Fugas - viagens

Paulo Ricca

Persistência, a pé chega-se a qualquer lado

Por Patrícia Carvalho

Uma estreia nas caminhadas com mais de dois dígitos na quilometragem no Trilho de Aquilino, em Paredes de Coura. Não foi tarefa fácil - e, no auge do desespero, rebaptizaram-se as descidas técnicas, que de agora em diante são as descidas "difíceis como o caraças". Falou-se com ovelhas, sonhou-se com batatas fritas feitas de gelo e só não se chegou a ver javalis.
São 8h45 e o mundo em redor da igreja de Romarigães, em Paredes de Coura, está submerso num branco silencioso. A geada cobre todos os campos e caminhos de terra e não se vê vivalma. Ao pé da igreja, a acusar a idade, a Quinta de Nossa Senhora do Amparo parece pedir que façam algo por ela. Pelo menos que lhe pintem o muro, para que não sejam tão visíveis os sinais da degradação.
Afinal, a quinta é famosa, ainda que possam não a conhecer por este nome. É ela a Casa Grande de Romarigães, imortalizada no romance homónimo de Aquilino Ribeiro. E é por causa dele que aqui estamos. Mais ou menos. Enquanto foi dono da casa, pôde percorrer a pé os campos e caminhos em redor. Nós vamos fazer a mesmo. Ou pelo menos tentar.
 
Não vamos sozinhos e, pouco depois das 9h00, quando o sino da igreja já avisara a chegada (e partida) da hora certa, percebemos que vamos com muito mais gente do que aquilo que sonháramos.
O grupo que acompanha os guias da associação Amigos da Montanha é composto por mais de 60 pessoas. Saltaram todos da cama, indiferentes à temperatura de -3,5 graus que o termómetro do carro garante fazer lá fora, e estão desejosos para dar início à caminhada de 17 quilómetros que constitui o Trilho de Aquilino. Ou melhor, o trilho é composto por apenas 14 quilómetros, mas a associação juntou-lhe mais uns três, para animar a festa.
 
João Coelho, um dos responsáveis dos Amigos da Montanha, trepa para o muro que ladeia a igreja e explica um pouco do que nos espera. Vamos começar por ali, pela Casa Grande de Romarigães e depois embrenharmo-nos nos campos em redor. Há uma subida acentuada, até ao Penedo do Macaco, e, logo a seguir, uma descida “complicada e muito técnica”, segundo diz, que nos deixa com a pulga atrás da orelha. 
 
Mas o ar gelado não é amigo de muitas palavras e os pés a bater no chão anunciam que está mais do que na hora de seguir caminho, até porque o sol, que ainda não conseguira ultrapassar as copas das árvores, começa a bater no muro da Casa Grande e queremos ir até lá depressa e senti-lo um
bocadinho na pele, antes de nos perdermos em subidas e descidas pelo meio do monte.
João anunciara que o engenheiro Virgílio, um membro habitual nos passeios da associação e espécie de enciclopédia do grupo, iria fazer uma breve apresentação da Casa Grande. Prometeu que seria breve e vários participantes, sabedores do gosto pela palavra do colega, riem-se e brincam com o tempo que se irá gastar a ouvir o engenheiro. Ele até não demora muito. 
 
Enquanto as pessoas procuram um espaço ao sol, no caminho vazio em frente ao portão de acesso à quinta, a sua voz forte refere-se ao brasão em pedra sobre o portão de ferro, à construção setecentista, ao espigueiro “com 30 metros de comprimento” que pertenceu à casa e do qual apenas resta a base, e à Capela do Amparo, com o seu próprio brasão, diferente do da quinta, apesar de fazer parte do complexo.
 
Já chega, está na hora de partir e é quase incompreensível o entusiasmo com que toda a gente se lança ao caminho. Está muito frio e vamos andar a pé durante mais de cinco horas, sabe-se lá por que subidas e descidas. Eu – assumo – sou uma estreante em caminhadas com mais de dois dígitos na quilometragem e não sei muito bem como é que isto vai correr.

As subidas...
 
Regressamos à igreja, onde uma placa de sinalização em madeira indica que o Trilho de Aquilino começa mesmo ali, por um caminho de pedra, a subir, à direita, de onde vem o som da água a correr. A ligeira inclinação não nos assusta por aí além e, pouco depois, saímos do caminho ladeado por muros baixos e atravessamos a estrada para subirmos, outra vez, por um caminho de pedra.
 
