Fugas - viagens

  • Primavera, de Sandro Botticelli
    Primavera, de Sandro Botticelli DR
  • O Nascimento de Vénus, Sandro Botticelli
    O Nascimento de Vénus, Sandro Botticelli DR
  • Frente ao
    Frente ao "O Nascimento de Vénus", de Botticelli, na Galeria Uffizi Regis Duvignau/Reuters
  • Florença
    Florença Pedro Cunha
  • Florença
    Florença Giampiero Sposito/Reuters
  • Santa Croce
    Santa Croce Alessandro Bianchi /Reuters
  • David na Accademia
    David na Accademia Max Rossi /Reuters
  • Florença, Piazza della Signoria
    Florença, Piazza della Signoria Alessia Pierdomenico/Reuters
  • Ponte Vecchio
    Ponte Vecchio Max Rossi /Reuters

(Você chega assim sorrindo) Como se fosse a Primavera

Por Anabela Mota Ribeiro

Ir a Florença e não ver o 'Nascimento de Vénus' ou a 'Primavera' é como ir a Roma e não ver a capela Sistina (e o Papa). Uma viagem pelos Uffizi para celebrar a Primavera com um salto a uma das lojas mais bonitas do mundo.

MAISEsta officina é a loja mais bonita do mundo?

O quadro chama-se Primavera e parece uma cena nocturna. Não tem a cor das papoilas a irradiar nem o verde de Março, o da erva muito fresca que cobre os campos. Não tem o amarelo que usamos na infância para desenhar a chegada da Primavera, um sol vigoroso, o rosa das flores. É verdade que há laranjas que têm brilho, quase pirilampos, e um vestido de flores, uma coroa, e plantas mais rasteiras num fundo escuro. E uma harmonia que nos enleva. Mas a luz é diminuta. O quadro de Botticelli tem qualquer coisa de lunar.

Pode ser que a cena não seja nocturna, que coincida afinal com o crepúsculo, com aquele momento do dia em que o azul ainda é pálido e as luzes já se acenderam e as pessoas são vistas como silhuetas, recortes que passam num começo de noite. Se olharmos bem, há no fundo do quadro, por detrás de uma vegetação pintada com minúcia, esse azul de um dia que não acabou. Porém, as árvores são quase pretas; mais um pouco e eram tinta da China. Fazem contraste com o céu, adensam a atmosfera.

Apesar desta estranheza, não fica uma impressão sombria do quadro, um franzir carregado ou triste. Eu diria que fica justamente uma sensação oposta, e que isso se deve, sobretudo, ao facto de a pintura ser uma imensa metamorfose.

A mudança, a mudança é sempre qualquer coisa que exala vida. Uma vida que deixa para trás os desastres do Inverno, as dores da hibernação, o marasmo. A palpitação é, por isso, boa. Parece que entrámos numa noite em que já não há frio e encontrámos no coração da floresta criaturas fantásticas, que se transformam e nos exortam à transformação.

Ouve-se ao fundo um exímio tocador de harpa. É só na nossa imaginação, mas não importa. Ouve-se um som encantatório que é aquele ao som do qual dançam as Três Graças, e que é o que invade a tela, e nos chama. O movimento gracioso de todos os personagens também nos passa essa sensação revigorante.

Chegados aqui, vamos ao quadro, nos seus personagens, no enredo que lá se desenrola. A primeira pergunta que se pode fazer é se a protagonista de Botticelli é a nossa protagonista — e também quem é a protagonista do pintor renascentista. É a Primavera que dá nome ao quadro ou é Vénus, que ocupa a posição central?

Entre as figuras da direita está Zéfiro, alado e azul, deus dos ventos que toma a ninfa Clóris, e pelo sopro a fecunda. A grande metamorfose do quadro talvez esteja neste instante, na acção do vento que muda as coisas de lugar, subverte a ordem do mundo, propicia o fluir da natureza. O sopro faz nascer Flora, de vestido apanhado abaixo do ventre, expressão algo enigmática, envolta em flores. Traz com ela a promessa dos dias longos, espalha flores e abundância.

E então, como se fosse o eixo de um movimento pendular, aparece Vénus no centro do quadro, e com ela Eros, de olhos vendados (o amor também é cego, além da justiça). Há qualquer coisa de beatífico no olhar desta Vénus de Botticelli. Podia ser uma santa se o tempo fosse outro, mas em pleno Renascimento tem consigo a temperança, a bondade, encarna a Humanitas. É aquela que distingue os valores materiais dos espirituais.

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