Fugas - viagens

João Seixas

Leiden: a cidade-poema

Por Ana Rita Faria

Pode uma cidade ser feita de poesia? Na Holanda pode. À aura de uma mini-Amesterdão, a cidade universitária de Leiden juntou Baudelaire, Shakespeare e Fernando Pessoa. Parta connosco à descoberta da cidade-poema, onde mais de cem versos saltaram do papel para as paredes.

"Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?". No cruzamento apertado da Rua Vliet com a Kamperstreeg, escondidos no meio de ruelas e espetados na parede, estão os versos de Álvaro de Campos. Foi difícil encontrá-los, mas era inevitável, era quase uma obsessão procurar o único exemplar da literatura portuguesa que vive nas paredes e nas ruas de Leiden.

A pouco e pouco, a busca de outros poemas torna-se um vício. Há mais de 100 versos espalhados pelas ruas desta cidade holandesa. Estão em becos, nas paredes das casas típicas, ao chegar a uma igreja medieval ou antes de desembocar num dos canais de Leiden, que recriam uma Amesterdão em ponto pequeno. Não estão assinalados, estão escondidos à espera de serem descobertos. Todos estão na língua original, o que quer dizer que tanto podemos percebê-los, como serem um gatafunho de rabiscos chineses ou árabes, uns incompreensíveis caracteres gregos ou russos ou um emaranhado áspero que soa a alemão. Um projecto pouco convencional? Ou uma forma completamente nova de conhecer uma cidade? Provavelmente, as duas coisas.

O projecto Poemas e Paredes começou em 1992, desenvolvido pela fundação Tegen-Beeld, cujos trabalhos se centram na relação entre a linguagem e a imagem. Várias empresas apoiaram a iniciativa, que espalhou pelas paredes de Leiden mais de 100 poemas. Pablo Neruda, William Shakespeare, Charles Baudelaire, García Lorca, Rainer Maria Rilke, William Butler Yeats ou Carlos Drummond de Andrade são apenas alguns dos nomes mais conhecidos que viram os seus versos saltar do papel para as paredes.

As letras mudam de cor conforme o tom da parede ou a sua textura e migram de grafismo, como se cada poeta tivesse chegado ali e escrito pelo seu próprio punho. Há poesia em mais de 30 línguas diferentes, do português e do espanhol ao russo, grego, alemão e sueco, passando pelo japonês, o chinês, o árabe e até mesmo o latim. Se quiser uma visita guiada pela cidade dos poemas, o posto de turismo de Leiden dá-lhe os contactos. Mas pode também optar por uma incursão mais personalizada.

O site www.muurgedichten.nl ("o muro dos poemas") contém uma lista de praticamente todos os autores que estão espalhados pelas ruas de Leiden, bem como uma transcrição de cada poema e sua tradução para inglês. Cada um desses poemas está acompanhado por uma fotografia e é possível ver a sua localização no mapa. Porque não aventurar-se a fazer um roteiro próprio com os seus versos preferidos? Deixamos aqui o exemplo de um. E se realmente for fã desta arte, marque na agenda. Em Junho deste ano, realiza-se em Leiden um festival de poesia ao ar livre.

A herança histórica

É certo que Leiden não figura entre as cidades de visita obrigatória quando se viaja para a Holanda. Amesterdão domina o topo das prioridades, Haia vale bem um passeio prolongado pelo lago, onde se reflectem os imponentes edifícios do Parlamento, e pela Chinatown. Mesmo ao lado, ergue-se Delft, uma cidade construída no século XIII, repleta de canais e de edifícios históricos, onde nasceu e viveu o pintor holandês Johannes Vermeers, autor da obra A Rapariga do Brinco de Pérola.

Mas Leiden também tem bem mais do que poemas nos muros. É o berço do pintor Rembrant e da universidade mais antiga do país. Tem vários museus, parques, canais, o jardim botânico da universidade e mais de três dezenas de hofjes, uma espécie de condomínio com um jardim comum e fechado em muros, que eram criados pelas instituições de caridade para albergarem os idosos mais pobres. Hoje são disputados por serem locais idílicos dentro das cidades, que parecem ter ficado parados no tempo e onde o silêncio é a regra de ouro.

Além disso, Leiden está praticamente a meio caminho entre Amesterdão e Roterdão, dispondo de boas ligações ferroviárias, e tem a praia tão perto que é possível alugar uma bicicleta e, em menos de uma hora, estar a ver o mar. Na Primavera, vale a pena apanhar um autocarro ou pedalar em direcção aos campos de tulipas que rodeiam Leiden, ou não tivesse sido nesta cidade que Carolus Clusius, um botânico flamengo do século XVI, cultivou os primeiros bolbos há mais de 400 anos.

No século XVII, a idade de ouro holandesa, Leiden chegou a ser a segunda cidade mais importante do país, depois de Amesterdão. Mas, a partir daí, entrou em declínio, o que também teve consequências positivas: boa parte do centro histórico permanece intacta. O castelo de Leiden (De Burcht), situado mesmo no centro da cidade, é um dos monumentos que ficaram da Idade Média. Às igrejas históricas de Pietersker e Hooglandse Kerk juntam-se as velhas portas da cidade - Zijlpoort e Morspoort - que datam do final do século XVII. Há ainda outra fortificação - o Gravensteen - que remonta ao século XIII e foi usada, ao longo dos tempos, como casa, biblioteca e prisão. Hoje é um dos edifícios da Universidade de Leiden, que foi fundada em 1575 em jeito de presente por parte de William III aos cidadãos da cidade por terem resistido, durante dois anos, ao cerco espanhol.

Frequentada por Albert Einstein, a Universidade de Leiden foi o berço de várias invenções na área científica, como a de Heike Kamerlingh Onnes (vencedor do prémio Nobel da Física em 1913), que investigou as propriedades da matéria a baixas temperaturas e produziu, pela primeira vez, hélio líquido. Hoje, a cidade continua a girar à volta dos muros da universidade, que todos os anos atrai centenas de estudantes estrangeiros. Para os turistas, sobram os poemas na parede.

Como ir

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