Há muitos cães por ali, presos por trás dos muros das casas, mas os seus latidos chegam de todos os lados e tornam-se na banda sonora do início da caminhada. Hão-de seguir-nos durante grande parte do caminho, mais ou menos longínquos, mas nunca com a intensidade que sentimos neste momento.
 
Pouco depois de deixarmos as casas para trás, e ao fim de mais uma pequena subida no caminho, cruzamo-nos com os moinhos de pedra de Paço de Cabanas. E é aí que percebemos que aquela gente que nos acompanha não está lá muito interessada em apreciar a paisagem. Eles gostam mesmo é de andar. Ninguém pára para observar as construções em pedra, semi-escondidas entre as árvores. Passamos por elas em passo acelerado como se andar fosse um desígnio em si mesmo. No que nos
fomos meter, pensamos, mas já não há nada a fazer... 
 
Lá nos convencemos que deve haver uma recompensa qualquer nisto, alguma revelação que há-de surgir mais à frente, qualquer coisa que justifique a dor das pernas, a respiração pesada de quem já não pode mais, a água a escorrer pelas costas, apesar do vento gelado que nos fustiga a cara. Tudo sintomas que havemos de sentir antes de a manhã terminar.
 
Concentramo-nos no caminho e apreciamos cada centímetro em que os raios de sol conseguem atravessar a folhagem e tocar-nos o corpo. O céu não tem uma única nuvem e está pintado por um azul cru e luminoso. Sob os nossos pés há tapetes de folhas e, mais à frente, galhos que se cruzam no caminho e nos obrigam a estar atentos, para evitar tropeções. Nos campos que ainda não sentiram o sol está tudo branco e a geada brilha como se milhares de minúsculos diamantes tivessem sido espalhados pelo chão. 
 
Um ou outro campo de um verde fresco, que se avista ao longe, já batido pelo sol, faz-nos pensar que a paisagem é bonita, suave e doce como o Minho sabe ser, com a torre alta de uma igreja e as paredes brancas das casas a pontuarem o espaço. Não é uma paisagem deslumbrante, de cortar a respiração (para isso, já basta cada uma das subidas que temos de fazer), mas há uma alegria espontânea no brilho da geada, no calcar das folhas geladas do chão, no encontrar, de novo, a estrada, depois de uma milagrosa descida suave e em olharmos para trás, para o amontoado das árvores, e pensarmos, foi dali que viemos.
 
Romarigães ficou para trás e estamos na freguesia de Agualonga. Abandonámos as árvores já muito perto da Casa do Outeiro, uma habitação senhorial dos finais do século XVIII, que pertence à Câmara de Paredes de Coura e que está a necessitar de reabilitação urgente. Paramos ali, para uns momentos de descanso e para trincar alguma da comida que carregamos em mochilas, às costas. Pouco depois, um e depois outro grupo de ovelhas corre, apressado, em frente à fachada comprida da mansão degradada. Anunciam a sua passagem assustadiça com o tinir das campainhas presas nos pescoços engordados pela lã espessa. Deixamo-las passar e fazemo-nos de novo ao caminho. Não sabemos quantos quilómetros já percorremos. 
 
O caminho traçado no mapa que marca o trilho mostra que andámos ainda muito pouco — nem um quinto sequer do percurso. As pessoas caminham em pequenos grupos. Sigo junto ao grupo da frente. Quando as subidas se tornam mais acentuadas começo a ouvir o som incomodativo da minha própria respiração. Fico feliz por não estar ninguém ao meu lado a ver as caretas de esforço que sei estar a fazer. 
 
Mas, mal o trilho se torna mais plano ou desce, deixo de respirar com esforço e ultrapasso alguns caminhantes. Procuro não mudar muito de ritmo e começo a pensar que vou aguentar, que isto de caminhar quilómetros e quilómetros até se faz bem. Não fossem as malditas subidas.
Há muitas pessoas a caminhar aos pares e à medida que me cruzo com elas apanho farrapos de conversas. Fala-se dos filhos que não gostam de ler. Da opinião de economistas famosos sobre a venda da dívida pública. Do atraso numa obra cujo arranque fora prometido para Janeiro. De uma pessoa honesta que devolveu uma carteira ao dono, com os 45 euros que estavam lá dentro intactos.
 
