Carácter é uma palavra que abunda no estranho léxico do vinho, um termo que surge cada dia mais apregoado e valorizado, quase endeusado como uma das características mais desejáveis, aquilo por que todos anseiam ao beber um vinho. Ninguém hoje no seu perfeito juízo deseja vinhos sem alma, sem coração, sem temperamento forte que lhe acrescente firmeza, resolução e individualidade. Esta é a época certa para os vinhos de personalidade forte, vinhos irredutíveis e sem compromissos.
Ou, pelo menos, esta é a versão poética em que por vezes nos deixamos embalar, confiando na presença de um universo de candidatos a beber vinhos de expressão forte, um mundo quase infinito de consumidores desejosos de provar estes vinhos intensos e de personalidade tão arreigada. Infelizmente, e tal como acontece tantas vezes na vida, a realidade nem sempre se conforma com os sonhos. Apesar das boas intenções e dos discursos animadores, são poucos os que desejam realmente beber vinhos de personalidade forte, vinhos que obriguem a pensar, vinhos que se afastem da facilidade que desejamos para o dia-a-dia.
Não será certamente por um acidente de percurso que a variedade Baga se mostra tão menos popular que as castas Syrah ou Aragonêz/Tinta Roriz, tal como não será certamente por mero acaso que a casta Touriga Nacional se demonstra tão popular entre produtores e enófilos. No fundo, no fundo, todos desejamos um pouco de carácter nos vinhos, alguma complexidade e individualidade, mas raramente pretendemos que esse cunho se revele de forma excessivamente viva e exuberante. Preferimos os valores seguros, vinhos que sejam apelativos mas não demasiado sérios, vinhos ricos e complexos mas que sejam simultaneamente fáceis de entender.
Neste universo do facilitismo, na procura constante pela comodidade e simplicidade, os vinhos da casta Baga raramente têm cabimento. Se a casta em si encerra já alguma responsabilidade no cartório, por ser uma variedade caprichosa e com temperamento de diva, os produtores da Bairrada têm sido os seus principais inimigos, determinados em libertar um conjunto significativo de vinhos indistintos e herbáceos, desafinados e ásperos, vinhos que em nada dignificam a casta ou a região.
Plantada nos sítios errados, e permitindo-lhe um excesso de entusiasmo na produção, a Baga devolve vinhos que se mostram magros, acídulos, taninosos, verdes e ríspidos, vinhos de uma outra época que hoje já não têm adesão. Mas plantada nos locais certos, cerceando-lhe o ímpeto produtivo, dando-lhe oportunidade para amadurecer na plenitude, tratando-a bem na adega, a Baga pode dar corpo a vinhos excepcionais, de uma complexidade notável, com um potencial de guarda pouco comum, garantindo vinhos de carácter impetuoso e estrutura sólida.
Porém, e apesar da excelência da casta, o grupo de aficionados mantém-se reduzido, vítima precisamente do carácter da Baga, do espírito indomável da variedade que, longe de se conformar com vinhos fáceis e politicamente correctos, teima em dar voz a vinhos emotivos e telúricos, vinhos possantes e rijos que poderão derrotar numa aproximação menos empenhada. Porque para gostar da Baga, seja ela proposta numa perspectiva mais clássica ou numa visão mais actualizada, há que procurar para além da fruta primária, dos simples tostados da madeira, dos taninos suaves e de um final aveludado. A Baga oferece muito mais mas, em contrapartida, também exige muito mais de quem a desejar compreender.