Foi a fugir do amor pré-concebido que percebemos que se pode amar de tantas formas. Em Monsaraz, apaixonamo-nos. Por gente de coração cheio, pelo mais puro dos silêncios, pelo que se deixou para trás, pela comida simples e saborosa.
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Foi a fugir do amor pré-concebido que percebemos que se pode amar de tantas formas. Em Monsaraz, apaixonamo-nos. Por gente de coração cheio, pelo mais puro dos silêncios, pelo que se deixou para trás, pela comida simples e saborosa.
Foi quando aquele e-mail aterrou no correio electrónico que começou esta viagem. Assunto: "Já comprou a prenda ideal para o Dia dos Namorados?". Corações acolchoados, fundo rosa claro. Que tal um perfume fresco para tentar a Primavera a ficar? Um relógio que pesa na carteira, mas não no pulso? Ou, mais simples ainda, um ramo de flores, para ele ou para ela? No dia seguinte, fizemo-nos à estrada.
Duas horas e meia de alcatrão simétrico para, depois, redescobrir um Alentejo mergulhado no Alqueva. E chegar a Monsaraz, o lugar onde as emoções não têm datas marcadas, mas obrigam a andar de mãos dadas. De mãos dadas entre homens e entre eles e o mundo. É ali que se descobre que o amor é de tantas formas porque se ama um pouco de tudo: do que a terra dá ao que a água levou.
Há um tratador de cavalos que se apaixonou pelos bichos. E os leva a passear ao luar para ver estrelas. A mulher que dedicou os últimos seis anos a uma cozinha, de tal forma que os clientes dispensam os dentes para provar os pratos. Um oleiro de mãos grandes que esculpe, com minúcia, alentejanas voluptuosas. Vende-as nas lojas de um homem que era professor em Lisboa, mas quis voltar a casa. E uma família que também se foi afastando do Alentejo profundo, mas agora recebe quem queira vir visitá-lo e respeitá-lo.
Monsaraz é um mundo pequeno, na forma. Uma viagem no tempo, decorada a xisto e cal. Vivem 50 pessoas ali, contando os que partiram, os que ficaram e os que voltaram. As casas são à medida do lugar. Pequenas, quase sufocadas pelos tectos baixos. Todas bem tratadas, como se, naturalmente, houvesse um compromisso para lhes cuidar do físico, sem exagerar.
Telhados certos, paredes brancas, janelas riscadas de amarelo e azul. Uma igreja aqui e ali. E, para completar o quadro, há animais por todo o lado. Porque ali há espaço para as cabras se alimentarem sem restrições e os cavalos correrem em liberdade. No alto, o castelo faz-lhes sombra, ao final da tarde. Lá em cima, uma varanda sobre o Alqueva, um grande lago filho de uma barragem no Guadiana. E, por dentro da muralha, a imponência das torres e dos arcos medievais.
Entre a terra e o céu
A vila é uma das mais antigas povoações portuguesas, a Sul do Tejo, com raízes pré-históricas. Um passado que palpita porque há, por ali, perto de centena e meia de monumentos megalíticos, aos quais, não fosse pelo respeito, se pode chegar com os dedos. Menires, cromeleques, antas. É por eles que passeia Apolo, o cavalo meio Lusitano, carregando-nos às costas.
"Não estará cansado?", perguntamos, depois de uma hora na charrete, uma das atracções da região. "Já deve estar. Daqui a pouco come, descansa e depois há-de andar por aqui outra vez à noite", diz Filipe, o tratador de cavalos, 14 no total, alguns seus. "Sabem que, em grego, o meu nome significa o amigo dos cavalos? É disto que vivo. De tratar deles", diz.
Foi-lhes ganhando amor. Primeiro, na competição. Mas ficava muito caro. Agora, a 50 euros por hora, leva os turistas pela rota do megalítico, de dia e de noite, falando com os bichos numa linguagem própria, que varia entre o incitamento e um estalido que lhe sai algures da luta entre o palato e as gengivas.
Horas depois, Apolo estaria ali de novo, para apreciar a luz da lua cheia e as estrelas, porque, ali, o céu parece ser mais abençoado. E, por isso, a zona do Alqueva passou a ser, recentemente, a primeira reserva portuguesa de dark sky, para os seguidores de observação astronómica nocturna.
