Enquanto aguardamos com apreensão o novo ano que agora amanhece, alarmados com os inequívocos sinais de uma crise há muito profetizada, uma crise que se vaticina madrasta e dramática para o universo do vinho português, é tempo de fazer as contas do deve e haver sobre o ano que findou, ocasião para completar um primeiro balanço sobre alguns dos vinhos que mais me emocionaram e desassossegaram durante o ano transacto.
Mal-grado o malfadado aperto da crise, 2010 acabou por ser um ano pródigo para os vinhos nacionais, um ano onde despontou um número considerável de vinhos de referência, brancos, tintos, espumantes e generosos, muitos dos quais procedentes de novos produtores, de castas pouco mediáticas ou de regiões menos conotadas com o sucesso e a moda, com ganhos directos na diversidade e propriedade, sinal claro de uma maior maturidade do mercado e de uma maior pluralidade de opções.
Entre os eleitos, salienta-se o Quinta do Mouro Rótulo Dourado 2006, do Alentejo, um vinho de potência desmedida, numa alternância constante entre urbanidade e tirania que, como que por artes mágicas, termina elegante e fresco, pujante e galante.
Disposto num permanente e delicado equilíbrio entre vigor e comedimento, entre a loucura da potência e a delicadeza afectuosa de trato, perdido num estranho jogo de contrastes e contradições, afirma-se ora urbano e polido, ora despótico e perverso, mas sempre fresco e tenso, com um final de boca triunfal, envolto em taninos eficazes e superiormente proporcionados.
Igualmente selvagem apresentou-se o Sidónio de Sousa Garrafeira 2005, da Bairrada, resultante da última vindima de uma vinha centenária da casta Baga. arrancada para dar lugar a uma vinha nova da casta francesa Merlot! Por ora, nesta última edição, conseguimos apreciar a dignidade de uma vinha centenária, a austeridade e sobriedade entendidas como uma virtude. É um monstro de dimensão demencial, um gigante da natureza, um delicioso cântico à inconformidade, um punho de aço numa luva de veludo. Bruto, mau, sólido, intransigente e interminável, é um hino à tradição dos grandes vinhos bairradinos, um grande vinho. que necessita de abertura de espírito para poder ser compreendido e aceite.
Nas Beiras sobressaiu o Quinta de Foz de Arouce Vinhas Velhas de Santa Maria 2007, um tinto de nome interminável onde a austeridade consona em perfeita sintonia com o conceito de aristocracia. Personifica o triunfo de uma vinha, a sabedoria de uma casta que encontrou aqui um lugar de eleição. Por ora ainda está fechado a sete chaves, quase brutal na força dos taninos, austero como sempre deveria ser nesta fase ainda incipiente da mocidade. Mas a fruta marca já presença segura, amparada por uma estrutura titânica e por uma acidez perfeita que lhe asseguram um futuro radioso. A casta Baga fora da sua região, num registo imperial! O Quinta de Sant'Ana Homenagem a Baron von Furstenberg 2007, outro nome interminável, desta vez da região de Lisboa, espanta pela frescura extrema, num vinho melódico, rigoroso, tenso, arrumado e retemperador. O nariz balança por entre as notas animais e florais, por entre a fruta e as especiarias, numa complexidade que se mantém fresca e retemperadora ao longo de toda a prova. Frescura que a boca prontamente confirma, acrescentando taninos firmes mas suaves, e uma acidez atilada, que lhe asseguram uma estrutura férrea. Um tinto diferente, mais fresco que o costumeiro, elegante e harmonioso, sem qualquer tipo de condescendências ou facilitismos.