Fugas - viagens

  • Primavera, de Sandro Botticelli
    Primavera, de Sandro Botticelli DR
  • O Nascimento de Vénus, Sandro Botticelli
    O Nascimento de Vénus, Sandro Botticelli DR
  • Frente ao
    Frente ao "O Nascimento de Vénus", de Botticelli, na Galeria Uffizi Regis Duvignau/Reuters
  • Florença
    Florença Pedro Cunha
  • Florença
    Florença Giampiero Sposito/Reuters
  • Santa Croce
    Santa Croce Alessandro Bianchi /Reuters
  • David na Accademia
    David na Accademia Max Rossi /Reuters
  • Florença, Piazza della Signoria
    Florença, Piazza della Signoria Alessia Pierdomenico/Reuters
  • Ponte Vecchio
    Ponte Vecchio Max Rossi /Reuters

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(Você chega assim sorrindo) Como se fosse a Primavera

Do outro lado do quadro, o esquerdo, estão as Três Graças, as criaturas mitológicas representadas de mãos dadas, nos seus vestidos transparentes, esvoaçantes. São ao mesmo tempo muito corpóreas, concretas, ornadas de pérolas nos cabelos, e também leves, levíssimas, como se flutuassem. Tudo nelas é delicado, sem o peso do mundo.

Uma delas parece olhar directamente para o personagem masculino que está mais à esquerda e que representa o deus Mercúrio. É provável que a sua cara seja a de Lorenzo di Pierfrancesco de Médici (um primo de Lorenzo, o Magnífico), que encomendou o quadro, e ela a sua mulher.

Estamos no final do século XV, algures entre 1477 e 1482. A tela é de grande dimensão, entre os dois e os três metros.

Outra sala. Logo ali é o Nascimento de Vénus, e parece que o movimento da Primavera se mantém. Detectam-se as referências às Metamorfoses de Ovídio, estão lá o mesmo Zéfiro a soprar e a dar vida, a mesma Vénus de cara angelical (julga-se que era a musa de Botticelli), e aqui pudica, a usar a cabeleira para se cobrir, uma figura feminina de vestido florido, como se fosse a Primavera.

Dito isto, ouço Chico Buarque a cantar “Como se fosse a Primavera”. E subo ao terraço dos Uffizi a pensar nos versos “... você chega assim sorrindo, e de que modo subtil me derramou na camisa todas as flores de Abril. Quem lhe disse que eu era riso sempre e nunca pranto? Como se fosse a Primavera...”. E ouço e ouço, só na minha imaginação, mas não importa. E respiro o ar ainda frio, muito frio, e sei que vai chegar a Primavera, com um sopro. Será em breve.

Do terraço vejo tão perto que parece que posso tocar o palazzo vecchio, as torres dos palazzos mais ao longe, mas não muito, e também o duomo, o campanário, o esplendor de Florença. Que cidade!, que bênção estar aqui.

Houve um tempo em que estas Galleria degli Uffizi eram parte do palácio, mandadas edificar por Cosme I de Médici. Vasari desenhou as galerias em forma de um U, com extensíssimos corredores, escadas intermináveis, uma colecção de arte superlativa.

(As filas para entrar também podem ser intermináveis. Maneira de o contornar: comprar bilhetes com antecedência na Internet ou comprar num quiosque de Florença que permite, face ao pagamento de uma taxa, entrar daí a umas horas, sem espera. O mesmo princípio se aplica à Accademia, ou está o David de Miguel Ângelo. Vale a pena.)

Sob as arcadas dos Uffizi estão estátuas de pessoas que apetece admirar. Estão os Médici, mas também Dante, os que detêm poder e os sábios, que detêm outra espécie de poder. E depois é só virar o corpo e já estou na piazza. Se for na outra direcção, estou na ponte vecchio, aquela ponte de casas encarrapitadas, pilares maciços sobre o rio Arno, e ourives de um lado e de outro.

Mas é a piazza que me interessa. Não conheço nenhum outro museu a céu aberto como aquele. Acho mesmo que não existe. Que outro espaço tem David, Hércules, Neptuno, quase lado a lado? E na loggia, numa espécie de pequena galeria, está Perseu e a cabeça da Medusa, o rapto das Sabinas, centauros, cenas violentas que nos dão marretadas na cabeça... É nesse momento que viramos de novo a cara para David, o imponente.

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