De dia, numa hora e meia, é da terra e não do céu que vem uma certa luz. A da planície decorada pelas flores selvagens e os ramos de oliveira, pesados de azeitonas. Dá vontade de comer uma logo ali, indiferente ao processo de gestação que as leva até ao prato. Deste aparente nada, vão surgindo pedaços de História. Os monumentos megalíticos parecem estar perdidos, mas, quando nos aproximamos, tudo faz algum sentido.
Os menires e as antas são já parte do quadro. É fácil imaginar as muitas vezes em que foram tocados, utilizados como adereços de circunstância, festiva ou privada, ou chamados de propriedade pelos habitantes locais. O cromeleque do Xerez é o único que não permaneceu oficialmente intocado. Com a construção da barragem do Alqueva, foi mudado de lugar, para junto do Convento da Orada, onde esteve alojada uma comunidade de monges agostinhos descalços, nos finais do século XVII.
Naquele dia, o convento mais parecia papel de cenário. Parado no tempo, desabitado. Foi moradia de algumas famílias, até ao século passado. Depois passou a fundação privada, que o transformou num espaço de conferências. Antes de as ordens religiosas serem extintas e os monges expulsos, era a herdade que fica nas suas costas, a Horta da Coutada, que servia de zona apoio aos agostinhos descalços.
Deixavam-se ficar pelas suas nascentes, terreno fértil e estábulos. Para depois regressarem às suas celas, que viraram quartos, com a recuperação do convento. A família que ficou com a herdade é de Moura, a 40 quilómetros de Monsaraz. Há 15 anos, já com alguns membros fugidos do Alentejo, quiseram ter ali uma segunda casa. Começou assim uma aventura que hoje se transformou em turismo rural. O legado não se perdeu, da recuperação de uma nora ancestral à decoração dos espaços com materiais da região e utensílios rurais (ver texto nestas páginas). c
Em Fevereiro, ainda é dia quando a noite cai na vila. Apetece ficar em silêncio. E, por isso, naqueles dias junto ao Alqueva, decidimos abolir ruídos convencionais. Não ligámos a televisão, não tínhamos jornais e, talvez por respeito, o telemóvel ficou sem bateria. Concluímos, sem concluir quase nada, que o Alentejo serve para isto. Para se estar.
Silêncio de mão cheia
Saímos da herdade para jantar. Esperava-nos Isabel, no Sabores de Monsaraz, que, das janelas, dá de caras com o grande lago e, ao fundo, com as luzes da vila de Mourão. Desde que abriu as portas, a cozinha do restaurante pertence àquela mulher, natural dali mesmo, fluente na gastronomia local. Os donos já mudaram. Só Isabel lá continua, fazendo o papel de cozinheira e de mestre-de-cerimónias. Ganhou amor àquilo, deixou-se ficar. (ver texto nestas páginas).
Não foi a única. De Monsaraz, muitos partiram. E, por isso, o silêncio toma conta daquele lugar, quando a noite se aconchega. Por aquela hora, enquanto regressávamos a casa, Filipe e Apolo estariam a desafiar as temperaturas baixas. Tiveram azar. A neblina encobria o céu. De lua cheia e estrelas, nada. Sobrou espaço para o misticismo da vila, com o castelo medieval no alto, imponente, como que a dizer-nos para falarmos baixo.
Foi assim que adormecemos, sem televisão, sem jornais e sem telemóvel. O sono é diferente no meio de tanta calma. De início, parece que teima em não vir. E, depois, quando vem, fica. De manhã, sai-se do quarto e está tudo igual. O Convento da Orada imóvel, com a fachada rasgada pelo cromeleque do Xerez. E o silêncio. Sempre um precioso silêncio.
Mais à frente, já na estrada, depois de passar pelo Telheiro, onde eram fabricadas, pela mão do homem, as telhas que cobriam as casas, entra-se em São Pedro do Corval. É ali que nasce muito do artesanato alentejano e foi ali que encontrámos Paulo. Um oleiro de 40 anos, que se estreou na profissão quando tinha apenas 13. Naquele dia, deixou-nos observá-lo.
É um homem alto, de mãos grandes, enormes, vermelhas de trabalhar o barro. Quando a roda começa a girar, entra numa dança com aquela massa, que amolece às suas ordens. "O que faz um bom oleiro é conseguir fazer várias peças com a mesma dimensão, todas iguais, a olho. É preciso ter sensibilidade para isto", garante Amílcar, o dono da Mufla, uma das 20 olarias da zona, antigo professor em Lisboa, que regressou a casa há 11 anos.
