Fugas - vinhos

Rui Gaudêncio

A monotonia da qualidade

Por Rui Falcão

Vivemos numa época onde a maioria dos vinhos se apresenta correcta e consistente, assentindo que o efeito diferenciador só poderá mesmo advir do carácter e originalidade dos vinhos.

Felizmente a maioria dos produtores portugueses já deixou, há muito, de apresentar vinhos maus, vinhos defeituosos e de fraca qualidade, vinhos que por vezes mais pareciam verdadeiros compêndios de defeitos. Vinhos que nos envergonhavam, enquanto país produtor, vinhos de outros tempos em que sentenças como qualidade ou consistência ainda descreviam matéria desconhecida.

Longe vão os tempos em que os vinhos portugueses se exprimiam num discurso francamente demodè, presos a uma época e condição há muito ultrapassadas, sem elegância nem sofi sticação, vítimas de um atraso endémico que assolava e isolava Portugal do resto da Europa. Durante décadas, muitos dos nossos brancos arribavam ao mercado prematuramente oxidados, sem fruta nem alegria, resignados perante as más práticas na adega e a fraca qualidade da viticultura, no primado do conhecimento empírico sobre o conhecimento científico, embargados pelo grau minguado de exigência de um mercado pouco conhecedor e que sempre privilegiou a quantidade sobre a qualidade.

Os vinhos tintos, por seu lado, apresentavam-se tradicionalmente duros e másculos, rudes e taninosos, acídulos, por vezes brutais, quase imbebíveis nos primeiros anos de vida, necessitando de um longo tempo de estágio em garrafa para amaciar e atenuar a rispidez que os reprimia na fase adolescente.

Só mesmo os vinhos generosos nos puderam continuar a deleitar nessa fase da história... para além de um pequeno grupo de eleitos, clássicos históricos que ajudaram a desenvolver e modernizar os vinhos portugueses.

Desde o suave despertar da década de noventa do século passado os paradigmas mudaram por completo. A probabilidade de hoje encontrar vinhos que se apresentem francamente maus, sem habilitações ou atributos de competência, é francamente diminuta. O progresso sobreveio em passo acelerado e radical, transformando de vez os vinhos portugueses. Poucos anos após a nossa entrada na União Europeia, e graças ao investimento pesado em novas adegas, no conhecimento científico, na experiência nas vinhas, mais ou menos sob este ordenamento, os vinhos portugueses ganharam finalmente a consistência e qualidade de que nunca tinham gozado no passado.

A grande batalha da qualidade é, pois, presentemente, um dado adquirido da enologia portuguesa, algo que nos deve encher de orgulho. Porém, a conquista da qualidade é igualmente uma circunstância que não nos deve toldar a cabeça com falsas sensações de êxito. Porque se os vinhos são hoje muito mais sólidos e consistentes na qualidade, são igualmente mais previsíveis e aborrecidos, mais monótonos e insípidos. Agora que a ausência de defeitos se transformou na rotina a seguir, na normalidade, como sempre deveria ter sido, já não basta ser irrepreensível e correcto, já não basta cumprir com os serviços mínimos. Num mundo repleto de vinhos correctos e conformes, provenientes de todas as partes do mundo, instalou-se a ditadura da perfeição, num mundo inchado de tantos vinhos concordantes. Num só passo passámos a alimentar um novo conceito, a monotonia da qualidade! Hoje, muito mais que a limpeza e apuro de aromas, muito mais que a fruta e a lisura, muito mais que o tão propalado e aclamado sentido de equilíbrio e proporção, o que incendeia a alma e que desperta a consciência são conceitos tão simples como genuinidade, autenticidade e carácter. Por entre tanta correcção e sensaboria, por entre tantos vinhos politicamente correctos, certinhos e formatados, são os vinhos com alma e espírito que se destacam dos demais.

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