diz o membro da equipa Fátima is Our Girlfriend. Vão passar por 15 países: Portugal, Espanha, França, Suíça, Alemanha, República Checa, Polónia, Eslováquia, Hungria, Roménia, Moldávia, Ucrânia, Rússia, Cazaquistão, Mongólia.

Outra equipa, a Cruzada Mongol, tem o apoio da ONG Mundo a Sorrir, que trabalha no campo da saúde oral. Com dois dentistas a bordo da Renault Kangoo, até escovas e pastas dos dentes vão levar. Fica tudo lá. Eles voltam de avião e de mãos vazias.

Francisco Góis, 25 anos, do Funchal, acabou o curso de Medicina Dentária em Fevereiro e queria umas férias diferentes: "Sempre gostei deste conceito de resistência e não de velocidade, aqui não interessa quem chega primeiro, interessa é chegar. Se não chegarmos, o dinheiro irá sempre para instituições da Mongólia", ressalva. 

A namorada, Margarida Sampaio Fernandes, 25 anos, do Porto, também dentista, diz que o que a motiva é ser uma viagem solidária com "aventura acoplada". "Gosto de não ter planos, do inesperado". No mesmo carro vai Ana Luísa Coelho, de 29 anos. A engenheira civil do Porto sabe que viverá situações que "de certeza não surgiriam" se tivesse optado por "umas férias nas Caraíbas". Vão fazer doações à Mercy Corps, que ajuda os povos nómadas rurais do país "a viverem de uma forma independente e auto-sustentável". 

Quem quer um mundo menos aborrecido?

A história deste rally remonta a 2001, quando Tom Morgan e um amigo compraram um carro em segunda mão na República Checa e tentaram conduzi-lo até à Mongólia, sem qualquer plano de viagem. Chegaram apenas à fronteira iraniana, mas ficaram entusiasmados e, em 2004, acontecia a primeira edição da "corrida". "O Tom acredita que é preciso mais aventura num mundo que se está a tornar demasiado seguro e previsível", diz a organização por e-mail, sublinhando também a vertente solidária. Desde 2004 até 2009, já foram doados cerca de um milhão e 360 mil euros. 

Alexandre Gomes, 28 anos, engenheiro civil no Porto, da equipa Confusi, também vai numa Renault Kangoo, com Luís Cortes, Tiago Coelho, e com a italiana Luísa Fusi, a quem se deve, em parte, o nome do projecto: "Chama-se Confusi porque vamos com a Fusi e porque, em italiano, significa confusos, que é como vamos estar para chegar à Mongólia", brinca, acrescentando que é a primeira vez que vão à Mongólia, Rússia, Cazaquistão e Ucrânia. 

Esta é uma prova, nas palavras da organização, para quem quer um mundo menos aborrecido. Apesar de estar consciente que o rally não será "divertido do princípio ao fim", Gonçalo Pinto tem outras expectativas: "O bom é que não acabará em Ulan Bator, vamos trazer assunto para horas de conversas".

Miguel Silva, advogado estagiário de 26 anos, de Santa Maria da Feira, que o diga. Foi na primeira equipa portuguesa que participou no rally, no ano passado, e diz que, quando começa a contar as peripécias da viagem (www.wetheriders.com), está "um dia inteiro a falar": teve acidentes, quase voou dentro da tenda num planalto no Cazaquistão, onde dormiu ao lado de cavalos selvagens, comeu uma cabra com pastores sob um céu estrelado na Mongólia, passou mais de uma semana sem tomar banho, e esteve preso quatro dias no norte da Mongólia por problemas com a documentação do carro. 

Tudo pode acontecer: "As advertências a que tivemos que dizer "sim, aceito, sou consciente" no momento da inscrição são assustadoras. Eram tantas que nem li tudo. A organização não dá qualquer ajuda no terreno. O maior risco são as avarias mecânicas", alerta Gonçalo Pinto. Mas nem isso os demoverá: "Se tivermos uma avaria sem arranjo possível, ou se compra um veículo substituto na sucata ou vamos à boleia de outro participante, mas a Ulan Bator temos que chegar". 

Nem tudo são agruras, há muitos relatos da "hospitalidade dos povos": "É difícil andar pelo Irão sem estar a ser permanentemente ajudado pelos locais, que convidam a comer e dormir nas suas casas. São conhecidas histórias de mecânicos a trabalhar horas a fio sem pedir compensação. E há quem atravesse cidades inteiras a buzinar e de piscas acesos para colocar de novo o "estrangeiro" na rota pretendida, ao vê-lo completamente perdido", conta. 

Esta equipa, Agorafobic, pretende ir pelo sul, atravessando a Turquia e o Irão, embora esta rota seja mais comprida. "Faremos sempre uma passagem pela Rússia antes de entrar na Mongólia. Vai ser um percurso cheio de curiosidades entre os Balcãs e o deserto de Gobi", acrescenta Gonçalo Pinto, precisando que querem fazer "uns desvios turísticos" que incluem a Capadócia, Baikonur, e a Porta do Inferno, no Turquemenistão.

Pela mesma rota, vão Tiago Garrido e Victor Romero, dois dentistas da equipa Operação Mongol, que se limitaram a comprar aos Bombeiros Voluntários de Barcelinhos, por 150 euros, uma ambulância marca Peugeot dos anos 1980. Nada de blogue, de patrocínios. "Vou pela aventura. Não preparei nada e, se não for para ultrapassar os problemas, mais vale ir de avião", diz Tiago Garrido, de 34 anos, que vive no Porto. 

Ainda que o imprevisto seja obrigatório, Jorge Pinho, engenheiro mecânico de 25 anos, do Porto, da Cruzada Mongol, seguiu algumas dicas úteis: tratar dos vistos, levar as vacinas necessárias, fazer um seguro de viagem, escolher bem o carro e meter nele material de campismo, enlatados, repelentes, e medicamentos para a diarreia e antibióticos. 

Mas imprescindível é mesmo bom humor e imaginação. Os membros da Agorafobic até já pensaram levar na ambulância uma guitarra eléctrica e um amplificador. Haverá música no deserto.

--%>