É difícil resistir à tentação de puxar alguns excertos do livro As Praias de Portugal - Guia do Banhista e do Viajante, de Ramalho Ortigão. Além da inquestionável qualidade, surpreende a frescura da prosa: “Guia dos homens, promotor das civilizações, revelador do universo, progenitor das ideias que determinam o abraço fraterno da humanidade em todo o mundo, o mar é ainda o mais poderoso foco, o mais abundante manancial da vida.” Ou esta: “O mar torna-nos imaginativos, faz-nos propender para a contemplação, para a ociosidade, para a vaga saudade, para a indefinida melancolia. Este estado poético é dos mais perigosos. Prosta, enfraquece, desarma o carácter. É por isso que as mulheres, à beira-mar, nos dias doces e enervantes do Outono, precisam mais do que nunca de se retemperarem na aplicação, no estudo, na actividade intelectual.” Palavras de Ramalho Ortigão, quem somos nós para contrariar?
Mais de vinte dias depois do início da Volta a Portugal em 80 dias com o Citroën C4 Cactus, dias sobretudo passados no centro/interior do país, agarrámos no livro deste incontornável nome das letras lusitanas — professor de Eça de Queirós e colega de espadas de Antero de Quental, a quem chegou a enfrentar num duelo — e partimos, também nós, rumo ao litoral. Se “o mar foi o primeiro guia da humanidade”, a literatura continua a ser um dos melhores guias de viagem e nada como passar uma semana com uma obra do século XIX e uma toalha dos chineses debaixo do braço. Não queríamos, contudo, limitar-nos a visitar as terras de veraneio escolhidas por Ortigão, mas sobretudo passar por aquelas a que, sem grandes justificações, apelidou de As praias obscuras, dedicando-lhes sumaríssimas descrições e um breve capítulo. Praias como a Assenta ou Santa Cruz, na região Oeste, São Martinho do Porto ou São Pedro de Moel, na zona central, ou a Costa Nova, Apúlia e Vila Praia de Âncora, no Norte do país.
Portugal mudou muito desde esses tempos, Vila Praia de Âncora já não fica a “hora e meia da cidade de Viana”, nem as casas na Assenta, a duas léguas de Torres Vedras, custam “de cem a trezentos réis por dia”, mas a verdade é que há ainda muito desse Portugal obscuro nos dias que correm. Todo um país por descobrir. A frase é um lugar comum, é certo. Não deixa, contudo, de constituir surpresa o elevado número de praias desconhecidas que encontrámos pelo caminho, mesmo para quem, como nós, por prazer ou em trabalho, julgava já ter percorrido os cantos a esta pequena casa sem segredos chamada Portugal. Se no Alentejo e no Algarve a maioria das praias está catalogada, inclusive as desertas, que anualmente têm direito a um sem-número de artigos em news magazines e revistas da especialidade, de Lisboa para cima parece haver sempre mais uma falésia, uma praia ou vila piscatória que poucos conhecem, a não ser aqueles que lá estão.
Não, não vou também eu fazer aqui a nossa lista/guia de locais de veraneio, muito menos dar conselhos higiénicos aos banhistas, como exemplarmente fazia Ramalho Ortigão — “o mais salutar depois do banho é um exercício moderado, um passeio a pé, de meia hora, na praia, debaixo de um chapéu de sol, com o rabo solto como usam as senhoras nas praias da Alemanha” —, contarei apenas uma pequena história. A história do meu encontro com a dona Argentina, em Vieira de Leiria. Partindo desse princípio quase incontornável de que as viagens são feitas de momentos, este entra directamente para o topo da minha pirâmide de memórias.