O barro dança
Depois de nos sentarmos no lugar de Paulo, percebemos que o talento não está só na métrica das peças. Está em tudo o que faz. Não vamos para além de duas tentativas falhadas para conceber um simples prato. O resto do tempo é dedicado a conhecer a olaria e, pelo canto do olho, a espreitar aquele oleiro e a forma como dança com o barro.
Em pouco mais de cinco minutos, já tem duas canecas prontas para ir ao forno e, ainda antes de o deixarmos, vemo-lo dar vida a uma voluptuosa alentejana, torneada para se servir azeite e vinagre. É um dos pontos altos nas duas lojas de Amílcar, em São Pedro do Corval e Monsaraz. Com a crise, os turistas têm procurado "peças mais pequenas, só para recordação", lamenta. Mas aquelas alentejanas voluptuosas, de charme inquestionável, nunca desaparecerão.
Ainda na olaria, onde o antigo professor retoma o gosto de ensinar com workhops de duas horas que variam entre oito e dez euros por pessoa, aprendemos a compreender o artesanato local. As cores, as linhas e as formas. O que passam até chegar às nossas mãos, já pratos feitos, jarras e tigelas. Há tempo para pintá-los, dentro das nossas capacidades.
E, no final, a promessa de que aquele nosso artesanato nos será enviado para casa, com a Mufla impressa no fundo e nas memórias. Porque as experiências são para isso. Para serem experimentadas. E Amílcar quer experimentar mais. Faz testes com novos materiais, deixa-os a repousar num forno improvisado, que pode chegar aos 1200 graus. Explica que "não se sabe o que sai dali". "Basta um milésimo de segundo de diferença e tudo muda". Tudo muda.
E as pedras caem
Monsaraz fica por cima do ombro, à medida que encontramos o caminho para casa. Vai-se fazendo sentir a civilização, com a planície de flores selvagens e oliveiras a perder terreno para casas menos sufocadas. Mas, mesmo de saída, somos obrigados a parar. Uma placa, no meio da estrada, indica que há por ali mais um monumento megalítico. E, de repente, lembramo-nos do e-mail que nos fez chegar aqui. Viramos à direita, em direcção à rocha dos namorados.
É de granito, com perto de dois metros de altura. Filipe, o amigo dos cavalos, já nos tinha falado desta lenda. Diz-se que os casais que conseguirem atirar uma pedra e mantê-la no cimo rocha, vão casar. Os que não conseguirem talvez fiquem amigos depois de se separarem. E, por isso, acabou por se tornar ponto de passagem para muitos namorados.
Podíamos ter tentado. Não o fizemos, por muito que a curiosidade nos quisesse tentar. Seguimos caminho, deixando para trás um casal junto à rocha, que ainda não tinha decidido qual a melhor pedra para atirar. E deixámos Monsaraz repousar em silêncio, como a encontrámos. Para voltar e encontrar assim, parada na beleza. Sempre que possível, de mãos dadas.
Horta da Coutada: A casa das pérolas escondidas
Entramos e o pátio andaluz dá-nos as boas-vindas. É um recinto circular, que acolhe uma casa, dividida por três facetas, que antes eram os estábulos, os celeiros e a adega dos agostinhos descalços que viviam ali em frente, no Convento da Orada. A herdade ganhou o nome de horta, Horta da Coutada, porque das suas nascentes e terra fértil nasciam os alimentos dos monges.
Hoje está nas mãos de uma família de Moura, que não resistiu à paixão por aquele lugar e voltou. Primeiro, como fuga de fim-de-semana. Depois, começaram a chegar os amigos. E, por fim, quando o Verão de 2009 chegou, apareceram os turistas. E foi assim, meio à experiência, que o projecto se transformou numa unidade de turismo rural, que hoje carrega o passado com orgulho.
É uma casa pequena. Tem três quartos e duas suites. É também isso que faz da Horta da Coutada um recanto inestimável, sem ambições desmedidas e em perfeita harmonia com o cenário de Monsaraz. O legado está por todo o lado. Dos tapetes com motivos visigodos ao aproveitamento de utensílios rurais, sem esquecer os materiais daquela terra: o xisto, a cal e a tijoleira.
