Levamos uma vida tão profundamente urbana, distante de uma vivência próxima da natureza, que a circunstância nos impede de compreender o autêntico milagre da evolução natural das espécies.
De tão habituados a abrir uma garrafa no conforto do restaurante ou das nossas casas climatizadas, sem ter de perder tempo a pensar nos sacrifícios impostos para que o vinho tenha nascido, absorvidos com o simples fruir das sensações induzidas pelo vinho, que raramente nos entretemos a congeminar sobre a vinha, a devanear sobre o local e as cepas que conduziram aos momentos de prazer de que mais tarde fruímos.
E no entanto, não obstante o enfado de uma expressão já demasiado batida, tudo começa mesmo na vinha. Vinha que desfruta de uma história riquíssima em incidentes espantosos, consequência natural das muitas evoluções, degenerações e cruzamentos acidentais em que a natureza sempre foi fértil... que conduziram à criação natural dos milhares de variedades que hoje enxameiam o mundo. Desde o instante em que o homem domesticou as primeiras videiras bravias, descendentes de um antepassado comum, a videira começou a divorciar-se em diferentes castas, cada uma com o seu temperamento e especificidade, cada uma com as suas particularidades e idiossincrasias.
Como consequência natural dessa evolução espontânea, existem hoje mais de dez mil variedades distintas de Vitis Vinifera, um terço das quais se inclui no grupo menos atractivo das uvas de mesa.
Do cruzamento natural e casual das diferentes castas, fruto de uma miscigenação selectiva consentida pela natureza, despontaram os milhares de variedades que hoje conhecemos e logramos identificar.
Sabemos, por exemplo, que o Cabernet Sauvignon, talvez a casta mais afamada do mundo, nasceu de um cruzamento espontâneo entre as castas Cabernet Franc e Sauvignon Blanc, do acasalamento entre uma casta tinta e uma casta branca. Durante séculos, o conhecimento da génese das castas assentava em simples pressupostos de adivinhação, muitas vezes atormentados por histórias mais ou menos poéticas sobre as possíveis relações de parentesco que teriam conduzido à formação de cada casta.
Num dos casos mais célebres de enunciação romântica, sobre a casta Syrah, também conhecida como Shiraz, chegou-se ao ponto de lhe descobrir uma génese persa, pela partilha de nome com a cidade, hoje iraniana, intitulada Shiraz. De acordo com algumas conjecturas mais ou menos doutas, fundamentadas com o devido suporte documental histórico, a variedade teria sido introduzida em território francês durante a ocupação romana, de acordo com as práticas habituais do império. Outros, prognosticaram-lhe a mesma origem, mas divergiram na época de importação, sugerindo, como teoria alternativa, a introdução potenciada por um monge eremita que viveu em Hermitage. Outros ainda descobriram-lhe uma origem siciliana, assente na região de Siracusa. Hoje, graças às técnicas modernas de identificação e marcação cromossómica, de autenticação por ADN, empregando técnicas idênticas às utilizadas nos reconhecimentos de paternidade, sabemos que a casta Syrah resultou do cruzamento acidental das variedades Dureza e Mondeuse, duas castas francesas menores... que desenganaram as teorias mais inspiradas e sentimentais sobre a origem da variedade.