O caminho começa de novo a subir. E, desta vez, parece que não quer parar. Sobe, sobe, sobe. Sobe durante demasiado tempo. Uma mulher de cabelo muito curto passa por mim a correr. Naquele instante, acho que a odeio. Eu ali, a arquejar, a pensar que o raio da subida nunca mais tem fim, a rezar secretamente para que seja aquele o acesso ao tal Penedo do Macaco, marcado como a maior subida do percurso (uns escassos 489 metros), e a saber que não é — e ela a correr, como se nada fosse. E não se fica por aqui.
 
Dali a pouco, volta para trás, para que ninguém se engane numa bifurcação mais abaixo, já que a sinalização, ao longo do trilho, não é famosa. E, minutos depois, volta a passar por mim, de passada confiante, a perder-se em mais uma curva.
 
Quando finalmente, ao fim de uma eternidade, a subida termina, começamos de novo a descer e paramos numa pequena clareira. Mais umas quantas peças de fruta, sumos e sandes saltam das mochilas. Há quem se sente no chão. Os casacos já desapareceram das costas de muitas pessoas e estão agora amarrados às cinturas. 
 
Mas o dia lindo de Inverno não aquece e, ao fim de alguns minutos de paragem, começa a sentir-se o frio de novo. As pessoas não recuperam do cansaço todas da mesma maneira e, quando recomeço a andar, há quem já tenha partido há um ou dois minutos e quem se deixe ficar para trás mais um bocado.
 
Passa pouco das 11h30 e começo a perceber o entusiasmo do caminhar pelo caminhar. É quase como uma espécie de combate corpo a corpo. Só que connosco próprios. Não queremos desistir, não queremos ficar para trás, não queremos ser os últimos do grupo. Encontrar o nosso próprio ritmo é conhecer-nos um pouco melhor. 
 
Cada etapa mais difícil que ultrapassamos é uma vitória guardada como um tesouro. Estou a pensar nisto e em como as pernas não me doem tanto como pensava (apesar de sentir uma dor na virilha direita que é uma novidade) quando ouço a voz já familiar do engenheiro Virgílio.
“O que é que este solo lhe diz, em termos geológicos?”, pergunta ele a um dos caminhantes. E logo começa em mais uma das várias explicações que tem vindo a dar. Adianto o passo mais um pouco e deixo de o ouvir.

... e as descidas
 
Chegamos de novo à estrada e avistamo-lo. O Penedo do Macaco. Não há que enganar. Do outro lado da rua que separa as freguesias de Agualonga da Cunha há uma subida íngreme coroada por um conjunto de pedras enormes e arredondadas. Enquanto cruzo a estrada de asfalto vejo que, em fila indiana, a serpentear encosta acima, já há muita gente. Não sei como vou conseguir subir aquilo, mas sei que tenho de o fazer. E sei que não quero parar. Se parar, vou querer sentar-me. Se me sentar não vou ter coragem para subir.
 
E tenho de subir. Respiro fundo e digo a mim própria, vamos a isso. Quase não se consegue tirar os olhos do chão, porque o caminho de terra está partido por sulcos profundos deixados pelas últimas chuvas. Apesar de o caminho estar totalmente exposto ao sol, há nichos de gelo, como pequenas estalagmites a libertar-se do chão.
 
Ou batatas fritas. Também parecem batata fritas de gelo. Primeiro daquelas mais grossas, partidas grosseiramente, em casa. Outras são mais finas. Fininhas, fininhas. Batata-palha. Não tenho muita fome ou terei? Palavra que o gelo se parece mesmo com batatas fritas. O caminho não é interminável mas é duro. Caminho muito, muito devagar. Literalmente, colocando um pé à frente do outro. Quase a pedir licença para caminhar. Mas sem parar.
 
A meio do percurso olho para trás e vejo pessoas ainda a sair do meio da floresta, do outro lado da estrada. Fico grata por não ser nenhuma delas, por não estar ainda na base daquela subida. Vou a meio e o resto do caminho é feito ao mesmo ritmo. Quase parada.
Lá em cima, procuro um espaço livre para me sentar e fico a contemplar a paisagem enquanto deixo que a minha respiração retome um ritmo normal. À minha esquerda, ergue-se a Serra d’Arga. As eólicas bordejam o horizonte e, à direita fica toda a zona da paisagem protegida do Corno do Bico.
 
Enquanto aguardamos pela chegada de mais alguns elementos do grupo, para que ninguém fique demasiado para trás, recordo-me das palavras de João Coelho, junto à igreja de Romarigães, e das dificuldades anunciadas da descida que deve estar mesmo a aparecer.
Quando, finalmente, retomamos o caminho (alguns já partiram há um bom bocado), deparamo-nos com uma descida mais acentuada do que as anteriores, com algumas pedras soltas, mas nada de extraordinário. Era esta a descida técnica, penso, desconfiada? Mas a verdade é que depois desta pequena descida o trilho torna-se mais fácil.
 