A família Pinto comprou a herdade há 15 anos, a um descendente de uma empregada da Casa Real, um complexo senhorial que, entre os séculos XIX e XX, se acomodou naquela zona. Depois de percorrerem o Alentejo à procura de um segundo lar, o lar do regresso às origens, quiseram ficar por ali. A decisão foi tomada ao final de uma tarde de Verão, dentro das muralhas do castelo, quando o sol caía sobre o lago do Alqueva.
Na época alta, os preços variam entre 95 e 135 euros por noite e, por esta altura, entre 80 e 105. O descanso é uma garantia, seja na sala de estar, ao calor da lareira a desfrutar um livro, nos quartos de pé direito alto ou naquele pátio, que convida ao silêncio, mas também se imagina cheio de gente, numa noite de temperaturas mais amenas.
Há pérolas perdidas por ali. A fruta acabada de colher, a vista sobre uma planície infinita, sem muros à vista, e até uma massagem inesperada. Patrícia, uma das empregadas que toma conta da casa, também é fisioterapeuta. Estudou em Lisboa, mas rapidamente regressou à vila. Por 15 euros, trata-nos dos problemas das costas e da mente. Também há tratamentos shiatsu, no quarto ou no pátio da herdade, à luz da lua. Neste caso, os preços sobem para 35 euros.
Quando a família Pinto ali chegou, só encontrou silvado, mas conseguiu ver um pouco mais à frente. No terreno da herdade, há três nascentes de água, uma nora ancestral e vista para o infinito. Quando recuperaram a casa, quiseram manter a traça antiga. As portas e janelas ainda hoje são pequenas, tal como quando foram construídas, para evitar que o frio e o calor excessivos do Alentejo entrem sem convite.
Remodelaram os exteriores. Reconstruíram a nora e acrescentaram conforto. Há uma piscina, um campo de futebol e de ténis. E, claro, uma horta biológica, que faz o elo com o que os monges ali produziam. Inaugurada em Junho de 2009, a Horta da Coutada tem planos para crescer. Mas, felizmente, não muito.
Sabores de Monsarraz: Faca? Não é preciso
A ementa já estava escolhida. Mal nos sentamos, Isabel aproxima-se. Traz as entradas nas mãos e os olhos ficam imediatamente colados ao queijo fresco mergulhado em alho e folhas de agrião. "Hoje vão provar as nossas especialidades", diz. Perante aquela introdução, não há resistênca possível. Tivemos de obedecer àquela mulher, cozinheira do Sabores de Monsaraz desde que o restaurante abriu, há seis anos. Serve-nos medalhões de porco preto e migas de bacalhau. Assim o coração não resiste.
"Se precisarem de faca para comer a carne, não pagam a conta", brinca. Um cliente, por sinal já antigo, não deixa Isabel sem resposta. "Se precisarem de dentes, quem lhes paga a conta sou eu", diz. No final da primeira garfada, já o tema de conversa era outro. O sabor daquela comida, a forma como se desfaz sem dar luta. As migas também fazem furor, mas, naquela mesa, é o porco preto que ganha sem esforço.
O preço médio dos pratos ronda os 18 euros, incluindo a primeira fornada de entradas. O queijo fresco com alho e agrião, o feijão-frade, a cebola e as azeitonas que por pouco não arrancámos das árvores, nas pausas que concedemos ao cavalo Apolo, durante o passeio de charrete pela rota do megalítico. Depois chegam os pratos mais típicos à mesa, seguidos de sobremesas: uma sericaia ou um bolo rançoso, que mistura chila, amêndoas e gema de ovo.
O Sabores de Monsaraz é um pouco mais da vila do que apenas a gastronomia. É uma representação das suas formas, todo revestido a xisto. Da janela, vê-se o Alqueva e os pequenos cais onde atracam os barcos de lazer e de turismo. E, ao fundo, as luzes de Mourão. É preciso contornar o castelo e entrar nas suas ruelas apertadas. O estacionamento faz-se a custo. Mas vale tanto a pena. Só por conhecer Isabel e provar os seus medalhões de porco preto.
Sabores de Monsaraz
Largo de S. Bartolomeu
7200 - 175 Monsaraz
Tel.: 96 921 71 17
www.saboresdemonsaraz.com
A Fugas esteve em Monsaraz a convite do Turismo do Alentejo