Muito mais que uma simples bebida, mais que um mero produto alimentar, que também o é, o vinho tende a ser entendido de forma romântica e arrebatada, numa partilha entre uma aproximação visivelmente hedonista e de prazer intelectual, numa visão mais filosófica que racional ou pragmática. Ao vinho continuamos a associar o lazer e o prazer que não defendemos nem associamos a nenhuma outra forma de produção agrícola, apartando-o do mundo mundano da terra para o elevar a um espírito simultaneamente etéreo e intelectual, quase divino no vínculo intimo com a natureza.
Se para alguns o vinho não representa mais que um vulgar apêndice da refeição, um instrumento de conforto material para acompanhar uma refeição, ou mesmo, nos piores casos, um modo directo e económico para a intoxicação, para outros o vinho e a sua fruição anunciam-se como tema central de discussão, esteio suficiente para alimentar conversas intermináveis, para sustentar debates apaixonados, para adubar conversas entusiasmadas. Em redor de uma mesa o vinho incita à tertúlia, propiciando, para quem não perfilha o entusiasmo pelo tema, discussões tão surpreendentes como esotéricas, abraçando teses tão peculiares como diferenças entre diferentes anos de colheita, características de cada variedade, estilos e um sem fim de outras particularidades que nenhuma outra bebida suscita.
Porém, para além de um romantismo latente, o universo do vinho acolhe igualmente, ou deveria acolher, uma vertente mais racional e cerebral, numa visão pragmática e ponderada da actividade, consonante com a razoabilidade financeira de uma gestão rigorosa.
Mau grado a imagem idílica e inspiradora do vinho, não nos podemos esquecer que ele é também um negócio... que se exige saudável e rentável para perdurar no tempo. E é aqui, no brutal confronto com a realidade, que muitas das asserções mais poéticas do vinho sofrem o primeiro embate face à crueza das dificuldades das decisões do dia-a-dia.
Infelizmente, são poucos os que conseguem edificar um vinho de forma perfeitamente melodiosa, seguindo os imperativos da natureza, acertando o relógio pelo compasso de cada ano agrícola.
São poucos os que têm os recursos e o conhecimento para soltar o vinho de forma genuína e natural.
Apesar de vivermos sob a crença de que o vinho segue os caprichos da natureza, que as intervenções são sempre minimalistas, que o timing de cada operação, na vinha e na adega, são determinados por factores naturais, pelo terroir e pelos humores da mãe natureza... raramente assim acontece.
A agilidade financeira, a disponibilidade material, a organização, a experiência... e os imponderáveis, o simples acaso, determinam de forma dramática a qualidade e a viabilidade dos grandes vinhos. Entre a visão poética, mas fantasista, de realizar todas as operações no tempo certo, esperando pelo momento perfeito para cada faina, e a realidade, vai uma monumental distância.
Atente-se, por exemplo, na data de marcação da vindima, momento crucial para o sucesso da campanha, instante preciso e precioso que determina a qualidade da matéria-prima, conjuntura decisiva para a elaboração de qualquer vinho. Sem boas uvas, sem uvas excelentes, não é exequível conceber um grande vinho. Um ou dois dias a mais, ou a menos, e as consequências serão substancialmente diferentes, prejudicando ou enaltecendo o potencial de cada variedade.