Há árvores com os troncos cobertos de musgo e o mesmo manto verde tapa as pedras dos muros que surgem de vez em quando a ladear o caminho. Apesar de haver muitos (demasiados) eucaliptos a pontuar o arvoredo, o chão está coberto das agulhas do pinheiro e o cheiro da caruma, guardado na minha memória olfactiva desde que ia para a escola pelo meio de uma pequena bouça, arranca-me um sorriso.
 
E então as duas mulheres que caminham uns metros à minha frente viram de forma abrupta à esquerda e desaparecem do meu campo de visão. Chego à curva e encontro a tal descida técnica. É um caminho parecido com o da subida para o Penedo do Macaco. Mas a descer e mais curto. João Coelho aproxima-se e explica que, há uma semana, quando os guias da associação foram experimentar o trilho, estava a chover e a descida íngreme, agora seca, era um rio de lama. Ainda bem que não está a chover, penso, apesar das dezenas de pedrinhas soltas que atapetam a terra não apresentarem grande segurança.
 
A descida é mesmo técnica – palavra simpática para definir difícil como o caraças. É preciso seguir muito devagar, ter muito cuidado para escolher o sítio onde se vai pousar o pé e estar pronto para agitar os braços no ar em busca de equilíbrio quando (porque isso vai acontecer) algumas pedras resvalam debaixo dos nossos pés. No final da descida, quem já superou a prova olha, ávido, para cima, de máquinas fotográficas apontadas, a ver quem vai ser o primeiro a cair por ali abaixo.
 
Sigo atrás do João, que funciona como muleta. Se me sinto menos segura ou a escorregar, apoio-me no seu ombro ou na mochila que leva às costas. É a minha salvação e chego cá abaixo sem cair. Eu e toda a gente. Um a um, juntamo-nos na base da encosta e olhamos, desdenhosos para ela. Não nos ganhaste.
 
A partir daqui, o caminho suaviza-se. Sabemos que o mais difícil do trilho já ficou para trás e que o que há apenas para vencer agora é o cansaço e as dores nas pernas. O cheiro da caruma retorna, desta vez associado à terra húmida. Cruzamos de novo a estrada e entramos num carreiro estreito, ladeado por muros de campos de cultivo e casas. Ouvimos que um novo rebanho se aproxima.
As ovelhas, acompanhadas por uma série de crias, ficam intrigadas com a nossa presença. Quando se aproximam de mim param e ficam a olhar, apesar de eu já me ter encostado ao muro libertando a passagem. Rio-me e digo-lhes (é verdade, eu falei com elas) “podem passar”, acompanhando as palavras com um gesto do braço. E juro que elas perceberam, porque apressaram-se a retomar caminho, passando ao meu lado, saltitantes e nervosas.
 
Aqui já não há geada. Há apenas o verde dos campos, poças de água e árvores com folhas castanhas, queimadas pelo gelo. Aproximamo-nos rapidamente da igreja da Cunha. É lá, no adro, nos bancos e mesas de pedra, que cada um abre a mochila para retirar o almoço.
 
A carrinha de apoio aos caminhantes veio ter connosco, tem a mala aberta e já saltaram de lá caixas com rissóis, garrafas de vinho, um pudim ainda na forma. Uma rapariga chega com uma feijoada e mousse de chocolate. Há café quentinho a sair de uma garrafa termos.
Para trás ficou quase todo o caminho. Faltarão uns escassos cinco quilómetros, parte dos quais repetindo o percurso que já fizemos. Chegaremos pelo caminho por onde partimos.
 
Vamos, de novo, ver os moinhos do Paço de Cabanas e descer até à igreja de Romarigães. Infelizmente, não chegamos ao fim. Não porque as pernas já não aguentassem, mas porque a caminhada demorou mais do que o tempo previsto e havia compromissos com hora marcada no Porto. 
 
Despedimo-nos do resto do grupo e regressamos a Romarigães na carrinha da associação. Gostávamos de ter chegado ao fim. Até porque, para nos atazanar, disseram que íamos perder a oportunidade de avistar javalis, um pouco mais à frente. Os javalis escondem-se, fogem de nós — sabemos disso —, mas ficamos a remoer que, se calhar, perdemos mesmo essa oportunidade. E então, viram-nos?
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