Dona Argentina
Tudo começou com um galanteio.
- Anda cá, meu amor, não fujas - atirou-me dona Argentina, vendedora de peixe, vendo-me fotografar e cobiçar os carapaus secos da sua bancada.
Não fugi, claro está. Não fugiria de maneira alguma — mesmo não tendo dinheiro no bolso nem sítio onde preparar os carapaus —, até porque há muito que ansiava por este encontro. Mais do que predestinado, estava programado. Não contava, ainda assim, com as consequências. Há cerca de dois anos fiz um passeio de barco no Tejo, no Ribatejo, para os lados de Salvaterra de Magos, e dei de caras com uma cultura e uma série de aldeias ribeirinhas que ignorava por completo. Casas e coloridos barcos em madeira, a maioria ao abandono, resquícios de uma comunidade de pescadores que se dedicava à pesca do sável, da enguia e da lampreia. Os avieiros, assim os baptizou Alves Redol — ele que viveu durante alguns anos com a comunidade, na aldeia da Palhota, e escreveu um romance em sua homenagem — pescadores, “ciganos do rio” que, no final do século XIX e início do século XX, deixaram as suas terras natais, essencialmente Vieira de Leiria, no concelho da Marinha Grande, virando costas a um Atlântico demasiado revolto que tanto lhes garantia o sustento como lhes tirava a vida. Um dos mais significativos movimentos migratórios registados em Portugal, rezam as crónicas. Li o romance do escritor ribatejano, regressei às aldeias e escrevi sobre o assunto mais um par de vezes, imbuído pela beleza da paisagem e riqueza dos costumes desta gente, qual cosmopolita melancólico, mas sempre sem falar com um avieiro. Até agora.
- Ó meu amor, nem me fales nisso – diz-me dona Argentina, sempre amorosa, cada vez menos vendedora. As minhas raízes estão todas por lá. As minhas e as de muita gente nesta terra. Como é que sabes o que são os avieiros? És tão novinho. Barbudo, e bonito, mas muito novinho para saber isso.
Já não havia nada a fazer. Abrira a caixa de Pandora. Dona Argentina já não estava mais comigo.
- Naquele tempo era muito duro, meu amor, muito duro. Eram precisos dezenas de homens em cada remo – disse-me ainda. Fechou os olhos e desapareceu. Já não falava, cantava, agora, baixinho, para que o passado e a dor não a ouvissem. “E quando vais para o mar/ É com coragem amor/ São queridas do pescador/ Tu vais e eu fico a rezar/ Para que voltes depressa/ E espera pelo jantar?/ A areia é a nossa mesa”. E assim continuou, com os olhos marejados de sal.
- Obrigado, meu amor, obrigado. Agora vai-te embora, meu amor. Vai lá, vai lá…
Já contei esta história mil vezes, durante esta semana, e hei-de repeti-la outras tantas, porventura. Cumpridos pouco mais dos vinte dos oitenta dias de percurso, este episódio é a prova, se preciso fosse, de que o país real não existe apenas nos confins de Trás-os-Montes, no Alentejo ou numa qualquer aldeia perdida da Beira. Portugal vem à tona quando menos se espera, sobretudo junto ao mar.
Não se pense, contudo, que esta foi uma semana de fado e sofrimento. De Olímpio Fernandes, o barbeiro/bloguer da Figueira da Foz, que aos 74 anos continua a contar histórias e a cortar cabelos, passando pela saga familiar de dona Edine, dona da Residencial Aviz, em Peniche, até aos perceves devorados na rua e às ostras compradas na lagoa de Óbidos e comidas num parque de campismo, foram muitas as pessoas e os momentos que também poderiam ter sido chamados a estas páginas. Já para não falar de um aniversário em família e uma partida de futebol entre amigos. Um percurso da região Oeste até à ponta noroeste do país, sempre com mar no horizonte e com as palavras de Ramalho Ortigão no bolso, mesmo com o nevoeiro instalado. “Desgraçados de nós se na praia, na pequena casa isolada e tranquila, frente a frente com o austero oceano, não compreendemos de um modo novo, por algum tempo ao menos, o dever, a felicidade, a família, a responsabilidade dos nossos actos, o nosso grave destino de criaturas humanas”. Forte é a luz deste país obscuro.